Covadonga é um lugar mítico. É impensável viajar pelos
Picos da Europa, visitar Cangas de Onis sem se deslumbrar em Covadonga com a
beleza natural e caprichosa e escutar o hino secular que um punhado de cristãos
aguerridos ali deixou plasmado, há perto de 1.300 anos para génese de uma
guerra de reconquista que haveria de retomar a terra herdada dos antepassados
aos invasores muçulmanos. Assume especial significado e simbolismo este ano
quando a oriente, um número significativo de guerreiros radicais ameaçam nova
invasão com o fito de “reconstituir” o Grande Califado, cujas fronteiras se
desenhariam, de novo, ali. Pelaio, o chefe visigodo que comandou a luta contra
os mouros tem a sua memória perpetuada no túmulo que dentro da gruta
covadonguesa lhe guarda os restos mortais e na estátua que ao lado da catedral
continua vigilante, braço esquerdo apontando o caminho e o direito segurando a
espada.
O herói começou por ser um foragido que o governador
Munuza enviara, juntamente com alguns companheiros, para Córdova. Regressado às
Astúrias juntou um punhado de apaniguados descontentes e refugiou-se nas
inóspitas montanhas em Cangas de Oniz determinado a resistir às investidas das
autoridades atuais com as quais teria, segundo alguns relatos, colaborado
durante algum tempo. O insucesso das várias investidas para o capturar
deram-lhe autoconfiança e prestígio suficiente para juntar um pequeno exército
mas nada que preocupasse o poder mouro dada a desproporção de forças. Afrontar
o numeroso e temível poder militar sarraceno só poderia passar pela cabeça de
um louco. Tivesse a incursão árabe sido bem sucedida e de Pelaio ninguém hoje
falaria, quando muito estaria no rol dos muitos loucos que propondo-se a
tarefas “impossíveis” nelas consomem toda a energia e, muitas vezes, a própria vida.
Contudo à má estratégia e deficiente capacidade de comando militar, juntou-se o
excesso de confiança de uma poderosa máquina de guerra que ia prender uma
trintena de homens rudes, mal armados e pouco nutridos deixando‑se encurralar num desfiladeiro sem saída bem conhecido e excelentemente aproveitado pelo grupo autótone
onde pereceram milhares de combatentes esmagados por pedras desprendidas dos
penhascos. A loucura transformou-se em heroicidade, num dos lados enquanto no
outro a displicência deu lugar à desorientação percursora da debandada.
A história está recheada de situações idênticas em que é
o resultado das batalhas que destrinça a loucura da heroicidade e a traição do
idealismo clarividente. É essa a lógica militar. Um ato anormal ou desproporcionado,
será loucura se fracassar, será heroísmo se suceder. Um combatente que muda de
campo, será traidor se no final da refrega estiver do lado perdedor, será um
bom aliado, se for o contrário.
E há os que aparecem no final e juntam vozes aos que já
dominam. Desses haverá sempre. Ao lado de Pelaio lutaram contra as hordas
invasoras, muitos chefes católicos, em nome da fé, que, poucos anos antes
tinham apoiado e colaborado com os comandantes seguidores de Maomé quando estes
progrediam imparáveis por esta ibéria fora até aos contrafortes dos Montes
Cantábricos.
José Mário Leite
Covadonga
(Foragidos, Loucos e Heróis)
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