NORTEANDO
DE AMADEU FERREIRA E LUÍS BORGES
O
título não diz tudo, mas sugere uma jornada lenta, sem percurso previamente
definido, alheia à ditadura dos ponteiros do relógio, com tempo para pausas
impostas pelos flagrantes do fotógrafo. Sim, não são meros disparos da
objectiva atirados ao acaso, são instantâneos irrepetíveis e irreversíveis. É
uma incursão por um território de que somos ciosos, é uma caminhada a reclamar
calçado e roupa confortáveis, que nos permitem galgar montes, enlamear os pés,
sentarmo-nos numa pedra tosca a ver desfilar rebanhos e manadas. É todo um
apelo da natureza para que dela saibamos saborear todos os encantos, percorrer
todos os recantos, sem espantar (no duplo sentido do termo) aves de voo
desprevenido, borboletas quais cisnes no último canto, sem fugir de um olhar ameaçador
de lobo ou raposa.
Acompanhar Luís Borges nas suas errâncias é, também, encher a vista de
uma policromia de que só a natureza é capaz, maravilhar-se com as flores, sua
grande dádiva. Mas não é a cor o que de mais atraente e expressivo têm as imagens.
Somos, talvez pelo contrário, presos à magia do preto e branco com que o
fotógrafo que nasceu poeta da vista, foi sábia e sensivelmente captar a riqueza
humana de uma região economicamente atrasada, mas que teima em preservar os
socos, os chapéus toscos, o pau que lhes arrima os cansaços da velhice, os
aventais, o negro eterno das viuvezes femininas, o seu lenço posto como só elas
sabem.
Olhamos para os ouriços ou para os medronhos como o cão de Pavlov,
sentimos o algodão em rama da neve a beijar-nos os pés, orgulhamo-nos que não
tenham destruído as antas longinquamente ancestrais, compadecemo-nos com o
destino do porco de patas a pedir clemência póstuma, mas invejamos a ciência do
tempero das alheiras a que o lume servirá de complemento directo. Cada imagem é
uma lição de vida, um hino à Terra Mater, uma dúvida, a de nos questionarmos se
merecemos tanto.
Dizer mais sobre os poemas iconográficos de L. Borges é um atrevimento
de que me penitencio, face à mestria com que de cada um fala o nosso Amadeu.
Repito o possessivo. Nosso. Pela sua sabedoria recatada, pela sua postura “de
camponês que anda preso em liberdade pela cidade”, como disse Alberto Caeiro de
Cesário Verde), pelo seu sorriso que é um paradigma da franqueza transmontana,
pela capacidade natural e espontânea de, cada dia que passa, acrescentar um
novo amigo à sua longa lista. Pela sua força anímica, pelo exemplo de
tenacidade e pelo ar meio envergonhado com que recebe as homenagens que lhe são
devidas.
Os
poemas de um, resultantes de uma objectiva que tem o condão de estar nos sítios
certos nos momentos certos, são enriquecidos com os outros. Sim, Amadeu é tão
poeta na prosa como nos versos. A sua escrita dá-nos a sensação de jorrar com
tanta rapidez e limpidez como quando se abre uma torneira. Parece haver nela
muito pouca oficina. Nasceu para a poesia. Tal deve constar do seu mapa
astrológico. Nós, os privilegiados que o conhecem, sabemos merecê-la,
acarinhá-la, divulgá-la. É nossa, também. Mas, fazendo jus à atávica solidariedade
deste povo, queremos partilhá-la com quem saiba distinguir joías verdadeiras de
pechisbeque.
Ao
olhar as fotografias candidatas a um “casamento” por amor com os seus textos,
Amadeu Ferreira ou Francisco Niebro viu nelas pormenores que o observador comum
não captou. De imagens estáticas ele faz reflexões dinâmicas. Onde nós vemos
cabras empoleiradas em rochedos estéreis, ele interpreta aquelas escaladas:
“não precisam apenas de erva para comer as cabras, sobretudo de horizonte se
alimentam”.
Cada
imagem é um desafio, um convite a tratá-la de acordo com um certo registo:
conta pequenas histórias, invoca a infância, opta pela fábula ou pela curta
narrativa infantil, dá aos seus pensamentos a estrutura tradicional de poemas,
rememora tempos idos de mais arreigada autenticidade, de penosos trabalhos na
terra, lamenta o abandono dos campos. Mas regozija-se com a manutenção de
práticas agrícolas de um tempo ontem, como a apanha da azeitona, as malhadas
com manguais, a lavra com o arado.
Invoca escritores clássicos, recorre à mitologia, à etnografia, não para
alardear uma erudição vaidosa, antes como forma de construir uma certa
pedagogia subjacente a alguns dos textos que, de braço dado com as fotografias,
além de proporcionarem um duplo prazer estético, cumprem uma missão urgente e
civilizacional – a de transmitir às gerações a quem os dentes nasceram com o
computador, como viveram os seus antepassados e o quanto labutaram para que os
não arrancassem de uma terra onde tudo lhes foi regateado e onde aguardam
pacientemente, de mãos encarquilhadas e encardidas, sem dentes com que rilhem
uma maçã, uma outra terra que lhes dispensa a enxada.
M. Hercília Agarez, Julho de 2014
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