quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O MEDO DO SEXO, UMA OBSESSÃO PERMANENTE! O FIO DAS LEMBRANÇAS, por Teresa Martins Marques

 Teresa Martins Marques e Amadeu Ferreira
(Excerto da Biografia que escrevo sobre Amadeu Ferreira)

O seminário de São José de Bragança dispunha de um regulamento datado de Março de 1934, qe era também preceituado em Vinhais. Trata-se de um opúsculo de 88 páginas e 175 artigos. O seu autor, D. Luís de Almeida, colige vários regulamentos “já abonados pelos bons resultados da sua adopção”. Consultei a edição em vigor ao tempo em que Amadeu Ferreira frequentou estes seminários, ou seja, a 2ª edição, revista e retocada, publicada na Escola Tipográfica, em Junho de 1957, com prefácio de D. Abílio Vaz das Neves, que nos diz: “ O Regulamento de um seminário é a estrutura moral da vida de formação de um neo-sacerdote. Tomado como tal, e observado com consciência, ajuda maravilhosamente a formar os caracteres dos obreiros da vinha do Senhor […] lapidando pedras preciosas, ajudando a edificação da Jerusalém Celeste.”

Este regulamento era instilado na alma dos seminaristas, que deviam “estimá-lo em grande apreço, manuseá-lo frequentemente deixando-se impregnar e saturar o seu espírito”, através da leitura semanal, comentada no refeitório e noutros lugares, que o Reitor entendesse oportunos (pp. 31 e 69).

O regulamento tinha de ser rigorosamente cumprido: “as faltas voluntárias contra o regulamento, posto que em matéria puramente disciplinar, além do desgosto de Deus, envolvem sempre uma infidelidade à promessa que os seminaristas, pelo facto de entrarem no seminário, implicitamente fizeram de observar o regulamento e bem assim ingratidão aos benefícios incomparáveis de ordem espiritual e temporal que recebem nesta santa casa de formação eclesiástica.” (pp.30-31)
O ensino nestes seminários não é, de uma forma geral, gratuito, como por vezes se pensa. Todos os alunos “são obrigados a pagar os livros, a correspondência, o médico, a lavadeira, e o barbeiro”. (p.12) Vamos encontrar aqui três tipos de seminaristas, que pagam mensalidades adiantadas, conforme a capacidade financeira dos pais: os pensionistas, os porcionistas e os gratuitos. (p. 33) Era este último o caso de Amadeu Ferreira, cujos pais tinham as maiores dificuldades, como já tivemos ocasião de mostrar. A bolsa de estudos, atribuída ao melhor aluno, que, como adiante se verá, a partir de certa altura, Amadeu ganhou todos os anos, necessitava de bom comportamento para a sua atribuição, daí que ele se esforçasse ao máximo por ser cumpridor, o que era consentâneo com o seu ideal de busca da perfeição, de ir até ao limite de si mesmo, seguindo o preceito da ode de Ricardo Reis - «Para ser grande, sê inteiro», - que ele traduziu para mirandês.
Também não é admitido nestes seminários quem quer, mas apenas quem pode. Não são admitidos rapazes com doenças, defeitos físicos ou que sejam provenientes de famílias com “taras hereditárias” (p.35). Também não são admitidos rapazes “cujas famílias forem havidas por menos morigeradas” e apenas os que forem “filhos de legítimo matrimónio” (p. 35).
Ao lermos este regulamento, salta aos olhos que todo o controlo tem por fim preservar o que chamam a virtude da pureza, isto é, afastar qualquer manifestação de sexualidade. Os afectos, mesmo os mais inocentes, através destas prevenções regulamentares, são sexualizados ao extremo.
“Tantos nos recreios como em qualquer outra parte, são expressamente proibidas aos alunos as conversações em separado, ou com companheiros escolhidos. Também nunca lhes será lícito segregarem-se dos companheiros ou subtraírem-se à vigilância dos Prefeitos, ou em geral, estarem simplesmente dois, segundo o antigo adágio: “raro unus, nunquam duo, semper tres” (p. 71)
São veementemente proibidas as “amizades particulares”, curiosa expressão, como se a natureza da amizade tivesse de ser obrigatoriamente colectiva:
“Evitarão as amizades particulares que são uma peste em qualquer comunidade. São também coisas rigorosamente proibidas porem as mãos uns sobre os outros, agarrarem-se mesmo por brincadeiras, ou passarem de uns para os outros cartas ou bilhetes para comunicarem entre si, fazerem-se presentes ou coisa semelhante. Os transgressores serão devidamente punidos. Qualquer falta contra a virtude da pureza será punida com expulsão.” (p.64)
Para obviarem às relações de proximidade, trocam os alunos de lugar, dando, para tal, um curioso argumento enviesado, chamando-lhe caridade:
“ Guardarão na capela, no refeitório, nas aulas e na forma, o lugar que lhes for marcado, o qual será mudado de tempos a tempos, para assim melhor se promover a caridade”. (p.58)
Não podem mostrar o corpo uns aos outros, a pretexto algum, tendo de “observar a maior modéstia”, sendo obrigados a vestir-se dentro da cama, como nos diz Amadeu, mais adiante. 
Os seminaristas mais velhos, que já não dormem em camaratas, não têm muito maior liberdade. “É-lhes proibido fecharem-se dentro do quarto à chave, cerrarem o postigo da porta e falarem da janela para fora. (p. 59)
Veja-se o curioso pormenor da porta obrigatoriamente aberta: 
“Aos que habitem em quartos não é permitido, por motivo algum, entrar no quarto dos seus companheiros, ou consentir que qualquer deles entre no seu, sem expressa licença do Prefeito ou do Reitor, a qual, porém, será concedida raras vezes e somente por um motivo grave, e ficando a porta aberta. A transgressão desta proibição será considerada grave e severamente punida, podendo até importar a expulsão. (p.65)
Um conselho singular é o que diz respeito ao beijo à batina: “Os Filósofos e os Teólogos andarão sempre de batina; ao vestirem-na pela manhã beijem-na com respeito.” Esta espécie de beijo fetichista a uma peça de vestuário era o único beijo autorizado no seminário.
A atmosfera é de um total controlo, com proibições para quase tudo: os seminaristas estão proibidos de receber jornais, revistas, romances, e outros livros que não sejam os de estudo ou os da Biblioteca do seminário. Estão proibidos de reclamar da falta de qualidade da comida, é proibida a entrada de quaisquer bebidas, sejam elas alcoólicas ou não. É proibido sair do recreio seja a que pretexto for, é proibido falar com os criados, ou com colegas de outros cursos. São proibidas as visitas dos familiares próximos, dos quais se excluem os primos, fora dos dias e horas determinadas. São proibidos de enviar ou receber correspondência, sem leitura prévia dos padres, são proibidos de falar com as pessoas na rua durante os passeios, e ainda proibidos de fazerem visitas a casas particulares de pessoas amigas durante as férias.
Obediência, humildade, piedade, submissão, castidade, desprendimento de si mesmos, tudo isto era exigido às crianças e jovens, empurrados à força para a “perfeição”. Obrigados aos sábados (p.43), em honra da Santíssima Virgem Rainha do Clero a praticar a virtude da mortificação, de auto-anulação penitencial e sacrificial, obrigados a suportar o “jugo suave”, da piedade, manifestada em rezas contínuas, confissão semanal, exames de consciência, retiros espirituais mensais, meditação diária, silêncio em grande parte do dia, obediência cega, sem liberdade para retorquir. Numa palavra, submissão total:
“Sem alegarem escusas ou pretextos, ouvirão com respeito e obedecerão com prontidão às ordens ou advertências dos Superiores; e não criticarão nem murmurarão deles, o que num seminário bem ordenado deve considerar-se falta gravíssima.” (p.61)
Estranhamente, não se considera falta grave a prática da delação e, pelo contrário, é até incentivada:
“Para zelar o bem comum e a caridade para com os companheiros, todo o aluno que tiver conhecimento de qualquer tentação, escândalo ou falta grave de que possa vir perigo para a virtude dos mesmos, ou para o bom nome do seminário, deverá, para tranquilidade da sua consciência, avisar o Reitor para que este dê remédio oportuno.” (p.62)
No seminário, os alunos não ficam “reprovados”, ficam “adiados”, o que claramente não é facilitado pelo incentivo à aprendizagem de cor (p. 49), pelo uso do latim para leccionar algumas disciplinas (p. 57) nem pela falta de diálogo na sala de aula com os professores, “que não devem ser interrompidos” (p.50), aconselhando tirar as dúvidas em particular e fora da aula, em atitude manifestamente antipedagógica:
“Quando não entenderem as explicações do Professor ou não ficarem satisfeitos com elas, não insistam nas suas dúvidas. Mais tarde, porém, podem pedir novos esclarecimentos em particular, com muita sinceridade e humildade.” (p.51)
Os padres professores, nomeados pelo Prelado e amovíveis em qualquer momento, deviam ter “a maior vigilância sobre a pureza e ortodoxia da doutrina”, (p. 25) estando obrigados a fazer um estranho juramento:
“ Os Professores de Teologia, Direito Canónico e Filosofia, devem fazer Profissão de Fé e Juramento anti-modernista, no princípio de cada ano lectivo. (p.22)
A expulsão era o caminho reservado aos infractores:
“Serão mandados retirar aqueles alunos que, pelos seus costumes e índole, não pareçam idóneos para o estado ecalesiástico e igualmente aqueles que aproveitem tão pouco nos estudos que não dêem esperanças de virem a completá-los, e finalmente, aqueles que mostrem inclinação a opiniões perigosas em matéria de doutrina. (p.74)
Amadeu Ferreira, o melhor aluno do seminário de Bragança, a poucos meses de ser ordenado padre, é expulso por “mostrar inclinações perigosas em matéria de doutrina.”
Como já referimos, a 1ª edição deste regulamento é datada de 19 de Março de 1934. A 28 de Janeiro decorrera, em Lisboa, no Teatro de São Carlos, uma cerimónia pública de lançamento da Acção Nacional de Vanguarda, onde Salazar proferiu o discurso «A escola, a Vida e a Nação». Esta é a primeira organização de juventude directamente promovida pelas estruturas dirigentes do Estado Novo e tinha como objectivo enquadrar ideologicamente a juventude. 
Se, por um lado, os seminários tiveram uma acção meritória permitindo que alguns filhos de gente humilde tivessem acesso à educação, que de outro modo não teriam, por outro lado, ao promoverem um clima interno de repressão ditatorial, acabariam a funcionar como aliados do regime salazarista. Foram muito poucos os padres que Amadeu aí viria a encontrar, defendendo ideais democráticos, e, entre estes, quase todos eles acabariam por abandonar o estado eclesiástico.


Teresa Martins Marques

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