quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Memórias Orais, por Joana Vargas



“Só não aprendi a ler que era a coisa que mais paixão me dava”

José Maria Bastião
"Já completou um século de existência e a pena maior que teve na vida diz, foi não ter aprendido a ler. José Maria Bastião, natural da freguesia de Ligares em Freixo de Espada à Cinta  aprendeu desde cedo todas as artes da agricultura, “aprendi a fazer tudo”, não tinha seis anos e já acompanhava o seu pai nas lides do campo, “ a mim o que me ensinaram foi a guardar gado, desde os cinco anos e meio que comecei a andar com o meu pai e nunca mais o larguei, naquele tempo a miséria era muita, punham-nos a guardar gado e estudar não quiseram”.
Nunca foi à escola, a dureza da vida não permitia e fazia com que ele e os seus 9 irmãos tivessem que trabalhar para ganharem “alguma coisinha pra comer”. Viveu com a sua família numa casa sem chão onde não havia  água nem luz, “era uma casinha térrea, não havia água a não ser a que iam buscar aos fontanecos e a luz muitas vezes queimávamos giestas pra vermos e lá andávamos”.
Em tempos de Guerra a comida era pouca e a que havia era racionada através de senhas, “olhe que não comíamos grande coisa, sabe Deus, às vezes levávamos um caldinho sem pão nem coisa nenhuma, caldinho de couves ou de nabiças ou feijões, naquele tempo a miséria era muita”.
Os cem anos de vida fazem com que José saiba o que foram os tempos de miséria e de muita fome e não esquece:  “às vezes não comíamos nada, as minhas primeiras jeiras foram 25 tostões e um alqueire de pão a 6 escudos naquele tempo era duro”.
Nunca teve medo ao trabalho no campo, foi a sua vida e só há pouco tempo decidiu reformar-se “arranjei um gadinho pra mim e depois mais tarde já estava reformado e vendi, peguei a andar à jeira por aí até que há 4 ou 5 anos é que deixei”.
O senhor José queria mais, mais para além dos saberes da agricultura, queria ter aprendido a ler, “quando vejo um papel qualquer, era a paixão maior que tinha, mas não me ensinaram”. Não pôde. A família era grande e o dinheiro pouco. Muito pouco. Aos 16 anos ainda andava descalço, e os caminhos para o trabalho eram longos, “íamos prás quintas a pé, era hora, hora e meia a pé”.
Mais tarde casou na sua terra com 24 anos e aí as coisas melhoraram, “desde que nos casámos nunca mais passamos fome nem miséria, com muito trabalho mas lá andámos”. O senhor José “lá anda”, agora os seus dias são passados na sua terra, em Ligares, de onde praticamente nunca saiu por períodos longos pra conhecer outras paragens,  “ao Porto fui quando ia buscar o meu filho que vinha da França, em Lisboa nunca lá estive”. Vive no Lar Social mas preferia o seu, “preferia estar em minha casa, deitava-me e levantava-me quando quisesse e lá cima não, em chegando àquela hora, toca prá cama, de manhã não sendo aquela hora não deixam levantar a gente, e depois a gente chateia-se”. Da vida ainda não se chateou. A dureza do trabalho parece tê-lo enrijecido. Cem anos lembram muitas histórias, o que muitos não viram nem conheceram e o senhor José conta-las com aquela que talvez tenha sido a maior das suas riquezas, a lucidez."

 Joana Vargas
 
Nota: Excerto do depoimento de José Maria Bastião para as Memórias Orais de Freixo de Espada à Cinta

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