terça-feira, 1 de julho de 2014

Sangrado e Salgado,por Tiago Patrício


O Porco, não sendo um animal consagrado nas escrituras do registo civil, nem digno de culto  pelas  religiões,  é  um  fiel  representante  da  cultura  gastronómica  portuguesa. Obrigatório nas mais simples ou sumptuosas mesas de casamentos e baptizados, as suas carnes são as vítimas favoritas da trincha ou de um bom garfo, desde a fase de Leitão.
A sua vida, na humilde cortelha, entre o estrume e os grunhidos é pouco apreciada pelos comuns humanos e outros rectos de espírito, que não têm em conta o seu grau de inteligência.
Para bem dos pecados da Natureza, o Larego é polivalente na sua morfologia ou modo de vida, desde o Porco Montês ao bem adaptado ao meio aquático, o Porco Marinho, ele não existe apenas  como  animal  doméstico  ou em prisão  preventiva nas pocilgas,  antes da execução sumária.
 Entretanto as mulheres lavam as tripas num ribeiro 
A sua carne famosa faz as decias das montarias nos barrancos do interior e os dentes de marfim em miniatura o grande terror, pois tal como os forcados amadores, os amantes do Gazalote arriscam-se a dolorosas ferroadas quando o tiro não é certeiro.
O Cerdo na vizinha Espanha é outro dos amantes da Natureza, vive em extensas quintas na Grande Meseta Ibérica e pasta em varas consideráveis juntamente com vacas e ovelhas. Mas o Suíno vulgar tem uma vida triste e miserável, acabando como Berrão, capado com uma navalha ou preso a um banco de madeira para ser sangrado com uma faca comprida, até ao coração.
O animal é dominado por meia dúzia de homens valentes e grita durante a sangria prolongada até à morte por hemorragia maciça, após quase meia hora de espectáculo.
Depois de findos os grunhidos e resfolgarem os beiços lidos e os olhos se esvaziarem do terror da mortandade, o Varrão é chamuscado com palha em chamas, para que os pêlos de mamífero regridam. É ainda raspado com facas e lavado com sabão caseiro e esfregão de arame, para que o tostado coiro do Cochino fique bem lustroso e agradável à vista.
Em seguida é estripado e aberto ao meio por um especialista em corte, retira-se a tripa engulideira e as restantes vísceras e fica 24 horas em repouso, para confirmação do óbito. Entretanto as mulheres lavam as tripas num ribeiro de água corrente e os homens preparam a salgadeira com sal grosso. No dia seguinte retalha-se a carne do Tó e reparte-se por diferentes alguidares, de acordo com os condimentos e destinos da carne.

O dia dos enchidos é a continuação desta grande festa em família, com as fogueiras para aquecer as caldeiras de água e as mulheres a encher as tripas com as carnes temperadas. O Salpicão fica com a melhor parte, a Chouriça com a carne intermédia e as Bochas com a carne mais fraca. O que resta no fundo do tacho e alguns ossos pequenos segue para uma tripa mais grossa e tem o nome de Piriquito.
As Alheiras vêm a seguir e foram uma invenção dos cristãos novos, na tentativa de inserção na comunidade cristã, que fizeram um fumeiro idêntico, mas sem a carne do tão odiado animal, substituída por pão e carne de galinha, para não ofenderem as antigas crenças religiosas. As morcelas doces são feitas a partir do sangue derramado na matança, juntamente com fatias muito finas de pão de trigo, amêndoas e mel de abelha, uma verdadeira iguaria doce e negra, no meio do restante fumeiro, do presunto, da pá, da orelha, da pata e do focinho, que são comidos em dias festivos, em piqueniques ou nos encontros nacionais dos trabalhadores da construção civil, entre o meio-dia e a uma da tarde.

 Tiago Patrício

Foto dos enchidos:Lb
Foto da lavagem na ribeira:Augusto Cabrita

3 comentários:

  1. Tiago. Obrigado por este belo texto. Mas... ao contrário do sugerido, o porco é mesmo um animal consagrado em escrituras antigas, das mais antigas mesmo. Foi consagrado em escrituras de pedra, quando a de letras ainda nem existia. Com efeito, existem muitas esculturas do tempo dos Celtas, atestando a vivência destes povos no Noroeste da Península Ibérica. Só no Olival dos Berrões, na Vilariça, foram encontradas 7 estátuas desse animal que ainda hoje se conservam no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa. J. Andrade

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    1. Tem toda a razão.
      Obrigado pelo reparo.
      Tiago

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  2. Obrigada ao Tiago pelo excelente texto. Obrigada ao António Júlio pela informação com que nos enriquece,

    Abraço
    Júlia Ribeiro

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