Na segunda metade do século XIX, começam a fazer-se sentir
em Portugal as primeiras tendências de industrialização e, com elas, toda uma
nova dinâmica de transformação do país nunca antes vista, fazendo estremecer
inexoravelmente uma sociedade que há muito parecia ter cristalizado num
imobilismo persistente. Tardiamente acabariam por ser adoptadas, nas velhas
manufacturas, as inovações técnicas desenvolvidas pelos físicos François Cugnot
e James Watt que, consistindo no aproveitamento da força elástica do vapor de
água, se traduziam, quando aplicadas à indústria, numa substituição do trabalho
muscular pela mecanização. Com efeito a inexistência no país de uma classe
mercantilista fortemente desenvolvida impediu que se tivesse processado uma
acumulação de capitais, de molde a tornar mais célere e vigoroso o arranque da
nossa Revolução Industrial. No entanto, condicionalismos históricos estruturais
determinaram que áreas geograficamente restritas do território nacional
iniciassem um processo de crescimento económico relativamente acelerado quando
comparadas com outras, principiando-se assim uma génese de desequilíbrios
regionais cumulativos, cuja intensidade se tem vindo a agravar até à
actualidade. Foram alguns centros urbanos de maior dimensão, localizados no litoral,
aqueles onde a nova dinâmica transformacional se sentiu de uma forma mais
acutilante, porque para além das disponibilidades financeiras se concentrarem
nestas paragens, estas eram simultaneamente lugares onde existia um mercado
local considerável, ao qual se juntaria outro, muito mais vasto, facultado pelo
contacto que o mar ou os rios navegáveis permitiam com as regiões distantes.
As novas técnicas foram responsáveis, em primeira instância,
por um aumento sensível da capacidade produtiva dos centros manufactureiros do
litoral, motivando por parte destes, um súbito empolamento económico em relação
às regiões periféricas. Numa primeira fase, assistiu-se a um intensificar das
trocas comerciais entre os centros urbanos e o seu "hinterland" próximo,
de matérias primas por produtos manufacturados, mas esta cedo foi ultrapassada,
dando lugar a outra na qual se verificaria um uso cada vez maior das vias de
comunicação tradicionais, recaindo principalmente sobre as rotas marítimas e
fluviais pois os caminhos terrestres eram quase inexistentes. Finalmente, a
necessidade de expandir o mercado para os bens industriais começou a ser
satisfeita pela introdução do caminho-de-ferro, desenvolvido no início do
século em Inglaterra, onde pela primeira vez se aplicou a tracção a vapor para
a locomoção de veículos sobre carris. Irrompendo através de regiões remotas ou
decalcando rotas tradicionais, é à ferrovia que se deve a constituição de um
mercado à escala nacional e, em alguns casos, até mesmo internacional, pois o novo
modo de transporte conseguiu, com a redução das distâncias-tempo, transportar
as mercadorias a custos reduzidos em relação ao seu valor.
É nesta perspectiva que se enquadra a origem do caminho de
ferro do Vale do Douro. O esforço dispendido na sua construção denota bem a
vontade que a burguesia mercantilista do Porto do século XIX tinha em expandir
os seus mercados em direcção às províncias isoladas de Trás-os-Montes e do Alto
Douro. Juntava-se-lhes os interesses dos viticultores do Paiz do Vinho, os
quais desejavam um modo mais eficaz de exportar os produtos da sua lavoura
extensiva. Finalmente, conjugavam-se esforços de financeiros nacionais e da
vizinha Espanha para fazer deste caminho-de-ferro uma via directa entre a
grande cidade do Norte de Portugal e o encravado interior da península, para
cujos produtos, exportados ou importados, os portos da Alfândega e Leixões
seriam a porta natural.
Quando em 1867 o Governo propôs às Câmaras a construção das
linhas do Porto a Braga e à fronteira do Minho e do Porto ao Pinhão,
iniciava-se o processo de construção do caminho de ferro ao Norte do Rio Douro,
confirmando-se este pela aprovação de tal proposta, consubstanciada em
Decreto-Lei de 2 de Julho do mesmo ano. Neste caso, não se registaram problemas
de natureza idêntica aos ocorridos aquando da génese das redes do Norte e Leste
e Sul e Sueste, uma vez que a bitola ibérica de 1674 mm estava já perfeitamente
implantada no território, até mesmo antes da via férrea entre Lisboa e Gaia ter
sido concluída (1864). Todavia, só cinco anos mais tarde (14 de Julho de 1872)
se decretou a construção da Linha do Minho e novos estudos da do Douro, nas
imediações de Penafiel.
O esforço dispendido na sua construção denota bem a
vontade que a burguesia mercantilista do Porto do século XIX tinha em expandir
os seus mercados em direcção às províncias isoladas de Trás-os-Montes e do Alto
Douro
Os primeiros trabalhos de construção do caminho de ferro ao
Norte do Douro iniciaram-se com a Linha do Minho, numa cerimónia solene
ocorrida a 8 de Julho de 1872. O seu percurso inicial, das proximidades de
Campanhã até à localidade de Ermezinde, seria comum ao caminho de ferro do Vale
do Douro, numa extensão de nove quilómetros. As obras da Linha do Douro, a
Leste de Ermezinde, iniciar-se-iam a 8 de Julho de 1873, através duma região
acessível e sem grandes acidentes de terreno até Penafiel. Em 1875, são
formalmente abertos à exploração pública os primeiros troços de caminho de
ferro ao Norte do Douro (que na época não possuíam ainda qualquer ligação com o
Sul do país): a 20 de Maio até Ermezinde e Braga e em 30 de Julho, de Ermezinde
a Penafiel.
Não possuímos descrições detalhadas do material primitivo
que inaugurou este primeiro troço da Linha do Douro. Um sêlo comemorativo do
centenário dos caminhos de ferro ao Norte do Douro, editado pelos CTT em 1977,
mostra-nos uma ilustração do que poderia ter sido uma das primeiras composições
da linha, formada por uma locomotiva a vapor de chaminé alta e
"tanque-de-sela", em tudo semelhante à 02049 MD, existente na secção
museológica de Braga. A composição, formada por um vagão de carvão e duas
carruagens de dois eixos, é saudada pelos populares que envergam trajes típicos
do Douro Litoral.
As verdadeiras dificuldades na construção do caminho de
ferro do Douro iam agora começar, à medida que se fosse avançando para Leste.
Primeiramente, foi necessário vencer as linhas divisórias de água entre o Sousa
e o Tâmega, e surgiram os primeiros túneis; depois de transpor o segundo destes
rios através dum importante viaduto metálico, a via férrea teria agora que
atravessar um terreno difícil, numa sucessão de valeiros e montes, até se
encaixar na garganta do Douro, por alturas da Pala. A partir de aqui, o caminho
de ferro nunca deixaria, practicamente, de acompanhar o percurso ribeirinho até
ao seu destino final, encaminhando-se longitudinalmente ao longo das baixas
vertentes dos montes sobranceiros, cujos xistosos paredões foram esventrados
pelos operários, à força das picaretas e da dinamite; as pontes e os túneis
continuavam a ser necessários, quando, pontualmente, se atravessava um afluente
do grande rio ou um monte de grandes dimensões.
O importante entreposto comercial que já era, na época, a
Régua, passou a ser servido por via férrea a partir de 15 de Julho de 1879, e a
importante localidade do Pinhão, em 1 de Junho de 1880. O troço final, até à
fronteira, viu a sua construção decretada por lei, de 23 de Julho de 1883, ao
mesmo tempo que se reuniam capitais para a construção, em território espanhol,
dum troço que encaminhando-se para o Vale do Douro, desse continuidade ao seu
caminho de ferro, pondo-o em contacto com os planaltos interiores de Castela, a
partir dos quais facilmente se alcançariam Salamanca e Madrid. Ambas as linhas
deveriam encontrar-se em Barca d'Alva, nas proximidades da confluência dos rios
Águeda e Douro, fazendo-se o atravessamento do primeiro através duma ponte
internacional.Do lado português inauguraram-se os lanços Pinhão-Tua em 1 de
Setembro de 1883, e Tua-Pocinho em 10 de Janeiro de 1887, passando a via férrea
neste troço a localizar-se na margem esquerda do Douro, depois do atravessar
numa importante ponte metálica, no lugar de Ferradosa (Vale de Figueira).
As dificuldades de construção foram particularmente sentidas
na parte terminal da via férrea que entretanto se estava a estabelecer em
território espanhol, sob a égide da Compañia del Ferrocarril de Salamanca a la
Frontera Portuguesa. Tratava-se duma linha que se bifurcava do caminho de ferro
de Salamanca à Beira Alta, no lugar de Boadilla-Fuente de San Esteban;
encaminhando-se deste ponto para o Noroeste, percorria extensas planuras até ao
povoado de Lumbrales, na estrada de Vitigudino, e aí chegou como ramal
temporário, no início de 1887. Continuando-se a sua construção, tomou-se
contacto com as primeiras adversidades do terreno, à medida que se ia avançando
na direcção de La Fregeneda e da garganta do Águeda. A partir deste ponto, foi
necessário construir uma autêntica via férrea alpina, com curvas de raio mínimo
de 300 m e rampas de 21 milésimas. Em apenas 17 quilómetros construíram-se, com
capitais portugueses, treze grandes pontes metálicas e numerosos túneis, para
que se estabelecesse entre o Porto e a restante Europa a mais directa via
terrestre que existiu até hoje. A 8 de Dezembro de 1887, estava concluído o
caminho de ferro, desde a bifurcação de Salamanca até à ponte internacional do
Rio Águeda.
Finalmente, a 9 de Dezembro, era aberto à exploração o
troço Pocinho-Barca d'Alva-Ponte Internacional, ficando assim definitivamente
concluído o caminho de ferro do Douro
Finalmente, a 9 de Dezembro, era aberto à exploração o troço
Pocinho-Barca d'Alva-Ponte Internacional, ficando assim definitivamente
concluído o caminho de ferro do Douro. Nesse dia, realizou-se uma cerimónia
solene, na qual o primeiro combóio oficial vindo do território português, se
encontrou com outro, oriundo de Espanha, rigorosamente a meio da Ponte Internacional.
As duas máquinas encostaram os cabeçotes e foram atreladas entre si.
Seguidamente, a extravagante composição recuou até Fregeneda, onde as
comemorações continuariam, sob a forma dum "lunch".
Estabelecido o grande eixo ferroviário internacional, dinamizou-se
a economia regional do Douro e estimularam-se as actividades portuárias e
exportadoras do Norte do país.
Circulavam comboios de mercadorias de natureza diversa,
rebocados por locomotivas britânicas, de marca Beyer Peacock ou Sharp Stewart
-- as mais modernas do mundo, na época; os bens manufacturados viajavam, em
maior peso, no sentido Oeste-Leste, enquanto que na direcção contrária
predominavam as matérias-primas e os produtos agrícolas. Os serviços de
passageiros revelaram-se, desde logo, bastante importantes, sob o ponto de
vista local, não existindo, nos primeiros tempos da exploração, comboios
internacionais de relevo: as composições limitavam-se a dar correspondência aos
serviços espanhóis, na estação de Barca d'Alva. Contudo, criar-se-ia no início
do século XX um serviço rápido directo, ligando o Porto a Medina del Campo, com
correspondência assegurada neste ponto para Madrid e Hendaye. Os rápidos
Porto-Medina ficaram conhecidos para sempre pelas populações do Norte como
tendo sido os mais cómodos e eficientes comboios que serviram a região até
hoje. Como curiosidade, podemos referir que a carruagem restaurante usada neste
serviço sobreviveu milagrosamente até aos nossos dias, encontrando-se
resguardada no depósito de locomotivas a vapor de Casa Branca.
A importância da Linha do Douro afirmou-se cada vez maior,
nos três primeiros decénios do nosso século, com o desenvolvimento das vias
estreitas de penetração no interior da província de Trás-os-Montes, as quais
permitiriam canalizar para este eixo, um significativo acréscimo de passageiros
e mercadorias oriundos destas paragens. No final dos anos vinte, a
administração dos caminhos de ferro do Estado previa, para a Linha do Douro,
uma série de melhoramentos estruturais, nos quais se incluíam uma renovação
integral da estrutura da via, acompanhada por um reforço das obras d'arte
existentes, de modo a que fossem definitivamente eliminadas restrições de carga
(este problema começava agora a sentir-se, pois haviam-se já adquirido vagões
modernos, de maior capacidade e novas locomotivas alemãs, de marca Borsig e
Henschel, as quais eram bem mais pesadas do que as veteranas inglesas).
Infelizmente, nenhum destes investimentos de fundo chegou a ser realizado, pois
a depressão económica, primeiro, e o conflito mundial, depois, condicionariam
fortemente as disponibilidades financeiras do país. No entanto, neste período
registou-se um surto de obras públicas diversas, promovidas pelo Estado Novo,
facto que traduz duma forma inequívoca o desinteresse do regime pelo
investimento em transportes públicos no geral, e nos caminhos de ferro em
particular.
Nos anos cinquenta, a Linha do Douro estava já bastante
envelhecida. Nos seus desgastados carris de 36 Kg/m, os comboios atingiam já
velocidades inferiores aquelas que costumavam praticar em tempos idos. O rápido
Porto-Medina havia já desaparecido, subsistindo, no entanto, um serviço de
carruagens directas entre o Porto e Madrid, o qual se veria reforçado, nos anos
sessenta pelas automotoras rápidas Porto-Salamanca e, trissemanalmente,
Porto-Madrid. Mas era já o período de declínio da Linha do Douro que se
afirmava, pela impiedosa política de concentração de tráfegos num número mínimo
de linhas, cujos resultados desastrosos são conhecidos de todos. Cedo se suprimiriam
as populares UDD's de Salamanca, substituindo-as por ligações indirectas, com
correspondência em Barca d'Alva, ao mesmo tempo que todos os tráfegos de
mercadorias iam sendo gradualmente transferidos para a longínqua Linha da Beira
Alta, sofrendo o seu percurso um acréscimo suplementar superior a uma centena
de quilómetros, sem quaisquer razões objectivas que o justificassem.
Ao mesmo tempo, ia-se condenando a Linha do Douro à
"morte lenta'', privando-se, deliberadamente, o seu troço além-Régua de
participar nos grandes esquemas de renovação da via, propostos para a rede da
CP. Do ponto de vista da tracção, foi também este o último reduto das
locomotivas a vapor de via larga, pois à nítida falta de vontade de investir na
linha, juntava-se o facto de as locomotivas a vapor se adaptarem melhor que
quaisquer outras ao seu péssimo estado. As locomotivas a diesel acabariam por
se impor, a partir de 1978, em toda a linha, ao que seriam auxiliadas, um ano
mais tarde por novos ramos de UDD's. O carácter internacional da Linha do Douro
era já muito reduzido, quando a RENFE decidiu suspender os serviços no troço
Boadilla-Barca d'Alva, a 1 de Janeiro de 1985, ficando a mais directa
transversal ferroviária portuguesa sem qualquer continuidade para o exterior,
na mais flagrante negação das determinações da União Internacional dos Caminhos
de Ferro (UIC), que considerava a Linha do Douro como "complementar'', e
portanto, incluída no Plano Director da Rede Ferroviária Básica da Europa.
Ficou assim o Porto sem ligação ferroviária directa com Hendaye e Madrid. Do
lado português os serviços foram suspensos em 1988, no troço Pocinho-Barca
d'Alva, quando os comboios já nem sequer figuravam no Guia-Horário oficial.
Setembro 1989
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