Maria Fernanda Guimarães
Por ser terra de fronteira, muito distante, inóspita e situada numa região de fraca densidade populacional, Miranda do Douro recebeu dos nossos reis bastantes privilégios, tendo em vista o seu povoamento e capacidade de defesa. Um desses privilégios visava atrair judeus que ali fossem morar, isentando-os do pagamento da sisa judenga – um especial e pesado imposto que eles pagavam. (1)
Acresceu outro privilégio, concedido em 4.11.1404, que muito agradava aos mercadores judeus que era o de sobre “todas as coisas que dentro desta vila se comprarem e venderem e trocarem se não pague nenhuma sisa”. (2)
Natural, pois, que em Miranda do Douro, se tenha estabelecido uma interessante comunidade hebreia. Escrevendo sobre o assunto, Maria José Ferro Tavares informa que na terra “havia uma judiaria apartada”, que se localizava na Rua da Sapataria. Depreendemos que esta fosse a posteriormente designada Rua Nova.
Com a expulsão dos judeus de Espanha certamente que engrossou muito a comuna de Miranda “rebentando” os limites da “judiaria apartada” e iniciando ou fazendo crescer o movimento de urbanização de novos espaços no interior do largo recinto amuralhado por iniciativa do rei D. Dinis. Corresponderá esse movimento de expansão urbana à “reclassificação” da Rua da Costanilha, construindo-se casas que ainda hoje são belas, de altos e baixos, para morar e estabelecer “venda”. E essa reclassificação urbana da Costanilha terá sido feita essencialmente com os capitais da laboriosa gente da nação.
Facto é que, existindo mais de meia centena de processos instaurados pela Inquisição a marranos de Miranda do Douro nas primeiras décadas de seu funcionamento, em meados do século de Quinhentos, verificamos que as suas moradas são dispersas pela Rua Direita, Rua Nova, Rua do Sprital, da Misericórdia e… também da Costanilha. Aliás, era nesta que se situava a celebérrima oficina do sapateiro Diogo de Leão da Costanilha, transformada em sinagoga, à qual acorriam os marranos de Miranda para ouvir recitar as “coplas do sapateiro de Trancoso” interpretadas como profecias anunciadoras da vinda próxima do Messias, tão próxima que eles estavam convictos de participar no acontecimento.
No século seguinte já a Rua da Costanilha aparece como local de referência para se morar e estabelecer oficinas e casas comerciais. A este respeito temos um episódio muito significativo, acontecido por 1640 e que vamos contar.
A meio daquela rua, morava um casal de cristãos novos (Luís Lopes e Beatriz Henriques) em uma casa bem valorizada – 70 mil réis! – que confrontava com as de Pêro Henriques e Jerónimo Henriques, seus parentes. Em frente, do outro lado da rua, surgiu uma casa vaga. E preparando-se para a ela se mudar (por arrendamento ou compra, não sabemos) um tal Francisco Pires, o Trovisco, de alcunha, a Brites e o Luís ter-se-ão metido de permeio e impedido que tal viesse a acontecer. Resta dizer que o Trovisco era cristão velho, tal como a sua mulher Tomásia Falcoa. E este será um dos muitos casos de disputas que haveria entre membros de ambas as comunidades. E então, no meio das disputas, entre acesas discussões, ralhos e insultos, o Trovisco terá proferido a seguinte e peremptória afirmação:
- Para o ano hei-de morar em qualquer destas casas que me apetecer da Rua da Costanilha, que hei-de fazê-las despejar porque hão-de ser presas todas as pessoas da nação que nela moram, que todos são judeus.
Ou por descarregar sua consciência de cristão ou por cumprir sua ameaça, facto é que o Trovisco e a mulher encontraram forma de denunciar na Inquisição não apenas a Brites e o Luís, mas todos os marranos moradores na Rua da Costanilha.
E nisso foi acompanhado por raparigas e mulheres cristãs novas que eram ou foram criadas de servir nas casas daquela gente da nação e que, por uma ou outra razão haviam sido despedidas.
Entretanto, um outro acontecimento veio acender o rastilho da inveja e atear o fogo da denúncia e da intolerância religiosa e perseguição aos marranos da Rua da Costanilha. Caso igualmente originado por uma casa de morada sita a meio da dita rua. Não sabemos até se, porventura, se tratou da mesma casa.
De qualquer modo, o proprietário desta era um ourives da prata estabelecido em Bragança, chamado José Pimentel. E a casa estava arrendada a um casal de mercadores hebreus (Mateus Álvares e Engrácia Martins) que nela moravam e tinham sua tenda. Nada que se comparasse ao estabelecimento comercial de Ana Rodrigues e Francisco Henriques, instalado no outro lado da rua, no r/chão de sua casa de morada, talvez o melhor da vila naquele tempo, a avaliar pelo inventário que fizeram de seus bens, ao serem presos.
E chegando ao conhecimento de Ana e Francisco que o Pimentel se dispunha a vender aquela casa, logo estes entraram de fazer ofertas e assediar o vendedor. E se já antes as relações entre os dois casais fronteiros da Rua da Costanilha não eram muito cordiais, a partir de então, azedaram-se mesmo, convictos os inquilinos de que os novos proprietários os despejariam da casa.
E que melhor forma haveria de suster a compra e a ameaça implícita de despejo senão denunciá-los na Inquisição como judeus? O santo tribunal se encarregaria de os retirar da Rua da Costanilha e comer seus teres e haveres.
Porém, o seu testemunho, isolado, não teria grande credibilidade, já que também eles eram marranos e suspeitos, naturalmente. Para além disso, as desavenças entre eles eram públicas. Por isso, eles terão aliciado alguns cristãos velhos, instruindo-os depois, sobre as práticas judaicas feitas no interior das casas pelos marranos. E sendo por ocasião da vinda do Kipur, o dia grande, o mais importante do calendário judaico e que todos respeitam e guardam, ficando sem trabalhar, vestindo fatos novos e juntando-se para “rezar em sinagoga”, eles ensinaram os outros de modo a conseguir testemunhos credíveis e convincentes para meter na Inquisição o Francisco e a Ana. E com eles iriam os outros marranos todos da Costanilha, que a trovoada quando desce a montanha não escolhe os objectos que vai arrastar.
Fácil de aliciar e pô-lo de vigia aos judeus seria o Trovisco e a mulher, o casal de cristãos velhos que morava também a meio da Costanilha, como atrás se viu. E, ao cimo da mesma rua, em uma casa “que parte com a de Madalena Garcia, cristã nova e que ficava defronte da de Duarte Henriques, casado com Engrácia Álvares, cristãos novos”, morava um outro cristão velho, um tal João Pires, o Patudo de alcunha. Também ele foi facilmente aliciado.
E depois, o Patudo e o Trovisco e as suas mulheres arregimentaram outros beatos e beatas e até um padre (João Moreira) para todos ficarem alerta a espreitar o comportamento dos marranos da Rua da Costanilha, naquele dia de Setembro de 1641, na celebração do Kipur.
E assim foi conseguida quantidade de depoimentos que levaram dezenas de marranos da Costanilha às horríveis masmorras da Inquisição, numa das mais terríveis operações de limpeza étnica executadas em terras do Nordeste Trasmontano. E os efeitos desta operação, em termos económicos, sociais e culturais, terão sido bem mais arrasadores para a cidade de Miranda do Douro do que o rebentamento do seu quartel e tomada da cidade pelos Castelhanos, um século depois. Terminamos esta crónica com um extracto do depoimento então prestado pelo Patudo:
- Por Engrácia Martins e seu marido Mateus Álvares, cristãos novos lhe dizerem que tivesse cuidado e tento na gente da nação, reparou que no tal dia andavam vestidos de festa, que não trabalhavam e que Francisco Henriques e sua mulher tinham muito enfeitada a sua filha solteira maior, com as melhores jóias que tinham… (3)
NOTAS
1 – CHANCELARIA
DE D. AFONSO V, liv. 12, fl. 11vº.
2 – IDEM, Além
Douro, liv. 2, fl 38vº
3 – IANTT,
Inquisição de Coimbra, pº 4510, de Francisco Henriques.
Publicado no jornal Terra Quente de 1 de Agosto de 2012
Fotos da rua da Costanilha cedidas por Arnaldo Firmino
Gostei de ler este texto. Um abraço do António Pimenta de Castro
ResponderEliminarUm abraço ao António Júlio, de agradecimento por todo este excelente trabalho de investigação e divulgação.
ResponderEliminarAmadeu Ferreira
Amadeu. Devemos agradecer sobretudo à investigadora da cátedra de estudos sefarditas da universidade de Lisboa, Fernanda Guimarães. Um abraço. A. Júlio
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