Em dia de Natal, delicio-me a ler Virgílio
Nogueiro Gomes, Doces da Nossa Vida. Segredos e Maravilhas da Doçaria
Tradicional Portuguesa (Marcador, 2014). A página cheira bem, cada fotografia é
de apetite. Seguindo conselho ‒ «Comam doces, mas não abusem.» (p. 218) ‒, não
perco este pastel de nata, com vontade de segundo. Não tenho pão de ló,
dormidos e económicos; ganchas e pitos só em Vila Real. Marmelada ainda provo;
baunilha, também: há 40 anos, era uma tentação, e até escrevi “Elogio da
baunilha”, saído em Poemas Porventura (1977). Vai longe o tempo em que nos
comboiávamos chupando rebuçados da Régua; hoje, torta de laranja, toucinho do
céu, um de vários pudins, dão toque de gulodice a almoço farto.
Dessas maravilhas fala o especialista, em
capítulos breves e bibliografia mínima, umas luzes de ficção, nomes próprios e
antigamentes convocados («Lembro-me bem de despertar cedo», etc. [p. 79]),
enquanto escorre matéria de História Social e Económica, enquadrando a História
da Alimentação em que Virgílio Gomes se fez mestre.
Epígrafe inicial ‒ no «tributo a todas as
gerações de escravos, cujas tarefas, e sofrimentos, contribuíram para a
produção de açúcar» ‒ remete-nos para o doce inferno de António Vieira. O Autor
refere, em 1628, 235 engenhos no Brasil; no ano seguinte, 346; e, do Jesuíta,
cita frase destinada aos colonos (p. 16). Aproveito estes lembretes e alargo a
prosa.
Peça fundamental da nossa economia, o escravo
negro atravessa, desde o primeiro carregamento destinado a Lisboa, em 1443, os
ciclos da pimenta, do açúcar e do tabaco, do oiro e diamantes, do algodão e do
café. Três séculos e cinco milhões de escravos depois, o Brasil apresentava-se
minimamente povoado. Em 1811, ainda desembarcavam no Rio mais de 22 mil.
Entre 1600 e 1670, o Brasil recebera 350 mil
escravos negros. Em 1600, a demografia brasileira somava 30 mil brancos a 120
mil escravos, quando 200 engenhos produziam 600 mil arrobas anuais de açúcar,
sendo mais de 400 engenhos e 2 milhões de arrobas em 1670. «Para um dos grandes
engenhos eram precisos de 150 a 200 negros, empregados nos canaviais, corte das
lenhas para fornalha, transportes e labutação da fábrica.» Conclusão: «É
indubitável que ao açúcar se deve o desenvolvimento da escravatura no seio da
civilização moderna. Sem negros não havia açúcar; isto foi prolóquio do século
XVII», escreveu J. Lúcio de Azevedo (Épocas de Portugal Económico. Esboços de
História, 4.ª ed., 1978, p. 258 e 228). Ou, em palavras de Vieira
epistológrafo, «Sem negros não há Pernambuco» (carta de 12-VIII-1648 ao marquês
de Nisa), seja, fábricas de açúcar. Três Sermões do Rosário (Décimo Quarto,
Vigésimo, Vigésimo Sétimo) retratam a violência de um negro processo
civilizacional, contra que se ergue a voz de alguém não quimicamente branco.
Vejamos o primeiro, de 1633, ainda não era sacerdote.
Pregado «à Irmandade dos Pretos de um Engenho»
baiano, reconhece-se um «contínuo e grande trabalho» ou «contínuo trabalho e
exercício» de dia e de noite, em terra que «pode parecer desterro, cativeiro e
desgraça, e não é senão milagre e grande milagre!»: embora «oprimidos dos
trabalhos», estes não são mais «insofríveis» que os de Cristo na cruz.
A justificação dos mistérios dolorosos, que,
na falta do rosário completo, devem rezar os pretos baptizados, leva o pregador
à descrição do Inferno laboral, uma das primeiras e mais vivas em Vieira: «E
que cousa há na confusão deste Mundo mais semelhante ao Inferno, que qualquer
destes vossos engenhos, e tanto mais, quanto de maior fábrica? Por isso foi tão
bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de
açúcar doce inferno. E verdadeiramente quem vir na escuridão da noite aquelas
fornalhas tremendas perpetuamente ardentes, as labaredas que estão saindo a
borbotões de cada uma pelas duas bocas ou ventas, por onde respiram o incêndio;
os etíopes ou ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos, que subministram
a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as
caldeiras ou lagos ferventes com os cachões sempre batidos e rebatidos, já
vomitando espumas, já exalando nuvens de vapores mais de calor, que de fumo, e
tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias,
da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao
mesmo tempo sem movimento de tréguas, nem de descanso; quem vir enfim toda a
máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilónia, não poderá duvidar,
ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de Inferno.» De
súbito, uma visão: «Mas se, entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem
forem as do rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse
inferno se converterá em paraíso, o ruído em harmonia celestial, e os homens,
posto que pretos, em anjos.»
Outra surpresa é citar O Prato de Arroz Doce
(1862; p. 34), de António Augusto Teixeira de Vasconcelos (que foi secretário
do administrador ou governador civil de Bragança), título estranho, e melhor
documento sobre a Patuleia (1846-1847), a nossa última guerra civil. Figura
central é o tio de D. Rosa e D. Ana, José Alves, miguelista empedernido, mas
sincero e generoso – nisso opondo-se a um João Silveira, pai daquelas, tão
venal quanto liberalengo oportunista. Contra ventos e marés, em campos opostos,
Álvaro Pereira e Simão da Lapa recuperarão a amizade ameaçada pela dupla guerra
política e amorosa, reconfortando-se, personagens e leitores, com o singular
arroz doce daquela menina.
Já com a mão na massa, volto à especialidade
com que abre, “Aletria”. Evoquei este meu primeiro amor em colóquio
vila-realense, ora editado no n.º 61 da revista Tellus, onde também Virgílio
Gomes colabora. Terminei essas memórias de infância com receita deste, que já
fizera levantamento miúdo da gastronomia no romance A Casa de Bragança (2013).
Pago-lhe com presente modesto, a cumprir no próximo almoço: receita em tratado
de cozinha na Biblioteca Nacional de Nápoles (in José Leite de Vasconcelos,
Textos Arcaicos, 5.ª ed., 1970, p. 99) mostra ser a aletrja já conhecida em
Portugal no século XV. Quando nela penso, invade-me um aroma a sobremesa de
Natal, literatura e gratidão aos Pais.
Fonte:
http://ernestorodrigues.blogspot.pt/2015/01/doces-da-nossa-vida.html
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