segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Retalhos da História de Vila Flor - VIII

AS FAMÍLIAS HENRIQUES JULIÃO E LOPO MACHADO NA INQUISIÇÃO DE COIMBRA.
QUESTÃO RELIGIOSA OU LUTA POLÍTICA?
A PRISÃO DOS NOBRES CRISTÃOS-VELHOS

Assistimos no capítulo anterior àquela enorme vaga de prisões efectuada em Novembro de 1664. Escusado será dizer que alguns daqueles homens e mulheres tinham fortes casas comerciais, negócios rendosos, indústrias florescentes de sedas e curtumes e boas casas agrícolas. Escusado será também dizer que muitas delas se arruinaram de repente e outras ficaram paralisadas ou meio abandonadas. Imaginem que até a própria casa de habitação era fechada e “selada” (quando se decretava prisão com sequestro de bens), ficando impedidos de nela entrar o próprio cônjuge e os filhos. Reparem que, por vezes, se prendiam ambos os pais e ficavam filhos de tenra idade completamente abandonados na rua, dependentes de algum familiar ou de uma boa alma que lhe deitasse a mão.
E certamente houve muita gente que, receando ser presa, decidiu abandonar a terra e seguir para o estrangeiro. Também Diogo Henriques e seu mano Luís Henriques Julião tentaram a fuga mas foram surpreendidos nessa hora pelo filho do capitão-mor que andava de olho em cima deles e não conseguiram abalar. Tal como não conseguiu a mulher de Filipe Dias que ia ter com o marido a Castela, levada por dois “passadores” mas o filho do capitão-mor seguiu-a até Gouveia, nas proximidades de Alfândega da Fé e ali prendeu a mulher e os “passadores” e lhe tomou “uma espada, uma espingarda, uma mula, um rocim e duas jumentas, que se venderam por ordem da justiça”. (1)
De outra vez, um parente muito chegado de Diogo Henriques terá vindo de Castela, onde estava emigrado, a buscar sua mulher a Vila Flor. Mas foi também surpreendido e preso.
Todos estes episódios são reveladores da intensa luta política entre as comunidades cristã-nova e cristã-velha de Vila Flor. E as prepotências dos nobres (verdadeiros caciques, como hoje se diz) e do “partido da Inquisição” estendiam-se a outros campos, como o da política tributária:
Sim: em cada concelho, em cada ano, em reunião de câmara, era nomeada uma “junta de repartidores da décima” – uma comissão de 3 homens que definiam o montante que cada morador devia pagar de contribuição. E, naturalmente, que tal junta era constituída por gente da feição dos homens da governança da terra e que a “décima” atribuída aos cristãos-novos era sempre bem mais carregada que a dos outros. Não bastava os bens que lhe arrematavam por 5 reis de mel coado quando os prendiam, que também os carregavam no pagamento das décimas. Caso idêntico se passava com o pagamento das sisas e outras taxas e impostos fiscais.
Outra vexação que muito incomodava os cristãos-novos de Vila Flor vinha das “boletas dos soldados” e funcionários do Estado. Significa isto que, quando à vila chegava uma partida de soldados, ou qualquer alto funcionário do estado ou da igreja, com sua comitiva, era preciso proporcionar-lhe alojamento e refeições, não apenas para eles mas também para as cavalgaduras. E era ao capitão-mor e às estruturas de poder municipal dele dependentes que competia tomar as providências necessárias. E agora o leitor já sabe que, em tais circunstâncias, os castigados eram geralmente os mesmos, os seja as casas mais abonadas dos cristãos-novos.
E “aboletavam” também juntas de bois, machos e os burros dos cristãos-novos. Expliquemos. Era relativamente frequente haver necessidade de transportar cereal, palha, lenha e muitas outras coisas e então… requisitavam-se aos cristãos-novos.
Vai longa esta exposição sobre os procedimentos criminais da Inquisição e seus sequazes, procedimentos que não seriam muito diferentes dos adoptados por outros poderes e outras autoridades, devendo isto ser encarado como reflexo do pulsar da sociedade de então, um aspecto do modo de viver quotidiano. Nem esta exposição tem por objectivo fazer qualquer juízo de valor, mas tão só tentar compreender a sociedade.
Voltemos àquelas ondas de prisões em Vila Flor e a outras que seguiram ainda. Não vamos analisar os respectivos processos – que isso daria trabalho para uma vida. Vamos tão só focar um aspecto que vai levar a novas e extraordinárias prisões, a um estranho e fantástico episódio da luta política em Vila Flor, arbitrada pelos inquisidores de Coimbra.
O caso é que todos aqueles prisioneiros, ao longo das audiências, foram contando que realmente tinham feito práticas judaicas e se tinham declarado crentes na lei de Moisés. E citavam as pessoas e relatavam as circunstâncias e os pormenores. No fundo, todos se denunciavam uns aos outros e acabavam por mostrar-se arrependidos e pedir perdão.
Desta vez, porém, certamente combinados entre si, eles denunciaram, como seus companheiros de jejuns e orações e cerimonias e declarações de judaísmo, todas as figuras gradas de Vila Flor, os homens de maior nobreza da terra, sempre tidos por cristãos-velhos, a começar pela família do capitão-mor do concelho.
E o caso é que tais testemunhos não eram contraditórios, antes concordavam nos pormenores, tornando-se credíveis. Até apareceram pessoas de Vimioso, Ventuselo, Freixo de Numão e Vilarinho dos Galegos a ajudar em tais denúncias.
Não restou outra saída aos inquisidores que não fosse a abertura de novas fichas e a instauração dos respectivos processos e… em Fevereiro de 1667, a Vila Flor foi submersa de todas as vagas de prisões. Mais de 30 pessoas foram então enjauladas, a grande maioria pertencentes à mais distinta nobreza da terra e que sempre se afirmaram cristãos-velhos, alguns dos quais tinham até certidões de pureza de sangue. Aliás, e depois de minuciosas investigações, concluiu-se que, afinal, em todas elas corria sangue judeu, nem que fosse ¼ ou 1/8 ou 1/12 avos, significando isso que tinham pelo menos um avô, um bisavô ou um trisavô que era da nação hebreia. E todos eles, ao cabo de longos anos de estada nas masmorras da Inquisição, muitos deles submetidos a tormento, acharam melhor confessar que, afinal, tiveram práticas judaicas e se declararam seguidores da lei mosaica. Verdade? Mentira? Pelo menos assim veriam abrir-se-lhe a porta de regresso à liberdade.
Deve dizer-se que, exceptuando algum que morreu no cárcere, todos passaram uns 6 anos nas infectas masmorras, saindo no auto-de-fé realizado em 12-13 de Março de 1673.
Nos capítulos seguintes apresentaremos alguns desses presos que se diziam cristãos-velhos e pertenciam à nobreza da terra, como eram os Madureira, os Montes de Almeida, os Morais de Ataíde, os Azevedo, os Lemos, os Borges, os Sil, os Lobão, os Coelho de Meireles…

António Júlio Andrade
Fernanda Guimarães
NOTAS
1 – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 209, de Francisco de Morais de Ataíde.
Fotografias cedidas pelo Museu Municipal Berta Cabral.

Nota do Editor:
Reedição dos posts públicados no blog :

http://marranosemtrasosmontes.blogspot.pt/

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.