Fotografia: Rui Manuel Ferreira |
Seja por vontade própria ou porque um
dia a memória o atraiçoou, "Manel da mala", como é apelidado na
região do Douro Vinhateiro, é o perfeito desconhecido.
Ou um conhecido imperfeito, na medida
em que, até hoje, de Moncorvo a Foz-Côa, onde viveu os últimos 60 anos, o homem
que já terá dobrado os 90 não só nunca revelou nada sobre si mesmo, como deu
argumentos para que os seus primeiros 30 anos de vida configurassem um livro
não escrito de meras especulações. Tanto que, na falta de rigor sobre os
elementos básicos de um bilhete de identidade, que nunca exibiu, como o nome,
idade ou naturalidade, e perante o desconhecimento sobre se é casado ou tem filhos,
cresce a lenda.
PJ IDENTIFICA DEZENAS DE
CIDADÃOS-FANTASMAS
Conta-se que nos fins dos anos 50 do
século passado, a localidade de Moncorvo despertou para a solidão de um jovem
tímido, com manifesta dificuldade em articular as palavras e sem emprego na vila
onde acabara de chegar.
E, como terá dado a ideia que tinha
aparecido para ficar, embora dormisse na rua e mais tarde num casebre, Manel
carregou sacos de amêndoa na antiga União Agrícola, a troco de quase nada, e
chegou a ser incumbido de ir buscar o correio ao comboio, nomeadamente as
películas de cinema que eram exibidas na vila.
"Não pedia nada a ninguém.
Quando tinha fome cantava, e, se não era um, era outro, davam-lhe de
comer", recordou Júlio Castelo, de 66 anos, que ainda era miúdo quando conheceu
o Manel na taberna da família. Contudo, terá sido junto dos elementos que
compunham a banda de música que Manel foi rebatizado. "Era perdido pela
banda e, além de não faltar aos ensaios, ia connosco para as atuações,
transportando a mala das partituras. E daí a alcunha", explicou, sorrindo,
Adriano Catalão, que gere um pronto-a-vestir em Moncorvo e integrou a
filarmónica da terra.
Experiência traumática
Entre pontos que se acrescentam ao
conto, sobressai no entanto a história de que "Manel da mala" foi
motorista numa corporação de bombeiros do Norte do país e que o atropelamento
mortal de um peão lhe mudou a vida. É, aliás, a este hipotético episódio que
muitos atribuem a perda de memória ou o encerramento voluntário do passado na
sua própria "mala".
Para Francisco Camelo, também
residente em Moncorvo, a história, ou pelo menos parte dela, é credível.
"Cheguei a ver-lhe na carteira uma carta de condução de pesados da antiga
Direcção-Geral de Viação do Norte com o número 8", precisou. "E tinha
o nome Manuel Silva e mais qualquer coisa que não me recordo", disse
também. Dados que "Manel da mala" não confirmou nem desmentiu.
Confrontado pelo JN no Lar da
Misericórdia de Foz-Côa, onde vive desde 2003, o homem misterioso, a quem a
diabetes já levou uma perna, pouco mais consentiu do que o nome próprio. Quanto
às demais perguntas, Manel manteve a reserva, mas entre um cigarro e outro que
fumava sofregamente, respondeu que não tinha família.
Fez uma pausa como se esperasse que a
cortina de fumo lhe escondesse o olhar vivo e atirou: "Anda pelo Mundo,
mas não tenho saudades".
Manuel não sabe quem é. Ou não quer
saber?
Fonte: http://www.jn.pt/nacional/interior/manel-da-mala-nada-diz-sobre-a-vida-que-teve-5262029.html
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.