A
propósito, vou contar-vos um episódio que, visto em retrospectiva de quase 70
anos, até tem certa graça.
Tinha eu 6
para 7 anos e frequentava a catequese, como toda a criançada da Corredoura e da Vila. Aos Domingos, pelas 3 horas da tarde
tocava o sino para a catequese e lá ia a
miudagem toda a correr para a Igreja.
Havia várias catequistas que nos agrupavam de acordo com a nossa idade.
Calhou-me uma freira do Asilo. Ainda era nova e tinha uma voz macia. Como
éramos as mais pequenitas, em vez de decorarmos as perguntas e respostas do
catecismo, a freira contava-nos histórias de santos e mártires: Santo António,
S. Paulo, S. Sebastião, S. José e por aí fora. Gostávamos todas de histórias e
ficávamos muito atentas. Eu prestei uma atenção muito especial a S. José, porque era ( e é) meu padrinho.
O padre
Félix aparecia às vezes nas aulas de catequese e, em um ou outro grupo, esclarecia qualquer
ponto mais complicado. Sobre S. José explicou-nos que “ não era o verdadeiro pai de Jesus, pois
Jesus era filho de Deus, concebido por obra e graça do Espírito Santo” . Uma
complicação. Então perguntei se S. José
era “ o padrinho de Jesus” . “Não, S.José é o pai putativo de Jesus”, foi
a resposta . Creio que ficámos todas aparvalhadas, pois a palavra “putativo” ressoava fortemente a algo
obsceno.
Como já
sabia ler bem e tinha a curiosidade de
saber o significado das palavras que não conhecia, o meu pai dera-me um pequeno
dicionário de Português e ensinara-me a utilizá-lo. Por isso, mal cheguei a
casa, fui logo ao dicionário procurar o significado daquela palavra repugnante.
Encontrei : “que se supõe ser, mas
não é” . Pareceu-me mais uma adivinha do que um esclarecimento e claro que eu não consegui adivinhar. Ainda havia um segundo significado : “
reputado”. Aí a minha confusão
foi total, poisa palavra “reputado” soava ao meu ouvido tão obscena como “putativo”.
Tudo
isto se passou entre Junho e Agosto, época da 1ª Comunhão das crianças de 9 e
10 anos. Em Outubro entrei na esccola. Levava os caderninhos da cópia e das
contas já assinados como meu pai me
ensinara : Maria Júlia Barros. A professora chamou-me junto dela e, em voz
baixa e bondosa, disse-me que na escola não podia assinar com o nome de meu
pai. Lá fora podia, na escola não. “Porquê?”
“ Porque há uma lei que não considera o teu pai como teu pai”.
Comecei
a pensar que o meu pai devia ser putativo, como S.José. A palavra continuava a repugnar-me e o pior
é que não me saía da cabeça. Até que um dia resolvi perguntar directamente
ao meu pai : “ O senhor é meu pai putativo?”
Primeiro, o meu pai ficou sem fala; depois disse : ”Calma” , porque a minha mãe já estava de mão no ar para me
pregar um par de estalos pelo palavrão
que eu dissera . Então relatei a cena da
catequese e expliquei também que na
escola o meu pai era como se não fosse meu pai e, por causa de uma lei, eu não podia
assinar com o seu nome.
Depois
de, com muito carinho, me ter explicado que essa feia lei se chamava Concordata,meu
pai prometeu-me que, quando a lei mudasse, ele seria meu pai em todo o lado e
eu usaria o seu nome . Isso aconteceu
quase 30 anos depois.
Leiria,
18 de Março de 2013
Júlia
Barros Ribeiro
Já fui ao dicionário procurar a palavra PUTATIVO que eu não conhecia e lá estão esses mesmos significados.
ResponderEliminar<< Dicionário de Português, Porto Editora Lda , 5ª edição>>
Ele há situações tramadas.
ResponderEliminarS.José *pai putativo* de Jesus! E Dia do Pai.
Ora esta ! O qua gente aprende por estes lados.
Melro
Este texto faz pensar en muita cosa - pais e filhos, famílias , religião, escola, as leis injustas de um país .
ResponderEliminarGosto do que esta senhora escreve.
Obrigado e ao Sr. Lelo tamben.
Antonio M. apreciador deste site.
A memória desta senhora é fenomenal e sabe contar muito bem.
ResponderEliminarPor outro lado creio que toda a sua vida é muito cheia, muito rica. De certeza que estes momentos que nos relata foram e são grandes lições de vida.
Muito obrigado
J.Terra
Nem a "explicação" do padre Félix nem o "esclarecimento" do dicionário satisfizeram a curiosidade da menina Julinha ...
ResponderEliminarTão bem contado!Como,aliás,todos os outros episódios da sua infância e não só.
Bem-haja por me fazer rir mais uma vez.
Grande abraço.
Uma moncorvense
Tem muita graça, mas no fundo faz refletir . Gosto das suas estórias-memórias, minha Senhora.
ResponderEliminar+ 1 leitor dos Farrapos
Olá Júlia,
ResponderEliminarGostei muito de ler o texto sobre S.José. É enternecedor e comovente ao pensar que tudo isto se passou com uma criança de 6 anos vítima de uma lei obscena. Depois, com o distanciamento no tempo e com bastante abstração conseguimos e até achar muita graça.
Um abração
Rosa Veludo
.
A menina Júlia é espetacular.. Eu estou a imaginar a criancinha com a cabeça cheia de duvidas a folhear o dicionário.. Mas deixe lá., o seu pai é tão importante como o s. José. Parabéns pelo seu bom humor e por partilhar as suas historias de vida..
ResponderEliminarUm abração a todos os blogueiros, aos que comentam e aos que lêem.
ResponderEliminarJúlia
Teresa Malburet :
ResponderEliminarGostei muito : lindo texto!!!
Olá Julinha!
ResponderEliminarMais uma vez Parabéns pelo texto que nos apresentou e deliciou a todos.Os Parabéns são redobrados pela coragem com que aborda esta e tantas vivências da sua vida.
Para o meu Pai envio um beijo de eterna saudade.
Beijinhos da amiga
Irene
Olá, Ireninha:
ResponderEliminarMuito gosto de a ver aparecer por aqui e obrigada por palavras tão amáveis.
Um abraço muito grande da amiga
Júlia
Com um bem haja, outro abraço para a amiga Teresa Malburet.
ResponderEliminarJúlia
O Rochinha virou 2 vezes. Agora é S. José. Haja respeito
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