Histórias da terra
Hélder Rodrigues nasceu na aldeia de Morais, concelho de
Macedo de Cavaleiros, em plena Terra Quente Transmontana e, tanto quanto
julgamos saber, tem passado o grosso da sua existência neste mesmo ambiente
geográfico e telúrico: Macedo de Cavaleiros, Mirandela, Carrazeda de Ansiães.
Homem a quem a carreira académica e profissional não
obliterou a ruralidade, antes a terá confirmado e reforçado, é na realidade
rural deste triângulo que situa a sua obra ficcional.
Os seus contos são como que um documento, fidedigno como uma
escritura notarial, da realidade física, paisagística, ambiental, humana, do
meio de que está rodeado.
As histórias compreendidas em Terra Parda estão geralmente
datadas de meados do séc. XX, época da infância do Autor, que as deve ter
ouvido contar, ou mesmo testemunhado pessoalmente algumas delas, nessa época da
vida em que tudo se grava com nitidez na memória e que, para o escritor, é como
uma espécie de arca de onde vai desenterrando personagens, cenários, situações,
enredos.
Os protagonistas dos contos de Terra Parda são homens e
mulheres rudes e inteiriços, talhados no granito e no xisto que lhes serviu de
berço, aconchegados nos ditames da sua identidade cultural, que vivem histórias
ora extraordinárias, ora banais, muitas vezes salpicadas de tragédia, outras
vezes de humor. E por vezes com um toque de picaresco que sabe sempre bem. Por
exemplo, lê-se o conto "Malaquias" (um dos mais extensos do livro,
que conhecera já uma publicação prévia, com titulo diferente, no volumezinho A
Solto, de 1999) e tudo nele nos leva a pensar no Molhodinhas, de Aquilino
Ribeiro, desde o próprio titulo até ao modo como se organiza e encerra a
narrativa. As diferenças não são muitas: em vez de andanças por serranias da
Beira Alta, fala-se ai de outras andanças por terras estranhas, mas o tónus é o
mesmo e é o mesmo o "homem das arábias" que conta a sua historia aos
que se dispões -se a ouvi-lo.
Os contos de Terra Parda fazem-nos viajar por barrocais
alpestres, onde tanto é possível encontrar lobos como quadrilhas de
bandoleiros, assistir a feiras e negócios de feira, a partos e a mortes e a
actos de vingança, acompanhar pequenos e grandes dramas pessoais. Em alguns
repercute a realidade politica da época, com a Pide e a PSP todas poderosas que
iam ao ponto de controlar até o nome dos bois,
Impressiona sobremaneira a genuinidade dos diálogos. Vé-se
bem que não se trata de um estranho que imita com sucesso o falar das gentes da
Terra Quente, mas sim de um nativo, que nasceu e se criou a ouvir e a exercitar
aquele falar, reproduzindo sentimentos, volições, emoções, promessas, ameaças,
juras, queixumes, exactamente como os outros nativos — a gente do seu povo — o
fazem desde há séculos.
Alguns dos contos são exemplares de um ponto de vista da
técnica da narração. Sóbrios, progridem com segurança até encontrarem os pontos
fortes — pontos de viragem em que se decide a sorte das personagens e o
desfecho das situações. Terra Parda é pois um conjunto de textos que se deixa
ler (com tudo o que vai nesta forma simples de dizer, desde a legibilidade
propriamente dita à linearidade narrativa e à ausência de assomos
intelectualizantes) corri gosto e proveito. São histórias da terra, com o
quantum satis — nem a mais, nem a menos — de sal da mesma terra. São, como se
disse, um documento verídico — e isto já não é dizer pouco. Está de parabéns o
autor e está de parabéns a Ter. Quente, que é o verdadeiro altar do acto de
culto que este livro constitui.
Noto: - Este texto foi escrito com deliberada inobservância
do assim chamado Acordo (?) Ortográfico.
A. M. Pires Cabral
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