Teresa Martins Marques e Amadeu Ferreira |
(Excerto da Biografia que escrevo sobre Amadeu Ferreira)
O seminário de São José de Bragança dispunha
de um regulamento datado de Março de 1934, qe era também preceituado em
Vinhais. Trata-se de um opúsculo de 88 páginas e 175 artigos. O seu autor, D.
Luís de Almeida, colige vários regulamentos “já abonados pelos bons resultados
da sua adopção”. Consultei a edição em vigor ao tempo em que Amadeu Ferreira
frequentou estes seminários, ou seja, a 2ª edição, revista e retocada,
publicada na Escola Tipográfica, em Junho de 1957, com prefácio de D. Abílio
Vaz das Neves, que nos diz: “ O Regulamento de um seminário é a estrutura moral
da vida de formação de um neo-sacerdote. Tomado como tal, e observado com
consciência, ajuda maravilhosamente a formar os caracteres dos obreiros da
vinha do Senhor […] lapidando pedras preciosas, ajudando a edificação da
Jerusalém Celeste.”
Este regulamento era instilado na alma dos seminaristas, que deviam “estimá-lo
em grande apreço, manuseá-lo frequentemente deixando-se impregnar e saturar o
seu espírito”, através da leitura semanal, comentada no refeitório e noutros
lugares, que o Reitor entendesse oportunos (pp. 31 e 69).
O regulamento tinha de ser rigorosamente cumprido: “as faltas voluntárias
contra o regulamento, posto que em matéria puramente disciplinar, além do
desgosto de Deus, envolvem sempre uma infidelidade à promessa que os
seminaristas, pelo facto de entrarem no seminário, implicitamente fizeram de
observar o regulamento e bem assim ingratidão aos benefícios incomparáveis de
ordem espiritual e temporal que recebem nesta santa casa de formação
eclesiástica.” (pp.30-31)
O ensino nestes seminários não é, de uma forma geral, gratuito, como por vezes
se pensa. Todos os alunos “são obrigados a pagar os livros, a correspondência,
o médico, a lavadeira, e o barbeiro”. (p.12) Vamos encontrar aqui três tipos de
seminaristas, que pagam mensalidades adiantadas, conforme a capacidade
financeira dos pais: os pensionistas, os porcionistas e os gratuitos. (p. 33)
Era este último o caso de Amadeu Ferreira, cujos pais tinham as maiores
dificuldades, como já tivemos ocasião de mostrar. A bolsa de estudos, atribuída
ao melhor aluno, que, como adiante se verá, a partir de certa altura, Amadeu
ganhou todos os anos, necessitava de bom comportamento para a sua atribuição,
daí que ele se esforçasse ao máximo por ser cumpridor, o que era consentâneo
com o seu ideal de busca da perfeição, de ir até ao limite de si mesmo,
seguindo o preceito da ode de Ricardo Reis - «Para ser grande, sê inteiro», -
que ele traduziu para mirandês.
Também não é admitido nestes seminários quem quer, mas apenas quem pode. Não
são admitidos rapazes com doenças, defeitos físicos ou que sejam provenientes
de famílias com “taras hereditárias” (p.35). Também não são admitidos rapazes
“cujas famílias forem havidas por menos morigeradas” e apenas os que forem
“filhos de legítimo matrimónio” (p. 35).
Ao lermos este regulamento, salta aos olhos que todo o controlo tem por fim
preservar o que chamam a virtude da pureza, isto é, afastar qualquer
manifestação de sexualidade. Os afectos, mesmo os mais inocentes, através
destas prevenções regulamentares, são sexualizados ao extremo.
“Tantos nos recreios como em qualquer outra parte, são expressamente proibidas
aos alunos as conversações em separado, ou com companheiros escolhidos. Também
nunca lhes será lícito segregarem-se dos companheiros ou subtraírem-se à
vigilância dos Prefeitos, ou em geral, estarem simplesmente dois, segundo o
antigo adágio: “raro unus, nunquam duo, semper tres” (p. 71)
São veementemente proibidas as “amizades particulares”, curiosa expressão, como
se a natureza da amizade tivesse de ser obrigatoriamente colectiva:
“Evitarão as amizades particulares que são uma peste em qualquer comunidade.
São também coisas rigorosamente proibidas porem as mãos uns sobre os outros,
agarrarem-se mesmo por brincadeiras, ou passarem de uns para os outros cartas
ou bilhetes para comunicarem entre si, fazerem-se presentes ou coisa
semelhante. Os transgressores serão devidamente punidos. Qualquer falta contra
a virtude da pureza será punida com expulsão.” (p.64)
Para obviarem às relações de proximidade, trocam os alunos de lugar, dando,
para tal, um curioso argumento enviesado, chamando-lhe caridade:
“ Guardarão na capela, no refeitório, nas aulas e na forma, o lugar que lhes
for marcado, o qual será mudado de tempos a tempos, para assim melhor se
promover a caridade”. (p.58)
Não podem mostrar o corpo uns aos outros, a pretexto algum, tendo de “observar
a maior modéstia”, sendo obrigados a vestir-se dentro da cama, como nos diz
Amadeu, mais adiante.
Os seminaristas mais velhos, que já não dormem em camaratas, não têm muito
maior liberdade. “É-lhes proibido fecharem-se dentro do quarto à chave,
cerrarem o postigo da porta e falarem da janela para fora. (p. 59)
Veja-se o curioso pormenor da porta obrigatoriamente aberta:
“Aos que habitem em quartos não é permitido, por motivo algum, entrar no quarto
dos seus companheiros, ou consentir que qualquer deles entre no seu, sem
expressa licença do Prefeito ou do Reitor, a qual, porém, será concedida raras
vezes e somente por um motivo grave, e ficando a porta aberta. A transgressão
desta proibição será considerada grave e severamente punida, podendo até
importar a expulsão. (p.65)
Um conselho singular é o que diz respeito ao beijo à batina: “Os Filósofos e os
Teólogos andarão sempre de batina; ao vestirem-na pela manhã beijem-na com
respeito.” Esta espécie de beijo fetichista a uma peça de vestuário era o único
beijo autorizado no seminário.
A atmosfera é de um total controlo, com proibições para quase tudo: os
seminaristas estão proibidos de receber jornais, revistas, romances, e outros
livros que não sejam os de estudo ou os da Biblioteca do seminário. Estão
proibidos de reclamar da falta de qualidade da comida, é proibida a entrada de
quaisquer bebidas, sejam elas alcoólicas ou não. É proibido sair do recreio
seja a que pretexto for, é proibido falar com os criados, ou com colegas de
outros cursos. São proibidas as visitas dos familiares próximos, dos quais se
excluem os primos, fora dos dias e horas determinadas. São proibidos de enviar
ou receber correspondência, sem leitura prévia dos padres, são proibidos de
falar com as pessoas na rua durante os passeios, e ainda proibidos de fazerem
visitas a casas particulares de pessoas amigas durante as férias.
Obediência, humildade, piedade, submissão, castidade, desprendimento de si
mesmos, tudo isto era exigido às crianças e jovens, empurrados à força para a
“perfeição”. Obrigados aos sábados (p.43), em honra da Santíssima Virgem Rainha
do Clero a praticar a virtude da mortificação, de auto-anulação penitencial e
sacrificial, obrigados a suportar o “jugo suave”, da piedade, manifestada em
rezas contínuas, confissão semanal, exames de consciência, retiros espirituais
mensais, meditação diária, silêncio em grande parte do dia, obediência cega,
sem liberdade para retorquir. Numa palavra, submissão total:
“Sem alegarem escusas ou pretextos, ouvirão com respeito e obedecerão com
prontidão às ordens ou advertências dos Superiores; e não criticarão nem
murmurarão deles, o que num seminário bem ordenado deve considerar-se falta
gravíssima.” (p.61)
Estranhamente, não se considera falta grave a prática da delação e, pelo
contrário, é até incentivada:
“Para zelar o bem comum e a caridade para com os companheiros, todo o aluno que
tiver conhecimento de qualquer tentação, escândalo ou falta grave de que possa
vir perigo para a virtude dos mesmos, ou para o bom nome do seminário, deverá,
para tranquilidade da sua consciência, avisar o Reitor para que este dê remédio
oportuno.” (p.62)
No seminário, os alunos não ficam “reprovados”, ficam “adiados”, o que
claramente não é facilitado pelo incentivo à aprendizagem de cor (p. 49), pelo
uso do latim para leccionar algumas disciplinas (p. 57) nem pela falta de
diálogo na sala de aula com os professores, “que não devem ser interrompidos”
(p.50), aconselhando tirar as dúvidas em particular e fora da aula, em atitude
manifestamente antipedagógica:
“Quando não entenderem as explicações do Professor ou não ficarem satisfeitos
com elas, não insistam nas suas dúvidas. Mais tarde, porém, podem pedir novos
esclarecimentos em particular, com muita sinceridade e humildade.” (p.51)
Os padres professores, nomeados pelo Prelado e amovíveis em qualquer momento,
deviam ter “a maior vigilância sobre a pureza e ortodoxia da doutrina”, (p. 25)
estando obrigados a fazer um estranho juramento:
“ Os Professores de Teologia, Direito Canónico e Filosofia, devem fazer
Profissão de Fé e Juramento anti-modernista, no princípio de cada ano lectivo.
(p.22)
A expulsão era o caminho reservado aos infractores:
“Serão mandados retirar aqueles alunos que, pelos seus costumes e índole, não
pareçam idóneos para o estado ecalesiástico e igualmente aqueles que aproveitem
tão pouco nos estudos que não dêem esperanças de virem a completá-los, e
finalmente, aqueles que mostrem inclinação a opiniões perigosas em matéria de
doutrina. (p.74)
Amadeu Ferreira, o melhor aluno do seminário de Bragança, a poucos meses de ser
ordenado padre, é expulso por “mostrar inclinações perigosas em matéria de
doutrina.”
Como já referimos, a 1ª edição deste regulamento é datada de 19 de Março de
1934. A 28 de Janeiro decorrera, em Lisboa, no Teatro de São Carlos, uma
cerimónia pública de lançamento da Acção Nacional de Vanguarda, onde Salazar
proferiu o discurso «A escola, a Vida e a Nação». Esta é a primeira organização
de juventude directamente promovida pelas estruturas dirigentes do Estado Novo
e tinha como objectivo enquadrar ideologicamente a juventude.
Se, por um lado, os seminários tiveram uma acção meritória permitindo que
alguns filhos de gente humilde tivessem acesso à educação, que de outro modo
não teriam, por outro lado, ao promoverem um clima interno de repressão
ditatorial, acabariam a funcionar como aliados do regime salazarista. Foram
muito poucos os padres que Amadeu aí viria a encontrar, defendendo ideais
democráticos, e, entre estes, quase todos eles acabariam por abandonar o estado
eclesiástico.
Teresa Martins Marques
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.