segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Covadonga (Foragidos, Loucos e Heróis), por José Mário Leite

Covadonga é um lugar mítico. É impensável viajar pelos Picos da Europa, visitar Cangas de Onis sem se deslumbrar em Covadonga com a beleza natural e caprichosa e escutar o hino secular que um punhado de cristãos aguerridos ali deixou plasmado, há perto de 1.300 anos para génese de uma guerra de reconquista que haveria de retomar a terra herdada dos antepassados aos invasores muçulmanos. Assume especial significado e simbolismo este ano quando a oriente, um número significativo de guerreiros radicais ameaçam nova invasão com o fito de “reconstituir” o Grande Califado, cujas fronteiras se desenhariam, de novo, ali. Pelaio, o chefe visigodo que comandou a luta contra os mouros tem a sua memória perpetuada no túmulo que dentro da gruta covadonguesa lhe guarda os restos mortais e na estátua que ao lado da catedral continua vigilante, braço esquerdo apontando o caminho e o direito segurando a espada.
O herói começou por ser um foragido que o governador Munuza enviara, juntamente com alguns companheiros, para Córdova. Regressado às Astúrias juntou um punhado de apaniguados descontentes e refugiou-se nas inóspitas montanhas em Cangas de Oniz determinado a resistir às investidas das autoridades atuais com as quais teria, segundo alguns relatos, colaborado durante algum tempo. O insucesso das várias investidas para o capturar deram-lhe autoconfiança e prestígio suficiente para juntar um pequeno exército mas nada que preocupasse o poder mouro dada a desproporção de forças. Afrontar o numeroso e temível poder militar sarraceno só poderia passar pela cabeça de um louco. Tivesse a incursão árabe sido bem sucedida e de Pelaio ninguém hoje falaria, quando muito estaria no rol dos muitos loucos que propondo-se a tarefas “impossíveis” nelas consomem toda a energia e, muitas vezes, a própria vida. Contudo à má estratégia e deficiente capacidade de comando militar, juntou-se o excesso de confiança de uma poderosa máquina de guerra que ia prender uma trintena de homens rudes, mal armados e pouco nutridos deixandose encurralar num desfiladeiro sem saída bem conhecido e excelentemente aproveitado pelo grupo autótone onde pereceram milhares de combatentes esmagados por pedras desprendidas dos penhascos. A loucura transformou-se em heroicidade, num dos lados enquanto no outro a displicência deu lugar à desorientação percursora da debandada.
A história está recheada de situações idênticas em que é o resultado das batalhas que destrinça a loucura da heroicidade e a traição do idealismo clarividente. É essa a lógica militar. Um ato anormal ou desproporcionado, será loucura se fracassar, será heroísmo se suceder. Um combatente que muda de campo, será traidor se no final da refrega estiver do lado perdedor, será um bom aliado, se for o contrário.
E há os que aparecem no final e juntam vozes aos que já dominam. Desses haverá sempre. Ao lado de Pelaio lutaram contra as hordas invasoras, muitos chefes católicos, em nome da fé, que, poucos anos antes tinham apoiado e colaborado com os comandantes seguidores de Maomé quando estes progrediam imparáveis por esta ibéria fora até aos contrafortes dos Montes Cantábricos.

José Mário Leite

Covadonga
(Foragidos, Loucos e Heróis)

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