quinta-feira, 31 de julho de 2014

Porque estou aqui, mãe!, por Amadeu Ferreira

Barragem de Bemposta .
Muitos anos mais tarde, quando Amadeu é já um militante com grandes  responsabilidades na UDP, escreverá o texto que a seguir se transcreve, o qual mostra a realidade nua e crua da sua infância, ajudando a mãe a vender produtos na barragem de Bemposta ( Teresa Martins Marques)

Porque estou aqui, mãe!

«Manhã cedo, espio o mercado. Deu-me para ver o que as pessoas compram. As mulheres vão saindo umas atrás das outras, sacos cheios, sacos vazios – sacos ricos, sacos pobres, tal pessoa tal saco. Passa agora uma camponesa, tem aspecto disso: serapilheira na mão, com uma folha de couve a espreitar no fundo dum buraco, um naco de broa assoma os dentes pela boca do saco. É um saco sujo, roto, um saco de serapilheira, um saco duro agarrado por mão dura – tal pessoa, tal saco; tal saco, tal pessoa. Sim, é uma camponesa – trabalha a terra dos outros – eu deveria dizer, assalariada. O seu aspecto o diz. As pernas grossas e roxas enfeitadas de varizes arrastam umas socas barulhentas; a saia grossa a encobrir as ancas robustas do trabalho; os seios enormes sob a camisola suja que já deve ter sido branca; o rosto duro, a testa alta por sobre uns olhos lindos que parecem metidos no fundo dum poço, a boca larga, os lábios grossos e muita ruga a nascer por todo o lado. Deve ter 30 anos, quem não conhecesse as camponesas dava-lhe 40 ou mais. E lá vai, serapilheira na mão, sob a névoa da manhã, um dia de trabalho a espera, um dia longo, duro e mal pago.
Seguem-se outras mulheres, e outras e outras. É uma procissão que entra pela névoa adentro. Tal pessoa, tal saco; tal saco tal pessoa. E cismo nos meus tempos de criança quando, com a minha mãe, ia à barragem de Bemposta vender coisas. Devia ter os meus 7, 8 anos. Saíamos pelas 3 ou 4 da manhã. Uma cesta de figos, umas uvas, couves, nabiças, feijão – um pouco  de tudo levávamos na burra para vender na barragem. Chegávamos lá ao romper do dia, 6 e meia, 7 horas. Íamos de porta em porta àquelas casas de madeira penduradas na encosta do Douro. Às portas dos operários -  a gente mais pobre que já vi na minha vida, aqueles operários! E lá vinham as mulheres dos operários e os filhos que hoje devem ter a minha idade e devem ser operários aí em qualquer lado. O ciclo repete-se. Talvez as suas mulheres saiam agora aqui do mercado da Régua.
E rodeavam a burra, perguntavam o preço, regateavam, discutiam, praguejavam e compravam um repolho, um molhinho de nabiças, meio quilo de figos…
Eu segurava a burra pela rédea e seguia tudo atentamente. Davam-me ganas de lhes encher os sacos por nada.
 – Tu fazias o peso e lá ia eu no fim deitar sempre mais um pouco, como se me parecesse pouco, e tu batias-me na mão – lembras-te mãe?– E ralhavas-me:
  – Para a próxima não tornas a vir comigo, e eu virava a cara envergonhado.
Depois íamos ao bairro dos engenheiros e lá vinham as mulheres envoltas em roupões, chinelos bem quentes, cara de desprezo com as pinturas a escorrer sono, davam-me vómitos. Achavam sempre tudo muito caro e troçavam de nós. Lembras-te, mãe, chamavam-nos “palhantros”, e tu calavas-te, mas a raiva subia-nos dentro do peito, tão grande ódio que nunca nos saiu cá de dentro. Apetecia-me atirar-me a elas, tirar-lhes tudo e deitá-las ladeira abaixo. Estava sempre a dizer-te:
 – Mãe, porque não vamos para o outro lado, mais para baixo?.
 Elas riam-se de nós e pagavam as coisas com desprezo como quem atira os restos da comida a um cão. E dizia-te ao ouvido:
 – O rio havia de crescer tanto que havia de levar estas vacas todas! – Lembras-te mãe?
 Tu apenas respondias:
 – Puxa a burra, senão levas na cara.
 Era a tua raiva, o teu ódio que explodia assim, muitas vezes era eu o bode espiatório e a burra ainda mais. Pobre burra, muita pancada levou à conta das mulheres dos engenheiros!
Era já por volta do meio-dia quando regressávamos a casa. Então tu davas-me um bocado de pão que levavas no bolso do avental, mas tu não comias. Contavas o dinheiro: quando chegava perto dos 100$00 ficavas muito contente e depois atavas esse dinheiro na ponta do lenço e metia-lo entre os seios. Lembro-me como se fosse hoje. E passavas o caminho a praguejar contra as mulheres dos engenheiros.
Quanto eu aprendi nessas viagens, nessas idas à barragem! Lembro-me delas todas como se fosse hoje. Até daquela vez que a mulher dum engenheiro, ou lá o que era, toda bem posta que te atirou com um molho de couves à cara, porque lhe pediste 1$50 por ele – lembras-te? Disseste-lhe tanta coisa e choraste de raiva, de ódio – lembras-te, mãe? Eu lembro-me bem,  e chorei por te ver chorar a ti. Sabes, mãe, ainda não esqueci essas coisas, esse ódio, essa raiva estão bem cá dentro, bem fundo e agora ao ver sair estas mulheres do mercado da Régua, esse ódio salta e faísca-me nos olhos, aperta-se-me nos dentes, como se andasse a puxar a burra pelos bairros da barragem de Bemposta.
Mãe, tu não sabes que estou aqui, manhã cedo, à porta do mercado da Régua. Também não sabes porque estou aqui. Mas é simples: estou aqui porque o ódio que se foi acumulando em mim durante tanto tempo, o ódio que herdei de ti, ainda o tenho. Mas agora é um ódio maior, mais forte, é diferente, tem outra qualidade. É uma força que me faz lutar e esta luta é a principal razão da minha vida. O estar aqui também o devo a ti, mãe. Essa força já a bebi com o teu leite e agora circula no meu sangue. É por ti que estou aqui, por ti, minha mãe, camponesa de mãos duras, olhos lindos e rosto emoldurado em rugas. Eu vejo-te em muitas destas mulheres que saem com os seus sacos do mercado. Na tua vida leio a vida delas – tão dura, tão negra. Antes, quando ia contigo à barragem de Bemposta não sabia porque tudo isto era assim. Agora sei. É por isso que estou aqui, mãe!»
Amadeu Ferreira
Nota do editor: O texto é dos inícios dos anos 80 do séc.passado.A fotografia é dos Arquivos do blog.

6 comentários:

  1. Até arrepia e os jornais a falarem de um tal Salgado,gatuno de profissão,banqueiro como disfarce, mereci que lhe enviassem todos os toros de couve que se venderam nas barragens do Douro por um lugar que coubessem.Junto as duas letras que faltam ao BES :TA
    Espirito Santo

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  2. Só uma justiça insonsa aguenta tanto Salgado.Tempera,filho,tempera.

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  3. TEXTO FORTE, BEM "PUXADO" E DURO, TAL COMO AS VIDAS DOS NOSSOS TRANSMONTANOS.REVEJO NELE A MINHA MÃE E AMIM PRÓPRIO, QUANDO IA DE MADRUGADA COM O MEU AVÔ,VENDER MELÕES E MELANCIAS DA CARDANHA PARA ALFÂNDEGA DE FÉ.
    FONTES DE CARVALHO

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  4. UM TEXTO CRU, BEM "PUXADO" E DURO, COM A VIDA DOS NOSSOS TRANSMONTAMOS. REVEJO A MINHA MÃE E EU PRÓPRIO, QUANDO IA DE MADRUGADA COM O MEU AVÔ, COM OS BURROS CARREGADOS DE MELÕES E DE MELÂNCIAS DA CARDANHA ATÉ ALFÂNDEGA DA FÉ.
    FONTES DE CARVALHO(LARINHO)

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  5. Os erros que a distracção faz! Queria dizer "...como a vida dos nossos transmontanos"
    Tiro o "chapéu" às melancias.
    Fontes de Carvalho

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  6. Um texto que sacode as entranhas e faz doer os dentes de raiva. Um trecho que vale mais do que vários tratados de sociologia, de economia e de política..

    Abraço
    Júlia

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