“Um Excesso que em tudo se entranhou” |
Deixado
este aviso, vou tentar, tant bien que mal, cumprir a tarefa de que fui
incumbida.
Li
as crónicas, uma por uma, à medida que
elas eram publicadas no Facebook. (Foram, aliás, a motivação para eu entrar no
Facebook). Como mandam as regras, observava primeiro as fotografias de Luis
Borges que lhe serviam de mola. E que extraordinária mola! Notáveis essas
fotografias! É espantoso como fotografia e crónica formam um todo, um nó que
não se desata e só possível, porque se trata de dois enormes artistas.
Através
destas crónicas apercebemo-nos de diversas facetas do autor : o Homem simples
que ama a terra e com ela e com os que a trabalham se identifica: o pastor, o
vaqueiro, o malhador, o gadanheiro ... a
Mulher que coze o pão e o folar, e lida na cozinha , e ajudou a construir os
socalcos, e que também é pastora, e serve de arrimo e companhia ao homem, avultam
na sua galeria de retratos. Mas não se
imagine que esses retratos são tão somente físicos. O escritor questiona-se
sobre a jornada do homem ao longo da sua
existência e para lá dela.
Por
exemplo, tomemos a crónica “Um Excesso que em tudo se entranhou”: “ ...beleza, rio, gente, clima e dureza de
uma vida que ainda mostra as crostas das feridas que continuam a doer, pois
outra seria a paisagem sem as marcas humanas que a fizeram, e apagá-las é um crime.”;
Ou
estoutra : “Chaga viva de um sonho de
eternidade” (sobre a Anta de Zedes).
Escreve o autor no final : “... já foi morada de mouras, e hoje é uma
casinha de brincar ao tempo, chaga viva de um sonho de eternidade que ainda não
conseguimos alcançar, mas nunca deixámos de perseguir.”.
Anta de Zedes |
Outra dimensão, que não está desligada da
primeira, é o seu amor pela Natureza: montanhas, rochas, fragas, rios, e todas
as plantas desde centenários e carcomidos castanheiros até às ervinhas que só sabe nomear na língua em que bebeu o
leite materno: yerba bota, carniçuolos,
garabatina, yerba pingoneira, fedieiras, niebros, scobielha, etc. .
Vejamos
o início e o fim da crónica “O Caminho da
Sabedoria”: “ erguem-se as rochas como um imponente grito
vindo do fundo do tempo, feridas já cicatrizadas das convulsões da terra. [...]
se o nosso respeito vai todo para a imponência das rochas e das altas
montanhas, e às ervinhas apenas desprezo reservamos, isso mostra como ainda
tanto temos para andar no caminho da sabedoria.”
Os
medronheiros são “Fogueiras
acesas à porta do Inverno” e aí
lemos: “...nunca me chegavam a aquecer as mãos da minha infância, mas os olhos
ardiam sempre na febre de um deslumbramento que ainda hoje dura.” .
A
este apego à Natureza se associa o apego aos animais, companheiros de caminhos,
de solidão e de trabalho: as ovelhas, as
mulas, os burros, os bois, cada vez menos utilizáveis e menos utilizados ,
substituídos por máquinas que vão afastando mais e mais o homem da terra, donde
tudo nasce e tudo se acaba.
Também
nos apercebemos facilmente do Homem da Polis, do cidadão, pois o Amadeu como
tal se afirma. É um homem profundamente ligado às suas raízes, mas não é
saudosista nem pretende um regresso ao modo de vida que os seus pais e avós
viveram. É nesta perspectiva que nele entrevemos
a sua jornada desde menino de olhos
inocentes, atento e observador até ao homem feito, com seus problemas e suas
dúvidas, que não aceita a injustiça e
sonha um mundo melhor.
Deixemos
que ele próprio se nos apresente e, para isso, basta ler duas crónicas “O
Varredor de Lembranças” (sobre as malhadas e a limpa do grão na eira): “... bons tempos que eram, escreve o
solitário varredor com a tosca giesta; bem sabe que não eram bons tempos e que
a fartura não passava de uma suavizada fome, mas tem razão : era jovem ainda,
respirava a aldeia e estavam quase todos vivos.” ;
e
esta outra crónica extraordinária “Património da Humanidade: contributo para
uma noção que anda muito deturpada”, que termina assim: “é o nosso património, material e imaterial,
o que nos fez chegar até aqui e exprime o saber da nossa convivência com a
natureza, acumulado ao longo de séculos e alimentado a suor , sangue, carinho,
entreajuda e muita inteligência: seja qual for o futuro, estamos em perigo se
esquecermos uma lição simples: monumentos são as pessoas, o resto é obra. “.
Não
desespere o leitor: vou só deixar mais meia dúzia de palavras sobre Amadeu
Ferreira poeta, pois o poeta invade as suas crónicas. Para mim foi, é, um maravilhamento ler estas crónicas, na sua linguagem clara, que
nos traz ao ouvido o fino toque do cristal e ao coração o seu estilo forte e
arrebatador, com frases que nos atingem ora como afagos, ora como punhos,
deixando-nos, por vezes , sem fôlego.
Houve momentos em que pensei estar a ler Pe.
António Vieira. Por exemplo: “Deuses, o
convite da Montanha” : “...ao longe
as montanhas são deuses, solenes, altivas, inacessíveis, misteriosas, já mais céu do que terra; ...” ou em ”O
Escultor e a sua Obra: Auto-Retrato” (sobre a Mêda de Rocalva, enorme rocha
em que cada um pode descobrir estruturas antropomórficas) : “... coseu-lhe o
rosto desfigurado, deixando à mostra as costuras da linha do tempo e as
cicatrizes das tempestades: afagaram-na os ventos, lavaram-na as chuvas,
esculpiram-na os milénios e imperceptivelmente ela vai-se esvaindo em areia e
pó, débil na sua dureza, enganadora na sua grandeza...”.
Vejam aqui o
poeta por inteiro: “Ternura que em seio de pedra se alimenta” :
“sobe do rio a noite, trazida por um silêncio que acaricia a pele da
água, enquanto as arribas vão estendendo um lençol de sombra [...]
e segues em silêncio, nem sabes se esmagado por tanta beleza, que até as
palavras se fizeram pedra.”.
Para
terminar as citações, (o leitor terá o prazer de, já de seguida, ir ler todas
as crónicas do Amadeu Ferreira), não quero deixar de vos apresentar duas ou
três linhas de uma das mais belas e que espelha o lado sonhador do
poeta-cronista: “Livro de Horas”
–“desesperas sempre a ler o livro do rosto, ainda por decifrar essa escrita do
tempo com tinta de lágrimas e riso, iluminura de angústias e de afectos, sempre
aberto livro de horas onde o fogo dos sonhos não se apaga”.
Leiria,
08.11.2013
Júlia Guarda
Ribeiro
Luís Borges e Amadeu Ferreira: https://www.facebook.com/pages/Lu%C3%ADs-Borges-e-Amadeu-Ferreira/246368075500628?fref=ts
Fotografias e textos são de uma qualidade rara.Fiquei, também eu,deslumbrado.
ResponderEliminarLeitor
Teresa Martins Marques:
ResponderEliminarParabéns, Júlia Ribeiro, por este belo texto, que faz justiça ao trabalho de dois artistas notáveis.
Odete Coelho:
ResponderEliminarObrigada Júlia, Leonel e Teresa pela partilha. Tão bom revisitar estes farrapos e estar mais um pouco na companhia do Amadeu e do Luís Borges. É sempre um renovado prazer passar por aqui:)
Ana Diogo :Belíssimo este texto de Júlia Ribeiro sobre as crónicas de Amadeu Ferreira nos Farrapos de Memória - crónicas essas que tenho o prazer de seguir através de Lelo Demoncorvo. Muito obrigada a todos pelas excelentes partilhas
ResponderEliminarTeresa Martins Marques:
ResponderEliminarE parabéns ao Leonel, porque faz, com tantos sucesso, estes Farrapos de Memória. Diga-me lá quantas visitas é que estes "Farrapos "têm?
Guida Sales : A beleza das fotografias do Luis Borges, o encanto das crónicas do Amadeu Ferreira e este fantástico texto da Júlia Ribeiro também me deixaram deslumbrada. Nunca é tempo perdido uma visita a estes "Farrapos de Memória". Parabéns ao Lelo Demoncorvo.
ResponderEliminaros retratos de Luis Borges e as falas escritas de Amadeu Ferreira permitem-nos fixar os olhos, entrar nas palavras e voar.
ResponderEliminarO texto e a sua autora apanha l'aire que assopra, entra nas palavras e nos retratos leva-nos na boleia da poeira cósmica.
Pois, o amigo Leonel, abre a janela e os tiras de "farrapos" permitem que a luz entre e tudo mostre.
Bienhaiades todos
António Cangueiro
Deslumbram-me todas as estórias da Julinha,encantam-me textos como este.
ResponderEliminarParabéns a todos : Julinha,Poeta e Fotógrafo.
Uma moncorvense