terça-feira, 11 de março de 2014

O rebentar da primavera no outono do Joca,por Carlos Sambade

O mundo comporta os planos A, B e C. Muitos dos que têm ideias finam-se por excesso de velocidade e correlativa falta de força, bebida desregulada sem ter, sequer, de se saber o motivo, ainda que outros caiam pelo vencer puro e simples do quotidiano. Agora, porém, é o bom tempo que dá mostras de si.
Rebenta a natureza que do sol faz corpo. Muita flor que bordeja caminhos vai, por certo, escapar ao herbicida que, já não sendo assim tão barato, é preciso canalizar para o âmago das culturas tradicionalmente salvaguardadas e limpas do que não preste. Assim se pensa.
Com a força de cada primavera a vida acontece de modo unânime, ainda que haja situações que permanecem em modo de espera e outras a fazerem barragem ao que se apresente claramente invasivo. Até que chegue o jardim francês.
Há espécies protegidas e outras que vêm do princípio do mundo e se dão bem juntas e a tender sempre para o mesmo.
Tudo o que é efémero sai que nem borboleta, dura por vezes o instante do pequeníssimo voador que aprecia, incerto, o modulado quente do digital.


O corte de ramos tardio faz da amendoeira chão florido. Já a oliveira não dá tanto pasmo, talvez por prender de estaca. Ambas hão-de fornecer bom lume quando forem encaminhadas para a hora da lenha cortada e, se for caso disso, convenientemente rachada. Primeiro é a folha de serra, as mais das vezes a motor, depois as cunhas e a marra, ou então o rachador, que dão forma ao produto pronto a ser consumido com alguma chama e fumaça dirigida. Nem de mais nem de menos.
Cantam aves à compita procurando assentar o lugar do ninho tendo em vista os predadores que, com o tempo, foram incorporando no instinto e na memória geral da espécie.
Tudo aquilo em que se investe é de primeira qualidade até que ceda lugar, pelo barulho que espanta mas que já causou mais admiração do que causa, ao desencanto e ao desalento. Assim, plante-se, então, o que cresça, construa-se o que permaneça.
Entra o sol no “digital point” e não deixa que tarde se faça. Há o rumor das “selfies”.
 Tem quinze anos. Já quase não se tem nas patas. O seu fígado está no chão e, por isso, tem de lhe ser ministrado, com frequência, um determinado “cocktail” de químicos. Houve quem visse uma senhora, à saída da missa do convento, quase indo para o Larinho, a cuidar dele. Não se sabe se o acolheu. É muito dado. Não se conhece o jeito dessa pessoa que foi vista. Sabe-se que se desloca em veículo ligeiro de cor negra. Não há assim tantos carros pretos.
Não gostaríamos que os dias do Joca chegassem ao seu termo à trouxa mocha, sabe-se lá à procura de quê.
A água empoçada e funda é o lugar de todos os abismos e um animal não pode aí acabar por falta de forças.
Procuramo-lo na medida em que ele nos possa querer procurar e encontrar.
Dá para perscrutar o alcance do trágico, na contemporaneidade que tem escapado a desideratos inomináveis, olhando as pequenas coisas que quase parecem postas no lugar para nos treinarmos e, dessa forma, robustecermos, para o que der e vier, todo o ser em nós. E nos outros que, por ali, calhe de haver, passando.
Uma coisa é a procura e outra é o encontro.
Se o Joca chegar aos dezoito anos, com novo dono que nele aplique estima, já não é nada mau para uma vida de cão. Isto se a senhora do carro preto não se viu obrigada a dar-lhe adequado suporte final. Ou se, entretanto, não foi resolvido, algures, que animais tão dados possam chegar perto da força de vontade de pessoas que os estimem. Assim, todos querem que durem o mais possível e em perfeitas condições. Se não todos, bem alguns.
 O que prende encontra-se essencialmente protegido do desconforme e dessa forma cria o sentido de libertação.

 Carlos Sambade

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