sábado, 8 de março de 2014

DIA INTERNACIONAL DA MULHER (Em sua homenagem,reeditamos textos das nossas colaboradoras)

A autora e os pais
Ai tempo ... Ai tempo ..., por Irene Garcia Massa
Ao meu Pai que me transmitiu valores de trabalho, seriedade e honestidade. À minha Mãe que me educou e me ensinou a ler. Aos meus amigos de infância. Aos mais velhos que me viram crescer. À minha terra que trago sempre no coração.

Ai tempo em que feita mulher antes de tempo deixei a terra que me viu nascer. Tempo do “carambelo” a caminho da escola em mês frio de Natal. Desse tempo guardo ainda a imagem da minha querida professora sentada na secretária a apontar:
Menina ao quadro.
E, eu, a esconder os dedos das mãos e a inventar contas de somar e subtrair. Ai tempo da minha pequenez empoleirada num banco a espreitar por uma nesga de cortina os “caretos” no Entrudo. Cartuchos de cinza e farinha arremessados às janelas das moças em idade de casar. Ai tempo, ai tempo dos trigueirais verdejantes, das amendoeiras floridas do perfume dos lilases em dia de compasso na Páscoa. Folares desfeitos na ermida da Senhora do Castelo, construída em outro tempo, que já não é do meu tempo, e que por lá continua debruçada nos fraguedos a abençoar o Douro magnífico, deslumbrante. Verões quentes e secos, de trigo malhado na eira, entremeados de trovoadas medonhas que me obrigavam a esconder num quartinho sem janela. Lá fora era um rio, um mar de água barrenta, a escoar-se na Rua do Saco, a espraiar-se no Largo da Fonte Nova, e o mulherio aflito num “ai Jasus” Deus nos acuda que isto é o fim do Mundo… Para alguns, não para mim, que ainda não me chegou o dia. Verões de tardes adormecidas, mas quando a noite chegava e o dia estava no ocaso, ouviam-se as Trindades e o toque era de recolher obrigatório. Chegava a hora da ceia. Das taleigas da merenda pouco ou nada sobrara. Uma côdea de pão duro, mais um cibo de peguilho. São resquícios desses tempos que gravei dentro do peito e fizeram com que desse valor a tudo o que a vida me deu. Quando a noite já era noite, e, debaixo de um céu estrelado e abafado de Julho, ou, mais fresco e enluarado de Agosto vislumbrava no firmamento o rasto de uma estrela cadente, a minha Mãe dizia-me, que solicitasse um desejo. Não sei se foi por as estrelas estarem “moucas” ou se por a minha voz ser sumida, a verdade é que nem sempre me deram ouvidos. Nesses serões inesquecíveis ouvia histórias gastas, repetidas de bruxas e lobisomens… Elas as “despóticas”na última sexta-feira do mês banhavam-se nuas na ribeira do Arroio e o moleiro, homem rijo, valente, fugia amedrontado não sei se por via da algazarra que faziam ou se da tentação do demónio… A “ti” Hermínia a quem nunca vi um dente num sorriso ou numa fala, fazia cruzes na boca, jurava e até que ficasse ceguinha, que no tempo em que era forneira , ouviu, nunca viu, coisas de que nem se queria “alembrar”. Falava dos lobisomens, criaturas misteriosas, que em noites de lua cheia e antes do galo cantar vagueavam pelo povo. Não eram bichos nem homens e uivavam como lobos esfomeados à cata de ovelha tresmalhada. Os mais velhos riam-se, mas a verdade é que eu acreditava e de tanto acreditar ficava amarelinha de medo e a tremer como varas verdes. Quando a lua estava cheia, e vaidosa se ia mirar na clarabóia do meu quarto, metia a cabeça debaixo dos cobertores de “papa”, para de lá só sair, quando o dia clareava. Tempos que não voltam, rostos que partiram e marcaram para sempre a minha infância quase feliz. Hoje e volvidos tantos anos rogo ao tempo impiedoso que não me varra da memória o ar cansado do trabalho de sol a sol do meu pai, a curva da Excomungada, o Couço, a Nogueira, a Pracinha, a Travessa da Botica, o Comércio da Senhora Dona Beatriz a qual por vezes me presenteava com os seus deliciosos rebuçados, a Fonte do Pelameiro, a chiadeira dos carros de bois em tempo que era de vindima, as Partidas da Amêndoa, as Torradas no Lagar, temperadas com azeite e polvilhadas com açúcar e canela e, vê lá ó tempo, não me roubes o sabor que ainda guardo na boca do café que tantas vezes bebi em casa da “Tia Tomásia”, feito em lume de chão, que ainda hoje não sei se era do púcaro ou das saudades que tantas vezes me apoquentam, mas a verdade é que nunca encontrei outro de sabor igual…

URROS – TORRE DE MONCORVO – IRENE GARCIA MASSA (IRENINHA)
Fotografia :Adélia Alva Macedo de Sousa ,natural de Miranda,regente escolar em Urros e Maçores nos anos de 50/60 do século passado;a menina Ireninha; e Luís Guilherme Garcia, serralheiro e pequeno proprietário,natural de Urros.

Nota: este texto dá início à colaboração da escritora Irene G.Massa, a quem o blogue dá as boas-vindas.
Publicado  a 30/11/11

31 comentários:

  1. Olá, Irene:

    Acabei de ler o seu texto e soube-me a ... pouco. Por isso o reli. Estas vivências de que até as cores, os sabores, os cheiros guardamos na memória, não as podemos deixar cair no olvido. Há que registá-las para memória futura.
    Irene, tem de mandar mais. Não meta textos destes na gaveta, porque o tempo cobri-los-á de pó e de silêncio.
    E agora, "last but not least", uma breve nota: o seu texto está primorosamente escrito.

    Um abraço
    Júlia

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  2. Olá Irene
    Por momentos fiz uma viagem alucinante pela minha querida aldeia...Também me soube a pouco, quanta beleza.....
    Pertenço á familia Garcia / Moncorvo...
    Obrigada por esta viagem ao passado....:)
    Abraço
    Mª José Garcia

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  3. Eliane Ayres disse:Lindo o texto!

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  4. Olá Irene

    Li e reli o seu texto...e gostei.Não deve guardar so na memória, essa por vezes deixa-nos ficar mal.Deve isso sim
    dar-nos conhecimento de todas essas vivências elas são uma mais valia para nós.
    O próximo é para quando?...

    Um beijinho grande e mãos à obra que se faz tarde

    Isabel Monteiro

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  5. Therese Carvalho disse: obrigado pelo seu portal todos os dias estou ansiosa de o ver

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  6. Muito bem escrito. Leio, releio e revejo as minhas memórias, as minhas raízes. Os cenários, as sensações, as palavras e sinto, também, saudade.
    “Ai tempo… Ai tempo” é uma tela realista pintada com mestria por Irene Garcia Massa. Um naco de prosa que é, todo ele, “peguilho” para o espírito. Obrigado “menina Ireninha”.

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  7. Ireninha, hoje tive o privilégio de descobrir uma escritora.
    Este teu texto, que me fez recuar no tempo e abrir o meu armário de memórias, levou-me à minha meninice na nossa aldeia.
    Esse tempo que já passou, mas felizmente continua vivo no nosso registo.
    O que escreveste, também me fez lembrar as vivências e muitas das alegrias da minha.
    infância
    Quando nos lembramos da nossa terra, recordamos todas as pessoas, que contribuiram para a nossa formação e felicidade.
    Todos nos conheciamos,todos sabiamos quem era quem, hoje infelizmente, quando vou a Urros, já não conheço os mais jovens, mas fico muito contente porque me recordo dos mais velhos.
    Na minha memória, continuam vivas todas as pessoas e coisas desse tempo, em que vivi e cresci em Urros.
    Fiquei muito feliz quando recebi o teu telefonema a dizer que tinhas escrito sobre a nossa Aldeia depois de a teres visitado, após nos termos encontrado, onde eu te disse que irias gostar de lá voltar.
    Hoje fico com mais saudades das gentes da minha terra, mas fico mais satisfeito porque a tua visita valeu a pena, não só para ti, como para todos os que tiverem o privilégio de ler o teu texto.
    Parabéns e obrigado por me dares a conhecer O (Blog Farrapos de Memórias),continua.
    Manuel Sengo

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  8. Mais um talento com raízes na nossa terra que nos faz sentir orgulhosos e que, de certo modo, atenua a vergonha de sabermos ter nascido transmontana gente que nos deslustra.
    Parabéns,Ireninha,pelo belo texto.

    Uma moncorvense

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  9. Um texto belíssimo, que gostei imenso de ler,pq me faz lembrar a minha infância, ainda que vivida e passada noutro lugar do Douro Inferior. Um texto que Torga também gostaria muito de ler, por certo. Parabéns, Senhora Dona Irene e, por favor, continue a escrever para nos podermos deliciar com a leitura da sua agradável prosa.Mª do Sacramento.

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  10. Sra.D.Irene,
    Acabo de ler o seu texto e não posso deixar de a felicitar. A prosa suculenta e primorosa que nos transporta aos lugares, ainda que para mim desconhecidos, nos faz sentir os aromas e os paladares de uma época vivida de forma tão sentida é, de facto, de louvar.
    Não fique por aqui e continue a fazer-nos transportar por esses tempos,qual comboio de memórias, e a fazer-nos viver experiências e vivências que nos aquecem o coração e elevam o espírito...
    Parabéns!

    Tânia Coutinho de Matos

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  11. O prometido é devido...

    Não conheço Urros nem as suas gentes, mas emocionei-me com o texto que acabei de ler! Notável o seu talento, outra coisa não era de esperar!!!
    Parabéns Irene e continue a mimar as gentes de Urros e os que não são mas apreciam todo o seu talento.

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  12. Parabéns pelas memórias que avivou a todos os que bem conhecem o Nordeste Transmontano...

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  13. Parabéns pelo teu texto avó!

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  14. Olá Ireninha!
    Parabéns pelo belíssimo texto que nos apresentas!Eu já o tinha ouvido, mas lido, é ainda mais bonito. Continua.Fico à espera do próximo.
    Olá Manuel!
    Já que os vizinhos não se veem, encontram-se nos "Farrapos..."!Gostei muito de te encontrar e de ler o teu comentário.Temos escritora! Eda nossa terra! E da nossa rua, quase...Também fiquei emocionada ao rever a nossa aldeia, o nosso tempo de infância! E tão bem escrito! Está de parabéns a nossa amiga.
    Com muita amizade, saudades e um beijinho para todos,
    Tininha

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  15. Parabéns Ireninha pelo belíssimo texto que acabas de nos apresentar.Gostei muito.Fico à espera do próximo.As coisas bonitas devem partilhar-se.Um beijinho,Tininha

    Olá Manuel! Agora os vizinhos não se vêem, encontram-se nos Farrapos; e muito bem! Gostei muito de ler o teu comentário; já agora continua!E permite que te confesse, se a tua mãe cá estivesse, meu amigo! Ninguém contaria melhor do que ela, contos que só ela sabia contar.
    Olha, temos ali uma grande escritora! E da nossa terra, a Ireninha!Olha que o texto está mesmo bonito!
    Saudades para todos.Daqui da Fonte Nova, com amizade, um grande beijinho para todos!
    Tininha

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  16. Parabéns. Gostei muito, mas para mim não foi uma surpresa, pois conheço há alguns anos os seus dotes de escritora que escreve e guarda, mas no futuro tem que os publicar, para bem dos seus amigos, onde me incluo eu e minha mulher.
    José Luis Lima

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  17. Peço desculpa pela repetição de texto.Aqui onde me encontro, a NET e o computador pregam-me destas partidas; ou azelhice minha.
    Obrigada. Beijinhos,
    Tininha

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  18. Boa noite Tininha.
    O Sésamo(Urros terra de Ovelhas)Novos contos das Montanha - Miguel Torga.Desculpa a citação, mas como um anónimo no seu comentário referiu Miguel Torga, nunca é demais lembrar que até ele se inspirou na beleza,usos e costumes da nossa terra e das suas gentes.
    Assim, não fiquei admirado da tua poesia e dos teus textos, que tive oportunidade de ler nos Farrapos.Uma delícia literária, que sabe a pouco,também apreciei todos os comentários que tens feito nos Farrapos. Sobre a minha Mãe,que posso dizer, está tudo dito. Obrigado pelas tuas palavras. Com muita amizade e estima. Manuel Sengo

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  19. Olá minha querida amiga Tininha!De belo que é este teu texto nem palavras tenho para o comentar...Não me recordo do personagem...Um dia irás certamente falar-me dele.O jogo do lençinho,o eixo e tudo o que descreves com tanta mestria e fantasia só pode ser de alguém como TU.Um bj dois bjs tantos quantos tu quiseres aceitar.Ireninha

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  20. Creio que a Irene se enganou,colocando o comentário ao texto da Tininha aqui.

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  21. Olá amigos!Grata pelos vossos comentários a meu ver imerecidos envio um beijo com carinho e amizade e um até breve.Beijinhos.IRENE

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  22. Há 41 anos já no tempo do Colégio "Campos Monteiro" em Moncorvo que tinha notado que esta miuda tinha "queda" para a escrita;mas confesso que pensei que não era para tanto.Já agora deixai que vos diga que isto não é do seu melhor.Ela em tempos escrevia de vez em quando para o Jornal "Noticias do Douro"contos e narrativas que eram fabulosos na verdade "coisas e loisas"que não lembravam ao diabo Ela devia reescreve-las .São fantásticas. E os rascunhos em folhas A4 que andam como que escondidas em gavetas e gavetões cá por casa.Hó...hó... Olhai!...só vos digo que se o Guerra Junqueiro e o Miguel Torga hoje fossem vivos e se candidatassem a formar um Governo.Eles viriam de certeza convidá-la para ministra da cultura e vos garanto ganhavam com maioria asoluta-Parabens mulher-"Quem porfia sempre alcança e tu já alcançaste.Um beijo-Arnaldo Massa-

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  23. Olá Manel!Fiquei de tal maneira emocionada que só hoje tive corangem para te agradecer.São amigos como tu que me vão continuar a dar força para realizar este sonho que trazia agachadinho dentro do meu coração.Beijinhos e muito obrigada da tua amiga Ireninha.

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  24. Maria de Fátima Sarmento / Amiga do café Sirius29 de novembro de 2011 às 14:56

    É um triste sintoma da passagem do tempo, verificarmos que muitas coisas, dentro de nós, vão deixando de ter, a pouco e pouco, o aspecto mágico de que se revestiam.
    Para além de um relato histórico fiel e pormenorizado de uma época, um pouco esquecida, bem pode dizer-se, que para a Autora de "Ai tempo... Ai tempo", escrever é criar beleza, fazer "da inevitavilidade" dos acontecimentos quotidianos, e, por consequência, ritualizados e "banais", um "alimento" fabuloso para os que não querem perder a criança que dormita, na sombra, em cada um de nós.
    Só a sensibilidade de uma alma de poeta, consegue transcrever a sua visão da normalidade dos acontecimentos, fazendo-os passar para uma dimensão poética encantadora; para uma dimensão efabulada, que faz com que o normal, por vezes enfadonho, nos enleve e "transporte" para um mundo encantador.
    Parabéns Irene, continue a fazer o que sabe. Nós agradecemos.

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  25. Memórias lembradas que nunca serão esquecidas. Certamente, um óptimo texto descritivo! Demonstra a enorme capacidade de escrita da Irene,que com as suas palavras e o seu vasto vocabulário consegue avivar lembranças e recordações a muitas gerações.

    Beijo Luísa Morgado

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  26. Que belo texto Dona Irene!

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  27. Olá ireninha
    Convidu-a a visitar o Grupo amigos de Urros no facebook.
    Beijinhos
    Misé

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  28. Parabéns!!!! Que texto lindo…continue!!! (fiquei fã dos seus textos)
    Um beijinho 
    São.

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  29. Olá Ireninha!Amiga de longa data! Alegre, bonita e bem disposta,sempre assim a conheci...As Histórias da tia Herminia tb.me são familiares... assim como os sabores ínconfundíveis das torradas de azeite e outras doçarias q. agora já não têm o mesmo sabor...o forno já não coze,já não há morcelas doces como as da nossa infância, grelhadas no borralho e os requiejões e o soro acabado de fazer, com canela e acuçar? A época do carnaval era repleta de mistério, medo e diversão e as "grasnadas" à noite? Quem não se divertia a ouvi-las? Ai tempos idos...E na quaresma "encomendar as almas" ...tb recordo o fascínio das noites de luar,histórias e mais histórias q. nos fascinavam e ajudavam a crescer...adorei o texto e revie recordei a "família" que sempre me tratou com muito carinho!Querida amiga e vizinha parabéns Tb. peço à minha memória q. nunca apague as memórias da nossa infância.FELICIDADES para toda a família.
    bjis da sempre amiga Letinha

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  30. Leonor Rocha :Parabéns a quem escreveu este texto tão bonito e vivido... Eu vivi em Moncorvo e recordo com carinho as gentes de Urros ...

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  31. Um texto fantástico escrito pela autora Irene Garcia Massa!Parabéns minha senhora e continue a deliciar os leitores dos "farrapos de Memória" com a sua bela escrita.Da Zulmira ,uma amiga do Hospital,onde tantas vezes a viu ajudar como Voluntária ,aqueles que mais precisam.Um beijo enorme para esta Mulher de alma nobre e coração generoso.

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