O Porco, não sendo um animal consagrado nas escrituras do registo civil, nem digno de
culto pelas religiões, é
um fiel representante da cultura
gastronómica
portuguesa. Obrigatório nas mais simples ou sumptuosas mesas de casamentos e baptizados, as suas carnes
são as vítimas favoritas da trincha ou
de um bom garfo, desde a fase
de Leitão.
A sua
vida, na humilde cortelha, entre o estrume e
os grunhidos é pouco apreciada pelos comuns humanos e outros rectos de espírito, que
não têm em conta o seu grau de
inteligência.
Para bem
dos pecados da Natureza, o Larego é polivalente na
sua morfologia ou modo de vida, desde o Porco Montês ao bem adaptado ao meio aquático, o Porco Marinho, ele não
existe apenas como animal doméstico ou em prisão preventiva nas pocilgas,
antes da execução sumária.
Entretanto as mulheres lavam as tripas num ribeiro |
A sua
carne famosa faz as delícias das montarias nos barrancos
do interior e os dentes de
marfim em
miniatura o grande terror, pois tal como os forcados
amadores, os amantes do Gazalote arriscam-se a dolorosas
ferroadas quando o tiro não é certeiro.
O Cerdo na vizinha Espanha é
outro dos amantes da Natureza,
vive em extensas quintas na Grande
Meseta Ibérica e pasta em varas consideráveis juntamente com vacas e ovelhas. Mas
o Suíno vulgar tem uma vida triste e miserável, acabando como Berrão, capado com
uma
navalha ou preso a um banco de madeira para ser sangrado com uma faca comprida, até ao coração.
O animal é dominado por meia dúzia de homens valentes e grita durante a
sangria prolongada até à
morte por hemorragia maciça, após quase meia hora de espectáculo.
Depois de findos os grunhidos e
resfolgarem os beiços pálidos e
os olhos se esvaziarem do terror da mortandade, o Varrão é chamuscado com palha em chamas, para que os
pêlos de mamífero regridam. É ainda raspado com facas e lavado com sabão caseiro e esfregão de arame, para que o tostado coiro do Cochino fique bem lustroso
e agradável à vista.
Em seguida
é estripado e
aberto ao meio por
um especialista em corte, retira-se a tripa engulideira e as restantes vísceras e fica 24 horas em repouso, para confirmação do óbito.
Entretanto as mulheres lavam as tripas num ribeiro de água corrente e os homens preparam a
salgadeira com sal grosso. No dia seguinte retalha-se a carne
do Tó e reparte-se por diferentes alguidares, de acordo com os condimentos e
destinos da carne.
O dia dos enchidos é a continuação desta
grande festa em família, com
as fogueiras para aquecer as caldeiras de água e as mulheres a encher as tripas com as
carnes temperadas.
O Salpicão fica com a melhor parte, a Chouriça com a carne intermédia e
as Bochas com a
carne mais fraca. O que resta no fundo do tacho e
alguns ossos pequenos
segue para uma tripa mais grossa e tem o
nome de Piriquito.
As Alheiras vêm a seguir e
foram uma invenção dos cristãos novos, na tentativa de inserção
na comunidade cristã, que fizeram um fumeiro idêntico, mas sem a carne do tão odiado
animal, substituída por pão e
carne de galinha, para não ofenderem as antigas crenças
religiosas. As morcelas doces são
feitas a partir do
sangue derramado na matança,
juntamente com fatias muito finas de
pão de trigo, amêndoas e mel de abelha, uma verdadeira iguaria doce e negra, no meio do restante fumeiro, do presunto, da pá, da
orelha, da pata e do focinho,
que são comidos em dias festivos, em
piqueniques ou nos encontros
nacionais dos trabalhadores da construção civil, entre o meio-dia e
a uma da tarde.
Tiago Patrício
Foto dos enchidos:Lb
Foto da lavagem na ribeira:Augusto Cabrita
Tiago. Obrigado por este belo texto. Mas... ao contrário do sugerido, o porco é mesmo um animal consagrado em escrituras antigas, das mais antigas mesmo. Foi consagrado em escrituras de pedra, quando a de letras ainda nem existia. Com efeito, existem muitas esculturas do tempo dos Celtas, atestando a vivência destes povos no Noroeste da Península Ibérica. Só no Olival dos Berrões, na Vilariça, foram encontradas 7 estátuas desse animal que ainda hoje se conservam no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa. J. Andrade
ResponderEliminarTem toda a razão.
EliminarObrigado pelo reparo.
Tiago
Obrigada ao Tiago pelo excelente texto. Obrigada ao António Júlio pela informação com que nos enriquece,
ResponderEliminarAbraço
Júlia Ribeiro