sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Contos do Vale da Promissão - Intervenção de Jorge Carvalheira, na UNICEPE, no dia 18 de Setembro 2013.


Não sou, por mais que uma razão, a voz mais adequada para estar aqui nesta função. Entre essas razões não é menor a de ser irmão do autor do livrinho, a cujo propósito direi aqui alguns lugares comuns e outras tantas heresias. O seu autor cultiva uma bela escrita e vai pouco em modas de mercado. Ainda bem. Já que essas modas servem apenas para confundir as malas-artes da literatura com foguetórios que passam. E confundem sobretudo a cabeça dos leitores. Porque o acto de escrever é isto, é resistir. Não vou ao ponto de pensar, como dizia uma personagem qualquer da Montanha Mágica, que “a beleza de estilo conduz à beleza das acções”, ou que “ a bela palavra gera a bela acção”, ou que “escrever bem é sinónimo de pensar bem”. Se assim fosse, o mundo estava salvo há muito tempo. Mas o gesto da escrita (que não se fecha sem o gesto da leitura) é um acto de resistência que nos mantém humanos, que nos ajuda a entender o mundo, que nos emociona, ou nos diverte, ou nos ensina, ou nos sobressalta, ou nos encanta. Em qualquer caso aumenta a nossa consciência, o que é o exacto oposto do estado de alienação que esperam de nós os figurões que vivem de transformar-nos em números estatísticos de consumidores e geradores de lucros. Por isso me orgulha o facto de ser irmão do autor. Conheço a treva de que saiu, e o trabalho que desenvolveu até chegar aqui. E isso faz-me sentir muito bem.


 Há uma quantidade razoável de edições, apresentadas por editoras discretas, como a Lema d’Origem, que escapam à enxurrada com que as grandes editoras inundam o mercado livreiro. Falamos de mercado e não da literatura, porque uma coisa e a outra pouco têm em comum. A literatura, como a arte em geral, traz-nos emoções estéticas novas, puxa-nos pela cabeça e pela alma. O mercado impinge-nos produtos e reduz-nos ao instinto, só lhe interessa o dividendo. E tão descaradamente o faz que para ele contam igualmente os letrados e os analfabetos. Todos eles são iguais, porque são consumidores. Por isso o trabalho destas editoras é também um acto de resistência. Em muitas delas se aloja ainda o impulso dum espírito antigo, dum tempo em que o editor constituía para o leitor um selo de garantia e uma marca de água. Procurava a qualidade, em lugar de fazer da edição uma carreira. Hoje, o impulso que motiva o editor de sucesso é ditado, antes de mais, por aquilo que o mercado reclama. Eu tenho saudades desses tempos, e creio que a literatura tem ainda mais saudades do que eu. Julgo que há, entre muitas possíveis, três perguntas a fazer, quando o leitor se confronta com um livro. São elas o QUÊ, o COMO e o PORQUÊ. O que é que este texto traz lá dentro, como é que nos conta o que lá tem, e qual é a sua finalidade, a função que o motivou. Não há ganhos para o leitor, nem sequer haverá literatura, se não houver resposta positiva a estas questões. Os Contos do Vale da Promissão fazem o que podem para nos desvendar o que em séculos foi a vida dos homens da Vilariça, entre a foz do Sabor, Moncorvo, Alfândega, Bornes, Vila Flor e Carrazeda. São numerosas e multímodas as edições de textos que guardam memórias da vida rural de há meio século. De qualidade variável, muitas delas padecem de confinamento. São exercícios locais e privados, revivem episódios da vida duma aldeia igual a tantas outras, as mais das vezes lembranças duma meninice já distante. São indiscutivelmente um meio de cultura. Mas é da natureza da arte menor a ausência de horizontes, de vastidão, a falta de universalidade, sem os quais a literatura não chega a existir. Por outro lado, o discurso em que se fundam é muitas vezes canhestro, ingénuo, quando não é simplório. São redacções bem feitinhas. Não é esse o caso dos Contos do Vale da Promissão. Nem nos conteúdos nem nas formas. E como é que os textos destes Contos se exprimem e ganham significado? Através dum discurso cuidadoso, elaborado e culto (na minha opinião pessoal, aqui ou ali ainda prolixo), que não espartilha os conteúdos. Um texto sério dirá sempre muito mais do que aquilo que afirma. E em qualquer narrativa, aquilo que é narrado e o modo como isso é feito são duas faces da mesma moeda. Não existe uma coisa sem a outra. Atrevo-me a pensar que estes textos, como o Vale da Promissão, são uma ajuda para responder a uma antiga questão que nós temos connosco: “quem somos nós, e que havemos de ser, enquanto povo?”. No tempo em que uma elite nos empurrou para o Indostão, nos arrancou as raízes da alma e nos atirou para o mar, os suíços eram uma horda de bárbaros que viviam nas montanhas cobertos com peles de urso. E enquanto eles inventavam o chocolate, aprendiam a fabricar instrumentos de precisão, e descobriam as formas de organizar a vida colectiva, nós fomos transformados em gado de exportação. Fizemos filhos às negras debaixo dos embondeiros, e voltámos a casa um dia com a cabeça cheia de mitos e de areia dos sertões. Hoje vamos para a Suíça, a governar a vida. Quem somos nós, como povo?!
Jorge Carvalheira

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