quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Quadros da Transmontaneidade

“Hoje falo-te das gentes…”, assim o afirma o autor. E a mim me cabe dizer sobre António Sá Gué, o autor deste livro Quadros de Transmontaneidade, que ele é o homem cuja alma adormece nos montes de que faz parte, “percorrendo caminhos”, calcorreando as fragas e lugares, onde ontem as gentes foram, num cenário de sobrevivência consciente, talhado a pão duro e tempo agreste, tal como um camponês “preso na cidade” ao jeito de Cesário Verde na voz primeira de Alberto Caeiro, almejando “refazer o cardenho” e voltar ao pedaço de chão ancestral porque a “atração atávica à terra” lhe dói e o inquieta, de modo inexplicável, por ser de concretização longínqua. E a modos que assim sendo, tal como a tia Antoninha pediu para ver o mundo numa dimensão fronteiriça que culminava na Feira dos gorazes, António Sá Gué, mais uma vez, repisa neste livro a ideia de Tempo que se lhe escapa e lhe dilacera a alma de giesta em flor, concluindo que “o tempo visita sempre mais os velhos depois de eles o terem quase gasto”. Na memória as gentes, o cinzel dos rostos, os lugares, as paisagens, o trabalho, o inconfundível cheiro de pão do forno comunitário, o menino de então “agarrado às saias da tia Maria Júlia engranhado com o frio”, a matança do porco, “oito arrobas de chicha”, a bexiga feita bola de futebol para os raparigos e as papas de sarrabulho, festim de um tempo escasso em fartura, pequenos e grandes pormenores visuais que lhe dão cor às recordações de um tempo pretérito que teima em preservar mentalmente.


Na insistência de sentir o frio das madrugadas, o cheiro das madressilvas e escutar o mundo feérico das mouras encantadas, busca os caminhos de cabras num deambular mental e contínuo, ainda que incerto, daí resultando os quadros desenhados de impressões retidas na memória e que traduz em quase micronarrativas, associando ao presente o passado, ambos em comunhão compulsiva porque ele assim o deseja e o mantém, muito embora o devir o angustie pela dúvida que nele toma consistência ao questionar-se se as gentes, as paisagens e os lugares resistirão ao passar das estações e, de novo, ao Tempo que, inexoravelmente, tudo absorve e faz esmorecer. É o passar das horas que demora em Trás-os-Montes, mas corre célere num espaço a que se “aprisionou” e do qual teima em fugir sem sucesso porque há laços que não se desatam, de natureza contundente. E eis que surge o “assucedido” na Lousa, em terras bravias, quando as gentes decidiram ajoujar os agentes da autoridade, julgando-os sumariamente, e do tribunal popular outro se lhes afigurou, o degredo em África, reavivando, dessa forma, o “quadro transversal e geracional de todo o Nordeste Transmontano” num tempo em que tudo era feito “a bem da Nação”! Entremeia e urde a teia textual com os “Santarecos”, “as crendices de que o povo se socorre” e alguns demais rejeitam, “os endireitas”, os bruxos, “os fazedores de milagres”, e o aproveitamento malicioso da religiosidade, muito embora a ideia de Tempo que flui sem regresso lhe “atravanque” os grandes e pequenos planos, qual cineasta primoroso na arte de captar o instante, o rosto, o monte e as rugas de quem vive em espera experimentada e desapegada de outros sonhos que não os do narrador em primeira pessoa. “Ó montes, que transfundistes em mim a tua alma sem me pedires autorização”. Grito que apaga porque de pedra e de fraga se fez, da rudeza granítica sulcou a escrita que neste livro se molda de magnificência e palavra cesariana. E o autor assim se faz terra e memória “porque cem anos, afinal, não é muito tempo”. Relativiza a questão que entrelaça os quadros ainda que repita a inquietude inicial e transversal do livro. “E o que fazer do tempo? A pergunta que esmaga a alma dos mais velhos” parece ecoar na alma de quem assim os revisita, ou seja, de alguém que os deseja manter em perenidade transversal como se o agora também pudesse circular em retorno e transmutar-se em futuro que teme pelos homens que não param, as estações que se sucedem, as estevas que reflorescem e o “morto” que, de súbito, “desaparece das duas fachas de palha por muito que o arrocho fosse apólice de um seguro imprevisível”, num olhar que volve a um tempo de comunhão com as gentes, a paisagem, o trabalho, o lazer e sempre os lugares, onde a luz se agarra e onde ainda o “bezerro de oiro” anda por lá. Sabendo que “A alma do povo é grande”, mesmo nunca a tendo medido, mas conhecendo-a como a palma das suas mãos, reconhece que é dela que veio, assim se apegando à origem de uma terra seca, dura de romper, estéril, quantas vezes, porém húmus que lhe adubou a alma em ceifadas, malhas e vindimas, pedaços de Anteu que carrega no seu subconsciente e que “para o bem e para o mal” o enformaram, pois que o reconhece como seu, como fazendo parte de uma cultura de um povo, “a cultura transmontana”, contudo afigurando-se-lhe ao olhar também como “peças” desgarradas sem nexo a que irremediavelmente terá de chegar, pois ao proferir, em desespero, “Se é que ela existe!”, o autor a si próprio se trespassa com a revisitação feita às memórias das gentes, das paisagens, dos lugares e do trabalho, pelo que no ato da escrita, na escolha da palavra com que lavra os sulcos a semear, na espera da água que o ribeiro secou, tangem os cânticos de outrora, menino que fora, quadros de gente e de terra que urge continuar. Quadros de gente que viveu, amou, sofreu e lutou por um processo de sobrevivência natural aliado à conjuntura política – social e económica das várias épocas históricas que se fizeram sentir por terras de Trás-os-Montes, é verdade, todavia sem as repercussões esperadas e ansiadas por uma paisagem humana que, lentamente, esmorece na alma dos que ficam e na dos que de longe teimam num tempo que querem enlaçar nas suas memórias, de algo talvez perdido, ou em renovação, ou mesmo, teia urdida que se desfaz na espera dos filhos da Terra que amam em pretérito perfeito, mas hesitam perante um presente ou a hipótese de regresso, daí a obsessão do Tempo no autor, tempo esse que devora décadas de poisio, desmesuradamente arredio, ecoando nas lendas e histórias que os velhos contam ao não temerem nem a hora nem o tempo em que o corpo desnudado em pó se revolverá para dar lugar a um futuro retalhado nas memórias de quem resiste e o fará vingar numa espécie de sagração da terra transmontana. Dizer da escrita avassaladora, da onda de palavras que se ergue e desmaia é assumir que a forma que lhe foi dada pelo autor é a sua força porque há sentido nas palavras que domina, que revive e transfigura. Dá-lhes ímpeto, altura e verdade e é nessa perfeição linguística que reside o seu poder criador, o arrojo e a audácia de não fazer esquecer a língua dos que antes foram para, dessa forma, as sabermos encontrar. Uma língua que surge enriquecida num vocabulário e léxico com contornos de autenticidade, rija e severa, palavra que se atira a direito, sem jugo e contrafeita, laivos de transmontaneidade nas “mulheres de lenço negro” que “apertavam a blusa, vassouravam as espigas e ofereciam o corpo à contínua saraivada de grão que caía dos céus e as fustigava”. Resta-me unicamente confessar a gratidão pela dádiva de uma leitura que se espraiou em mim, assim suavemente, como onda tranquila de recordações de infância que julgava esquecidas, pelo que penso fazer perceber, citando Saramago, que “As palavras proferidas pelo coração não têm língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler.” 29 de fevereiro de 2012 Teresa Leonardo Fernandes

1 comentário:

  1. aquecem-me a alma as palavras de António Sá Gué. Sente-se um aroma a madressilva e uma frescura a Primavera ou cores quentes do outono. Todo ele na sua escrita nos leva ao campo e às pessoas que são suas e nossas. Como ele dá vida a vidas às gentes da nossa terra.

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