Sendim - Apresentação do livro " Norteando" |
ESTRANHA FORMA DE VIDA (3)
«Vinte Escudos»
Deixo aqui um curto excerto da biografia de
Amadeu Ferreira, que vou publicar em breve. Este menino que foi o melhor aluno
do seu curso, vice- presidente da CMVM, autor do Código de Valores Mobiliários,
pensava assim aos 11 anos:
"No seminário eram todos pobres, mas havia alguns ainda mais pobres que os
outros. «Nós não tínhamos dinheiro connosco, mas havia miúdos que tinham
dinheiro com eles e os padres deixavam ter algum dinheiro. De vez em quando, os
padres vendiam algumas coisas tais como borrachas, lápis. Os livros eram
encomendados por eles e eram metidos na conta que depois era mandada no fim do
trimestre para os pais pagarem. Essas contas trimestrais incluíam também a
lavagem da roupa, a alimentação e a estadia. Portanto, nós não precisávamos de
dinheiro. Mas havia miúdos que tinham algum dinheiro e compravam algumas
coisas. E aquilo impressionava-me muito.
Como é que era possível miúdos tão pequenos gastarem dinheiro, se os pais não tinham dinheiro? Porque eu nunca tinha dinheiro, desde miúdo. Não me lembro, quando entrei para o seminário, e antes disso, de ter tido um tostão no bolso, a não ser uma vez. Um primo meu deu-me vinte e cinco tostões. Veio da Índia e eu nunca me tinha visto com cinco coroas na mão e tinha vontade de comprar fruta. Fui ao soto (loja de comércio, em mirandês) do Tio Rechas e comprei cinco coroas de ameixas. Ele deu-me tantas ameixas que eu já não sabia o que fazer às ameixas. Em Sendim sempre houve grande escassez de fruta, nunca percebi porquê. Daí que a apetência por fruta fosse grande, sobretudo entre os miúdos. Foi a única vez que tive dinheiro. »
Como é que era possível miúdos tão pequenos gastarem dinheiro, se os pais não tinham dinheiro? Porque eu nunca tinha dinheiro, desde miúdo. Não me lembro, quando entrei para o seminário, e antes disso, de ter tido um tostão no bolso, a não ser uma vez. Um primo meu deu-me vinte e cinco tostões. Veio da Índia e eu nunca me tinha visto com cinco coroas na mão e tinha vontade de comprar fruta. Fui ao soto (loja de comércio, em mirandês) do Tio Rechas e comprei cinco coroas de ameixas. Ele deu-me tantas ameixas que eu já não sabia o que fazer às ameixas. Em Sendim sempre houve grande escassez de fruta, nunca percebi porquê. Daí que a apetência por fruta fosse grande, sobretudo entre os miúdos. Foi a única vez que tive dinheiro. »
A história que se segue é muito semelhante à que José Rodrigues Miguéis conta
n’O Milagre segundo Salomé referindo-se à moeda que a mãe de Severino
Zambujeira lhe deu antes de o mandar trabalhar para Lisboa, no final do século
XIX. O futuro banqueiro acabou a emoldurar a moeda para nunca se esquecer do
tempo em que foi pobre.
«Quando fui para o seminário, uma das coisas que a minha mãe me deu, para o
caso de ser necessário, foram vinte escudos. Eu achava aquilo muito dinheiro e
não sabia o que havia de fazer aos vinte escudos. Andava com eles sempre
naquele bolsinho do casaco, com medo de os perder e até tinha um alfinete de
segurança com que tapava o bolsinho, para não os perder. Até uma vez um dos
padres gozou comigo, chamando-me alfaiate, porque eu usava esse alfinete.» Esse
padre, de quem Amadeu haveria de tornar-se mais tarde amigo, era o Padre
Belarmino Afonso. Foi director do Arquivo Distrital e da revista Brigantia, por
ele fundada. «Eu achava que o melhor que podia fazer com os vinte escudos era
comportar-me de tal maneira que, quando regressasse no Natal, chegasse à minha
mãe e dissesse, “Estão aqui os vinte escudos. Não os gastei”! E assim foi.
Lembro-me de chegar ao Natal e de lhe ter dito: “Estão aqui os vinte escudos.
Consegui não os gastar.” Ao contrário dos colegas, para meu grande orgulho, a
grande contenção, a grande disciplina, era chegar lá, saber que os meus pais
não tinham dinheiro, que aqueles vinte escudos significavam muito para eles e
poder dizer assim: “Estão aqui! Tome-os outra vez que eu não os precisei.”»
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