QUANDO O SILÊNCIO SE ABATE, por Arinda Andrés
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URROS 1947 |
Eu era ainda criança, e mesmo em frente à nossa casa, aquela figura que se recortava na luz calma e suave, sobressaía na faina de uma aldeia buliçosa e cheia de esperança. O homem avançava devagar, enquanto a tarde se aconchegava nos poiais cinzentos e seculares de muitos e muitos anos; as passadas lentas e arrastadas, evidenciavam, na rua larga e a pulular de gente, de trabalho e de sonhos, a figura alta e de corpo gingão daquele homem tão diferente, aos meus olhos, de todos os outros. Nunca o vi sair de casa; apenas o via chegar, sempre só e distante de tudo. Era um rosto de expressão dorida, raras vezes o vi falar com alguém. Grupos de gente aqui e ali, eram-lhe indiferentes. Subia determinadamente as escadas íngremes da casa que o aguardava, numa cumplicidade tão robusta quão fortes e bem alicerçadas eram as suas raízes. Outro mundo, outra gente. Em silêncio, a chave rodava na fechadura e, lentamente, a porta ronceira ia deixando entrar alguma luz estranha, testemunha de outros tempos, no negrume do interior da casa. O homem entrava e a porta, sozinha, fechava-se.
Era uma figura estranha, aquele homem. Tinha um olhar parado e lento, como se não visse nada nem ninguém mas, ao mesmo tempo, os seus olhos pareciam voltar-se para outras pessoas, outro lugar. Na mão, habitualmente, trazia uma sacola, uma taleiga, que era de pano às riscas como a de qualquer homem, ou de qualquer mulher. Intrigava-me aquela figura, ao querer enquadrá-la em hábitos, relações, circunstâncias, como aos outros. A rotina era sempre a mesma. Mas, naquele dia, ele estava ali, entregando-se inteiramente ao seu trabalho; a madeira ia-se esculpindo, lentamente, enquanto uma plaina certeira, ia e vinha, criando-se um ar de mistério, como se a certeza e o destino das coisas dependessem, absolutamente, daquele momento; minha mãe trouxe-lhe um prato de comida; o homem, sem dizer palavra, aceitou. Religiosamente o diálogo estreitava-se em secas palavras :«Agora, são horas de ir para casa», disse.
A aldeia amanhecia no trabalho dos campos e anoitecia no conforto pacato das lareiras, onde os mais velhos cogitavam sobre a sorte dos mais novos, enquanto as labaredas cresciam e as brasas, reduto de imponentes árvores, se consumiam em cinzas apenas, depois de aquecer a humidade fria dos dias de inverno; ou nos balcões e varandas, aliviando as noites abafadas do calor do verão.
Os dias iam-se acomodando na rotina do sol ou da chuva, das sementeiras ou das colheitas. Os machos que, briosamente, carregavam sacos de azeitona ou amêndoa, ainda permanecem na minha memória, e a cadência dos sinos, ao toque das Trindades, devolve-me a visão de tardes calmas e sossegadas, porém, exalando a luz ténue e lenta de tempos bem distantes.
Já o sol se fora e, numa dádiva de Deus, entregara os últimos fios de ouro à pacatez dos rebanhos, a recolher mansa e humildemente às malhadas; ao terreiro, da garotada a jogar ao lencinho, ao pico-pico, ao meco e ao castro, enquanto os rapazes saltavam ao eixo e na taberna, em busca de uma recompensa perdida, esquecida, ou simplesmente adiada, afogava-se a dor com um último copo de vinho; nas pedras cinzentas e frias das eiras derramavam-se os últimos raios de sol, agora a esconder-se nos molhos de trigo, seco, louro, de cevada ou de centeio; as galinhas acorriam em bando ao cair do trigo, nas lajes de uma ceifa farta e opulenta; os gatos enrolavam-se ao sol com o medo dos cães, nas orelhas espetadas; e a esperança dos pardais, nos olhos e no focinho, de pelos afiados, em riste.
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URROS 2010 |
No calendário do meu quarto os dias contados pelo lápis, tinham-se esgotado.
E as minhas férias também chegaram, depois de longos e longos meses de ausência.
Não vi o homem e minha mãe explicou-me, «Vivia sozinho, não tinha mulher nem filhos; era um couraçado de trabalho e abandono. Noutros tempos era mau; tinha mau feitio. Agora, sem mulher e sem filhos, parece que andava sempre a entregar a alma a Deus; era um desgraçado; não fazia mal a uma mosca, ainda bem que Deus o levou».
Arinda Andrés (Tininha)