domingo, 13 de julho de 2014

Setenta anos de NOVOS CONTOS DA MONTANHA de Miguel Torga, por M. Hercília Agarez

Setenta anos de NOVOS CONTOS DA MONTANHA de Miguel Torga

Nirvana

Paz da montanha, meu alívio certo.
O girassol do mundo, aberto,
E o coração a vê-lo sossegado.
Fresco e purificado,
O ar que se respira.
Os acordes da lira
Audíveis no silêncio do cenário.
A bem-aventurança sem mentira:
Asas nos pés e o céu desnecessário.

                                                                                                    Miguel Torga, in Diário VII


    Montanha. Palavra mágica para o poeta que nasceu no meio das fragas transmontanas onde crescem a urze, a giesta e o rosmaninho. E também os tojos que lhe inspiram um traço de autocaracterização – “tojo arnal”. Torga é como as rochas que o embalaram – duro, resistente à erosão, poiso para descanso, solitário. “Eu sou um homem de granito”, afirma.
    Dividido entre o mar e a terra – “eu sou um animal anfíbio” – é ela a sua matriz, a sua pátria, a sua raiz, o seu paraíso, o seu “chão sagrado”.  E de toda esta “nesga de terra debruada de mar” sobressai, em toda a sua evidência, a paixão por Trás-os-Montes. Ele o diz numa entrada do Diário VII escrita no Gerês: “[…] O pouco que sou devo-o às fragas. Foi a pisá-las que aprendi a conhecer a dureza do mundo e a admirar o ímpeto que se não resigna à lisa sonolência duma paz interior espalmada. A inquietação da terra vê-se nos montes. […]”
   Veio à luz em S. Martinho de Anta, “debaixo de telha”, já que a mãe andava, naquele dia 12 de Agosto de 1907, a juntar o milho na eira contígua ao casebre paterno, com uma vassoura de codessos, quando lhe rebentaram as águas. Na aldeia foi o aluno mais distinto do professor Botelho, mas também um garoto travesso como os ganapos com quem brincava.
    Inteligente, precoce observador da realidade social que rodeava a sua infância, familiarizado com o quotidiano rural , pequeno aprendiz de tarefas agrícolas, estranhamente consciente da sua dureza  e da exploração do trabalhador, a sua memória guardará até ao fim esse passado. Com as raízes tão fundamente enterradas no solo nativo como a torga que lhe deu o apelido de artista, não admira que a obsessão da montanha física e humana lhe tenha inspirado muitos  poemas, uma peça de teatro (Terra Firme), comunicações, incontáveis entradas nos dezasseis volumes do Diário, colectâneas de contos.
    Em 1941 publicou o livro Montanha, logo apreendido pela censura. Embora impermeável a quaisquer influências de correntes literárias, os contos não andavam longe dos pressupostos da corrente neo-realista cujo marco foi Gaibéus, de Alves Redol, datado de 1940. Em 1955 sairá uma segunda edição no Rio de Janeiro com o título Contos da Montanha que viajou clandestinamente até ao nosso país. A terceira edição, de 1962, é ainda da responsabilidade de um país que consumiu a adolescência do então Adolfo Rocha.
    Mas não é este conjunto de histórias de vida protagonizadas pela gente iletrada e humilde da sua região que justifica esta breve abordagem. O que pretendemos, neste ano de 2014, é assinalar o septuagésimo aniversário da primeira edição de Novos Contos da Montanha de que constam dezassete narrativas às quais vieram a juntar-se seis nas edições posteriores, revistas, refundidas, aumentadas, com prefácios (três delas). Curioso é que o autor tenha excluído de todas elas o conto “Firmeza”, talvez o mais cruamente acusatório da tirania dos “senhores” com aqueles desgraçados sem poder reivindicativo e com receio de perderem o magro ganha-pão.
    Novos Contos vêm dar sequência ficcionada aos Contos. O mesmo cenário, a mesma atracção pelas alturas rochosas, personagens de nomes e vidas diferentes, mas protagonizando dramas próprios da sua qualidade de gente rude, humilde, frontal, autêntica. Contos, quase todos eles, de desenlace intuído pelo leitor que conhece a massa de que são feitos homens e mulheres a quem o destino ditou a desgraça na vida e na morte.
    Deste livro foram feitas quinze edições em português. Foi traduzido para polaco e para castelhano, tendo sido ultrapassado por Bichos que chegou à 19ª edição (1995) e teve traduções em sete línguas.
    Socorramo-nos de excerto da prefácio à terceira edição (1952) para compreender o espírito que presidiu à escrita destes contos:

                                                                                     Leitor amigo:


    […] Painel tosco e montanhês, como sabes. Mas nosso, quer queiramos, quer não, e dos outros também, quando a curiosidade dos outros der a volta ao mundo.
Então, embora sorriam da ingénua pintura do artista, hão-de certamente render-se à penitente grandeza desses irmãos serranos, que se purificam com o sofrimento universal num purgatório de chamas transmontanas.

    Na conferência proferida em Pedras Salgadas em 1941, durante o Segundo Congresso Transmontano – Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes) – , posteriormente incluída em PORTUGAL, Miguel Torga, numa análise exaustiva da realidade transmontana em todas as suas vertentes, define o carácter do homem que, como ele, se plasmou nos rigores de um cantinho esquecido e abandonado, mau grado as suas potencialidades materiais e imateriais. E escreve:

    […] Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão. Castiços nos usos e costumes, cobrem-se com varinos, croças, capuchas e mais roupas de serrobeco ou de colmo, e nas grandes ocasiões ostentam uma capa de honras, que nenhum rei!
    […] Fiéis à palavra dada, amigos do seu amigo, valentes e leais, é movidos por altos sentimentos que matam ou morrem. Ufanos da alma que herdaram querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros, é deles, realmente. […]

    Com efeito, se bem que as personagens das narrativas se movam num chão geograficamente assinalado e que se divide entre Trás-os-Montes e o Alto-Douro, se a acção de cada uma decorre num tempo determinado (década de quarenta do século passado), os sentimentos que os movem, por serem humanos, bons e maus, transformam-nos em heróis (ou anti-heróis) intemporais e universais. Traços como o trabalho resignado, a aplicação da justiça segundo a Pena de Talião, a defesa da honra, a solidariedade, a conciliação do divino com o profano, o espírito do antes quebrar que torcer, o ciúme, a aceitação do destino traçado por Deus, tudo isto e não só, confirma aquela frase do escritor que qualquer torguiano que se preze gosta de citar: “O universal é o local sem paredes” com que o homem de S. Martinho enceta um parágrafo da conferência “Trás-os-Montes no Brasil” apresentada no Rio de Janeiro e em S. Paulo em 1954 e que continua assim:

É o autêntico que pode ser visto de todos os lados, e em todos os lados está certo, como a verdade. Ora Trás-os-Montes é uma realidade sem muros, esse torrão aberto aos olhos do mundo, cioso de lhe pertencer e de o servir.

    Ler os contos de Miguel Torga é compreender a identidade transmontana do “Entre quem é!” que o tempo empurrou para o abismo. É conhecer uma realidade a que a efabulação não retirou verosimilhança. É recuar ao passado para melhor valorizar o presente. É degustar uma escrita viva, exemplar, emotiva, poética, despojada. É regalar-se o leitor com o tipicismo da linguagem regional, comover-se com dramas irreversíveis, revoltar-se com desenlaces catárticos. É mostrarmo-nos dignos do legado literário de um comprovinciano que voou mais alto sem perder, como escreveu, “a virgindade do coração”. Um homem a quem arrancaram do berço e que nunca consegui enraizar-se em nenhum outro lugar.
     “Vou e venho. Perco-me por lá, encontro-me aqui”, escreve numa visita às berças onde se desloca para “tonificar a esperança”, para ir em busca da “estabilidade perdida”, para, pisando a terra, sentir a inexpugnabilidade de Anteu.

    S. Martinho de Anta, 20 de Setembro de 1968 – De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tamanho do gigante à escala humana, e o corpo divino da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. […] Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva.
[…] Devotado de corpo e alma a estes montes, não concebo desgraça maior do que deixá-los para sempre na sombra de uma saudade desiludida. […]

                                                                                                                                              Diário XI



M. Hercília Agarez, Julho de 2014

4 comentários:

  1. Mário Sérgio :
    Como posso obter esses Novos Contos da Montanha de Miguel Torga .? Por favor indiquei-me uma formad de os obter ..Agradecido desde ja

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  2. Li com muita atenção .Miguel Torga é muito falado,pouco lido e praticamente nada estudado.Aqui temos um belo naco deprosa,estudo e Torga.Não seria possível os senhores do blog pedirem mais texto a Hercília Agarez sobre Torga?Criar uma pequena tertúlia onde os textos do autor fossem acompanhados por guia de leitura.Fica a sujestão e o agradecimento pelo publicado.Bem haja minha Senhora.
    Alberto Gomes

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  3. Obrigada, querida Hercília, por um texto tão cheio de força e de poesia. E muito saber sobre Torga.

    Concordo com a sugestão de Alberto Gomes.

    Um grande abraço,
    Júlia Ribeiro

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  4. Ana Diogo :
    Belo texto de homenagem aos 70 anos dos Novos Contos da Montanha. Com belíssimos excertos.

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