(de Gutenberg a Borges)
“ O universo (a que outros chamam a
Biblioteca) compõe-se de um número indefinido e, talvez infinito, de galerias
hexagonais...”
“...por uma linha razoável ou uma notícia
correcta há léguas de insensatas cacofonias, de embrulhadas verbais e
incoerências.”
A Biblioteca de Babel, Jorge Luís Borges
Borges e a "embaixada" Moncorvense em Lisboa |
Este meu texto não faz parte da wikipédia.
Pertencerá ao ciberespaço quando o Leonel de Brito o publicar no seu blog ou
noutro local que entenda. Mas está, de há muito, contemplado na Divina
Biblioteca pormenorizadamente concebida e descrita pelo escritor argentino de
ascendência moncorvense, Jorge Luis Borges. Não só este texto mas todos os
outros que o antecederam (usei algumas crónicas antigas e outros registos meus
para o elaborar), bem como todas as versões, correções e revisões que com a
ajuda e contributo da Lurdes concorreram para a versão final que enviei ao Lelo
de Moncorvo. E todas as variações que venha mais tarde a conceber, escreva-as
ou não, publique-as ou guarde-as na gaveta do meu computador. Usando já não
caneta de tinta permanente ou esferográfica, mas o editor de texto que me
permite escolher sucessivamente cada um dos caracteres do alfabeto
justapondo-os para compor palavras e agrupando-as para formar frases,
parágrafos, textos tal como Johannes Gutenberg concebeu e implementou. Na
prática nasceu no século XV, pelas mãos deste inventor germânico o primeiro
editor de texto. Tal como a wikipédia tem a sua génese em Buenos Aires na
descrição borgiana. Os computadores e os programas informáticos que hoje usamos
com os mesmos fins apenas vieram mecanizar e facilitar a sua utilização. Sendo
certo que com a possibilidade de introdução de imagens os editores de texto
realizam a totalidade da proposição gutenbergiana, já a wikipédia tem ainda um
longuíssimo caminho (provavelmente de extensão infinita) para realizar a
conceção borgiana apesar da sua (aparente) limitação.
É por causa desta suposta limitação que a
seguir descrevo que me é apontada a falta de rigor quando (re)afirmo a
existência deste texto no universo hexagonóide – apesar das dúvidas que me
assaltam sobre o acerto do uso desta palavra ela existe em número quase infinito
no referido repositório – tal como recentemente garanti que o célebre e
celebrado Aleph está ali contido, descrito e explicado. Porque, o sistema
descrito e largamente difundido tem regras precisas e limitativas. Os volumes
que compõem o universo de Babel têm um formato rígido: quatrocentas e dez
páginas cada um, quarenta linhas por página e oitenta caracteres por linha. Um
milhão, trezentos e doze mil simbolos gráficos iguais ou diferentes, os que
Gutenberg idealizou e usou e todos os demais sucedânios. Como posso eu garantir
que cabem neste “espartilho” os textos que escrevo e as descrições do própio
autor das Ficções? Porque, como atrás fui “desvendando” essa limitação é
aparente. Existe, suponho eu, apenas para satisfazer o génio exigente do autor
e para que a descrição obedecesse ao seu critério de descrição exaustiva. Que
aliás, independentemente, dessa mesma “métrica” a própria descrição traz
consigo a forma de dela se libertar.
Como a biblioteca tem uma extensão
tendencialmente infinita, garantindo a exaustão de todas as combinações permite
que qualquer obra com dimensão superior ao modelo base seja perfeitamente
possível que a descrição perfeita no tamanho modular terá a correspondente
continuação num outro local, num outro volume. Que pode, como a seguir se
demonstrará, ter um tamanho igual ou inferior ao padrão. Porque um dos
caracteres aceites é o espaço, que é o separador de palavras. Por isso mesmo
haverá inúmeros documentos com tantas repetições do caracter espaço, quantas as
necessárias para que os restantes se combinem em todos os textos que garantam o
tamanho efetivo (conjunto de caracteres legíveis) que se pretender, inferior ao
standard e com a formatação desejada. Resolvido o tamanho superior e inferior
tudo o resto fica, por definição, contemplado na belíssima prosa de Borges.
Tal como o processador de texto potencia e
realiza o conceito de Gutenberg, igualmente os computadores podem ser
programados para materealizarem a fabulosa biblioteca que apenas pôde existir
concetualmente. Basta escrever um programa simples que produza, sucessivamente
e em ciclos iterativos, todos os caracteres dos diferentes alfabetos, para cada
uma das posições de cada uma das obras. O repositório deverá ser digital. Não
só porque será de difícil armazenamento se passado a papel, como isso permitirá
por um lado usar as ferramentas de pesquisa e fazer uma depuração de tudo o que
objetivamente não faça qualquer sentido de forma simples e automática que, como
o próprio autor admitiu, em nada diminui a grandeza do empreendimento. “A
Biblioteca é tão enorme que toda a redução de origem humana se torna
infinitésima”. Humana ou mecânica, acrescentaria eu, desde que limitada ao
acessório e consensualmente aceite como desnecessário e absurdo, tal como a
repeitção exaustiva de um único caracter.
Mesmo tendo em devida conta uma outra
limitação de apenas serem admissíveis vinte e cinco símbolos gráficos – às vinte e duas letras do alfabeto juntou
dois sinais de pontuação, a vírgula e o
ponto, acrescidos do espaço. Mas como todos os caracteres serão conjugados em
todas as suas combinações possíveis, facilmente se deduz que em algumas dessas
variações parecerá a descrição dos caracteres “em falta”. Com esses mesmos
símbolos, que não haja dúvida alguma, para além de inúmeras obras inúteis,
disparatadas, sem qualquer sentido, absolutamente estúpidas e horríveis, tudo o
resto que interessa existe neste local fabuloso, ali hão-de existir todas as
biografias de todos os homens que nasceram, que hão-de nascer e que nunca
nascerão. As reais, as romanceadas e as totalmente inventadas.
Existirão todos os tratados científicos, a sua
prova e a sua refutação. Verdadeiras e falsas.
Todos os romances, todas as edições, todas as
revisões, análises criticas, ensaios elogios e detracções.
Todos os livros escritos, pensados,
corrigidos, destruídos, editados, “engavetados”, deitados no lixo, rasurados ou
simplesmente esboçados...desde que tenham o formato de 410 páginas com 40
linhas de 80 caracteres. E, ainda assim para qualquer livro ali existente haverá
igualmente, na mesma, milhões de livros quase iguais e outros tantos
absolutamente opostos. Quer nos textos, quer nos conceitos. Para um dado livro
há trinta e dois milhões, e oitocentos mil livros que diferem deste apenas num
caracter (nmero que resulta da multiplicação de 25 – número de caracteres
diferentes admitidos por Borges – pelos 1.312.000 caracteres que cada livro
tem). Assim se pode imaginar o valor astronómico que um único tema pode
suscitar nesta fabulosa estrutura.
E, como atrás demonstrei, todos os que possam
ter um tamanho inferior. Ou superior. Desde que possa ser obtido pela junção de
um ou vários dos outros de tamanho padrão ou outro.
Haverá quem garanta que este desiderato
concorre com a intenção da Unesco de reconstruir a fabulosa Biblioteca de
Alexandria onde se reúnam cópias de todas as obras existentes. De todas as
obras relevantes, entenda-se.
Apesar de ambas as Bibliotecas terem uma
vocação universal, as semelhanças terminam aí. Uma delas existe desde sempre e
será eterna. A sua criação “só pode ser obra de um deus”. A outra é obra humana
e a sua existência limitada no tempo (foi criada na antiguidade, destruída, foi
reconstruída e há-de destruir-se um dia, por causas naturais ou outras).
Na Biblioteca de Babel há, garantidamente a
história detalhada da Biblioteca de Alexandria. O pormenorizado relato do seu
nascimento e destruição. Do seu renascimento e do fim definitivo, com a marca
exata do tempo e circunstâncias em que acontecerá. E todas as histórias e
lendas, verdadeiras e falsas e as negações das mesmas, associadas ou
associáveis ao arquivo egípcio.
Na Biblioteca da Alexandria não há nenhum
livro que descreva exaustivamente e com exactidão a Biblioteca Universal.
Nenhum relatará a sua génese. Nenhum terá notícia da sua extinção.
A primeira “perdurará: iluminada, solitária,
infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil,
incorruptível, secreta”.
A segunda, limitada no tempo e no espaço,
interactiva, útil e adulterável será pública e dedicada exclusivamente a
“disseminar o conhecimento entre os diferentes povos e nações do mundo”. Apesar
de monumental será limitada também no espaço e destinar-se-á a conter os
tratados científicos devidamente certificados e so seus eventuais
contraditórios se, e APENAS SE estes forem relevante para o conhecimento.
Este meu escrito (ou qualquer um que eu venha
a escrever, por muito que viva e escreva) não tem lugar na mais pequena e
insignificante estante da Biblioteca egípcia. Nem tão pouco num dos seus
inúmeros caixotes do lixo...
Contrariamente, existe, desde sempre, na
Biblioteca Universal. Escrevi-o mas poderia simplesmente tê-lo encontrado. Não
o fiz porque seria tarefa bem mais complexa e incomensuravelmente mais
demorada. Artigos com esta dimensão, assinados por mim e com este título,
existem milhões na Biblioteca Universal. Desde os que diferem deste apenas numa
letra, numa vírgula ou na simples disposição gráfica, até aos que, igual a este
têm apenas e precisamente o título e a assinatura. Um deles era exactamente
igual ao descrito por Jorge Luís Borges, excepto nestas duas características:
tinha o título igual a este e era assinado com o meu nome. O seu conteúdo,
contudo, era precisamente a repetição exaustiva e enfática dos caracteres M C V
tal como o livro de quatrocentas e dez páginas encontrado pelo pai do escritor
argentino, num hexágono do circuito quinze noventa e quatro da Biblioteca
original.
Provavelmente consumiria toda a minha vida
para o identificar. Encontrar uma determinada obra na Biblioteca é milhões de
vezes mais difícil do que ganhar o totoloto. É por isso mais fácil escrever o
que quer que seja, desde uma simples nota de rodapé a uma obra-prima, do que
encontrá-lo na sua verdadeira e genuína forma na Biblioteca de Babel. Pelo
contrário, no repositório magrebino não há obras que não tenham sido
devidamente escritas e,quase exclusivamente, na sua versão final. Encontrar
qualquer uma delas poderá ser difícil, mas incomparavelmente mais simples
porque não se confundirá com nenhuma das que a mimetizam e que aqui não têm
lugar.
Nota Final:
Pode parecer que em tese se afirma foi Borges
o inventor da Biblioteca de Babel a que também chamou de Biblioteca Divina ou
Biblioteca Universal. Não. Jorge Luís Borges apenas a teorizou. Regulou-a.
Estabeleceu os fundamentos teóricos e a sustentação programática da sua
existência. Postulou as leis, os princípios, a regulamentação e a estrutura a
que obedece. Numa lógica borgiana com requisitos particulares “factuais” e até
restritivos, como era seu apanágio. Mas esta biblioteca existe desde sempre.
Como ele próprio, aliás, claramente afirma.
Nem sequer é dele a primeira descoberta. A
enunciação e implementação do princípio fundador. Este pertence a Johannes
Gutenberg no ido século XV.
Borges teorizou-a. Nada fez para a
implementar. Mas a sua concretização física já está em marcha. Em computadores,
claro. De forma desordenada, ainda. Pouco sistemática. Sem obediência rigorosa
às regras. Não há a conjugação exaustiva de todos os caracteres (há alguns que
são muitíssimo mais usados que os outros). Por um lado, são raríssimos os
textos com um único carácter, por outro existem muitos textos absolutamente
iguais o que, sendo um desperdício representam também uma desobediência clara
aos postulados primários.
Mas nem são essas as maiores lacunas da
implementação, dita virtual, da BIBLIOTECA. O pior é a falta dos escritos em
línguas desconhecidas e os tratados e enunciados sobre coisas e acontecimentos
ainda não inventados nem ocorridos.
Começou com Alan Turing na primeira metade do
século XX em que foi possível guardar e organizar informação em máquinas
eletrónicas. Teve um incremento substancial na segunda metade com Timothy
Berners-Lee com a introdução da world wide web e de forma mais organizada com a
wikipédia de Jimmy Wales e Larry Sanger já neste século. Não é A BIBLIOTECA DE
BABEL, mas é um começo com a virtualidade de mostrar a forma que o Divino
Repositório poderá/deverá ter quando forem cumpridas todos os postulados
borgianos.
Abusivamente (ou não) acrescentarei a estes,
um princípio básico que carece de demosntração pela evidência intrínsica da sua
formulação, tal como Wolf Singer o enunciou: “ Com 26 letras é possível
escrever a literatura de todo o mundo pela simples recombinação dessas letras
de modo flexível”
José Mário Leite
Todos os textos em defesa do nosso Borges são sempre bem vindos e quando são bem escritos melhor.
ResponderEliminarRaro nos políticos autárquicos, o nosso Presidente da Assembleia escreve bem sobre qualquer tema.
Leitor
Sigo este senhor no Mensageiro de Bragança e ainda me lembro da lição que deu ao antigo presidente da câmara da vossa terra.Aqui,está sempre à mão.Senhores do blog publiquem mais textos que andam dispersos e entrevistas/reportagens das rádios que ainda não estão online.Refiro-me a Macedo ,Bragança e outras terras que têm emissores.Em Torre de Moncorvo existe uma de um grupo de amigos que não aparecem lá nem no café se juntam.Com a programação que tem é legal?
ResponderEliminarPubliquem por favor,não se cortem.
Acácio