Adriano. Chama-se
Adriano. Zulmira chegou a sabê-lo porque no dia do seu casamento recebeu um
envelope. Trazia um nome: Adriano Vilar. E dentro, um cheque. Zulmira nunca
mais iria esquecer o cheiro que se esquivou do interior do envelope quando lhe
rasgou um dos lados. Era um cheiro diferente de todos os cheiros que já
experimentara. Zulmira nunca vira um cheque antes. Nunca lhe sentira o cheiro.
Um cheiro a papel em decomposição a misturar-se com perguntas numa intriga
digna das novelas que por vezes gostava de ver na televisão. Não era bem que
acreditasse nos enredos retorcidos daquelas tramas ficcionadas com finais
felizes, porque ela sabia como ninguém que às vezes os bons morrem no fim das
estórias. Mas aquela brisa com travo a conto de encantar que lhe vinha do ecrã
fazia-lhe bem, e por momentos esquecia que sua vida era tão real.
Um arrepio
varreu-lhe a pele sob o vestido branco, um branco não tão branco assim, cheio
de claridades moribundas, como todos os brancos. Alargou atrapalhadamente o
rasgão do envelope, esventrando aquele outro branco - também ele não tão branco
assim - e três palavras caíram-lhe aos pés.
Zulmira colou os
olhos àquele pedaço de papel mal rasgado. Percebia de cicatrizes e viu-lhe mil
marcas. Percebeu a falta de cuidado na forma como a nota fora acomodada dentro
do invólucro. Percebeu as mãos rudes, os gestos brutos. Zulmira percebeu tanta
coisa. Tanta coisa que não cabia num nome, nem na soma simples de números com
um nome.
E o cheque tinha
mesmo muitos números a compor um número grande. Zulmira nem sabia ler um número
tão grande mas soube logo que aquele dinheiro daria para comprar tantas coisas.
Mas não seria suficiente para lhe devolver a mãe. A mãe que gastara os pulsos
no relento gelado da solidão, que esgotara os olhos sob o sol corrosivo de
jeiras sucessivas.
Era um número
mesmo muito grande. Mas Zulmira sabia mais, muito mais. Sabia que há coisas que
não cabem num nome, nem na soma simples de números com um nome e três palavras.
Rasgou o cheque,
o nome e as três palavras. Rasgou tudo enquanto misturava as suas lágrimas com
a memória do choro amarrotado da mãe sob a mordaça do silêncio das noites. A
memória do ruído que fazia ao correr, para desaguar nas manhãs sempre iguais.
O tempo passou e
Zulmira nunca falaria desse nome aos filhos. Pensou que, depois de rasgado,
esse nome não voltaria às suas vidas.
E por isso é tão
difícil para a filha mais velha de Zulmira perceber este momento, em que um envelope
com um cheque, um nome e três palavras lhe paira nas mãos e tudo o resto lhe
chega aos lábios:
Do vosso avô.
Adriano Vilar.
VER:
http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2012/08/zulmira-morreu-cronicas-da.html
VER:
http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2012/08/zulmira-morreu-cronicas-da.html
Escreve tão bem esta senhora.Correndo os blogs nos favoritos dos farrapos encontrei um dela; o lugar dos sentidos.Maravilha.Abençoada internet que nos dá a conhecer o melhor que nós temos.
ResponderEliminarLeitor
Subscrevo as palavras de Leitor. A Virgínia tem uma escrita límpida, vibrante, por vezes até arrepia ! Além de grande escritora , é jornalista e livreira !! Como se tudo isso não bastasse é uma mulher de acção e organizadora de eventos culturais de alta qualidade.
ResponderEliminarUm grande abraço, amiga.
Júlia
Júlia, um grande beijinho e até dia 29, na Poética!
ResponderEliminarGrata também pelas palvras deixadas por este "leitor".