“Só não aprendi a ler que era a coisa que mais paixão me
dava”
José Maria Bastião |
"Já completou um século de existência e a pena maior que
teve na vida diz, foi não ter aprendido a ler. José Maria Bastião, natural da
freguesia de Ligares em Freixo de Espada à Cinta aprendeu desde cedo todas as artes da
agricultura, “aprendi a fazer tudo”, não tinha seis anos e já acompanhava o seu
pai nas lides do campo, “ a mim o que me ensinaram foi a guardar gado, desde os
cinco anos e meio que comecei a andar com o meu pai e nunca mais o larguei,
naquele tempo a miséria era muita, punham-nos a guardar gado e estudar não
quiseram”.
Nunca foi à escola, a dureza da vida não permitia e fazia
com que ele e os seus 9 irmãos tivessem que trabalhar para ganharem “alguma
coisinha pra comer”. Viveu com a sua família numa casa sem chão onde não havia água nem luz, “era uma casinha térrea, não
havia água a não ser a que iam buscar aos fontanecos e a luz muitas vezes
queimávamos giestas pra vermos e lá andávamos”.
Em tempos de Guerra a comida era pouca e a que havia era
racionada através de senhas, “olhe que não comíamos grande coisa, sabe Deus, às
vezes levávamos um caldinho sem pão nem coisa nenhuma, caldinho de couves ou de
nabiças ou feijões, naquele tempo a miséria era muita”.
Os cem anos de vida fazem com que José saiba o que foram os
tempos de miséria e de muita fome e não esquece: “às vezes não comíamos nada, as minhas
primeiras jeiras foram 25 tostões e um alqueire de pão a 6 escudos naquele
tempo era duro”.
Nunca teve medo ao trabalho no campo, foi a sua vida e só
há pouco tempo decidiu reformar-se “arranjei um gadinho pra mim e depois mais
tarde já estava reformado e vendi, peguei a andar à jeira por aí até que há 4
ou 5 anos é que deixei”.
O senhor José queria mais, mais para além dos saberes da agricultura,
queria ter aprendido a ler, “quando vejo um papel qualquer, era a paixão maior
que tinha, mas não me ensinaram”. Não pôde. A família era grande e o dinheiro
pouco. Muito pouco. Aos 16 anos ainda andava descalço, e os caminhos para o
trabalho eram longos, “íamos prás quintas a pé, era hora, hora e meia a pé”.
Mais tarde casou na sua terra com 24 anos e aí as coisas
melhoraram, “desde que nos casámos nunca mais passamos fome nem miséria, com
muito trabalho mas lá andámos”. O senhor José “lá anda”, agora os seus dias são
passados na sua terra, em Ligares, de onde praticamente nunca saiu por períodos
longos pra conhecer outras paragens, “ao
Porto fui quando ia buscar o meu filho que vinha da França, em Lisboa nunca lá
estive”. Vive no Lar Social mas preferia o seu, “preferia estar em minha casa,
deitava-me e levantava-me quando quisesse e lá cima não, em chegando àquela
hora, toca prá cama, de manhã não sendo aquela hora não deixam levantar a
gente, e depois a gente chateia-se”. Da vida ainda não se chateou. A dureza do
trabalho parece tê-lo enrijecido. Cem anos lembram muitas histórias, o que
muitos não viram nem conheceram e o senhor José conta-las com aquela que talvez
tenha sido a maior das suas riquezas, a lucidez."
Joana Vargas
Nota: Excerto do depoimento de José Maria Bastião para as Memórias Orais de Freixo de Espada à Cinta
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