terça-feira, 21 de agosto de 2012

Pequenas Memórias “ “Arreia, Zeca, que o teu pai é Guarda” ”(IX), por Júlia Barros Ribeiro

“Grande é a poesia, a bondade e as danças ... Mas o melhor do mundo são as crianças “
Fernando Pessoa

Nem sempre as estórias, mesmo de crianças, são todas alegres, agradáveis ou que dispõem ao riso. Por vezes, quando entre as crianças se interpõem adultos, a coisa descamba.

Dia de feira na Corredoura(1974)
A estorinha que vos vou contar passou-se na Corredoura no inverno de 1944. Não, não vos vou falar da guerra. Nesta estória, a guerrinha foi outra. Mas ainda não é aqui o começo. Primeiro quero dizer-vos que a Corredoura recebia sem engulhos quem vinha de fora, fossem caldeireiros, amoladores de tesouras, albardeiros, pedintes ou ciganos. Havia sempre o Cabanal onde se acoitassem e coabitávamos pacificamente. Alguns até por lá ficavam. Mas a Corredoura não recebia bem quem se mostrava vaidoso, gabarolas ou prepotente. E foi o que aconteceu com um Guarda Republicano, a mulher e um filho de uns 7 ou 8 anos. Aquela família achou-se superior à vizinhança e logo nos primeiros dias o Sr. Guarda multou o Tio Noventa, por causa do burrico, multou a tia Maria Panda por ter mal estacionada a carroça das giestas e estevas para o forno e multou toda a gente por causa dos porcos e das pitas que também andavam por ali em completa liberdade. Foi um alarido tal, que o tenente teve de vir ao Largo. Acabou com aquele desatino, anulando as multas todas. A guerra com o Sr. Guarda estava aberta.
O filho, o Zeca, batia nos raparigos todos. A mãe dizia-lhe do varandim “Arreia, Zeca, que o teu pai é Guarda” . (A expressão ficou bem viva na Corredoura e creio que ainda por lá se mantém).

Eu, com uns 6 anitos era um dez reis de gente. Apanhava do Zeca dia sim, dia sim. A minha avó, que já não andava e traziam-na ao colo para se sentar num banco ao soalheiro até a minha mãe vir do trabalho, ficava tão aflita, tão angustiada, que eu vinha a chorar sentar-me ao pé dela e prometia não ir brincar com os outros. Mas depois esquecia-me ou apanhava a minha avó a dormitar e lá ia eu para a brincadeira.
Uma tarde, o Zeca veio por trás de mim, puxou-me pelas tranças com tanta força que eu me estatelei de costas no chão. Ele ficou em pé, a dar-me pontapés nas costelas, a rir-se e a chamar-me “índia”. Tomei o nome a sério, agarrei o Zeca por um tornozelo e puxei com quanta força tinha. Não seria muita, mas ele, apanhado desprevenido, caiu de borco. Não lhe dei tempo para se levantar: num salto, sentei-me nas costas do Zequinha e, com uma pedra amiga que estava ali mesmo à mão de semear, fiz-lhe dois ou três grandes lanhos na cabeça. Não lhe fiz mais, porque a minha avó dizia: “Já tchega, já tchega”.
Aos gritos do Zequinha, a mãe espreita e vem de lá com um chicote na mão. Num instante a Corredoura ficou em pé de guerra : o Tio Caetano, a Tia Maria Trovões, a Tia Maria Fusa e outros vizinhos - que, enquanto eu batia, tinham estado caladinhos a apreciar a cena - acorreram de imediato e fizeram barreira. “Que queres daqui, sua piolhosa? Fora, a Corredoura não quer gente da vossa laia”. Só então largueia presa. A escorrer sangue, o Zequinha fugiu para a mãe. Desta vez ela não disse – talvez nunca mais dissesse – “Arreia, Zeca, que o teu pai é Guarda”.

Dois dias depois o Sr. Guarda, pai do Zeca e a Fúria, mãe do Zeca, mais o Zeca sumiram da Corredoura.

Leiria , 26 de Agosto de 2011
Júlia Ribeiro

VER: http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2012/08/contos-temperados-de-julia-guarda.html



19 comentários:

  1. Aminha avó dizia muito essa frase mas agora é que eu percebo donde essas palavras vem.
    Julinha os seus contos estão tão bem contados. Faça com eles um livrinho pra gente ler as estorias quando quisermos.
    F.Gata

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  2. Era de chicote que o guarda arreiava na mulher e no filho e não lhe deixava dar um pio. As Trovões eram vezinhas.
    Mas olhe que eu gabo a memória que a nossa escritora querdoirense tem.

    Tó( da Barbatona , escreveu o neto)

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  3. Esta é o MÁXIMO!Estou a imaginar a cena e a rir-me como uma tolinha.Saber que a protagonista é a autora,conhecendo-a como uma pessoa pacífica e contemporizadora,esta faceta de "pugilista" na infância surpreende-me e encanta-me.
    Gente boa a da Corredoura,que soube defender a sua menina e expulsar os prepotentes.

    Uma moncorvense

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  4. A violência jera a violência O Guarda batia na mulher e no filho . Se calhar de chicote. O filho batia nos outros raparigos e a mulher dizia "Arreia, Zeca" . A avó da autora dizia "já tchega, já tchega". A diferença está aqui. Gostei de mais esta estória, que dá que pensar.

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  5. Dá que pensar. Dava até para um bom debate sobre violência doméstica.
    Esperamos mais estórias. Obrigada.

    Uma leitora de todos os dias.

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  6. É uma perversidade a imagem do cartolinha,como é possivel a igreja autorizar isto.Quem deu esta farda e quem autorizou a vesti-la devia levar umas arrtchadas.Arreia malta, que eles não sabem o que fazem.Tenho que ler estes textos na Corredoura.
    Leitor

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  7. No melhor pano cai a nódoa e é uma verdade. Num conto tão bem escrito sobre aquele guarda republicano que era uma nódoa, a autora colocou a imagem do Menino Jesus. Fiquei muito triste, porque não fazia a Julinha capaz de uma tolice destas. Sou muito sua amiga e gosto de tudo quanto escreve, mas desculpe dizer que desta não gostei mesmo nada.
    Quando vier a Moncorvo, digo-lhe quem sou. Por agora fica como anónima.

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  8. As fotografias ,desenhos e composição dos textos são da responsabilidade do editor do blogue. Júlia Barros Ribeiro e todos os outros autores dos textos não têm qualquer responsabilidade na edição
    “Publicado por Lelo Brito”vem sempre no canto inferior esquerdo do post.
    O meu nome é Leonel Brito, nascido em Moncorvo no ano de 1941;cartão de cidadão: nº03368634 -3ZZO

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  9. Ver texto de Filomena Fontes no jornal "Público" de segunda-feira, 04 de Julho de 2011:
    "Ninguém vai dar conta de que acabaram os governos civis" Presidente da ANMP admite que competências podem ser distribuídas pelas áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais Um dos últimos actos oficiais do governador civil de Bragança, ao fim de seis anos de mandato, foi a entrega de duas novas fardas ao Menino Jesus da Cartolinha, em Miranda do Douro. A imagem do santo, um dos ícones de devoção religiosa que data do século XVIII, é, também, cartaz turístico da Sé Catedral de Miranda do Douro, onde existe um vasto guarda-roupa que vai sendo acrescentado com o escrúpulo de quem não despreza tradições. Desta vez, foi Rui Pereira, o ex-ministro da Administração Interna quem assumiu a promessa de oferecer ao santo uma farda da PSP e outra da GNR, aquando da sua última visita ao concelho. Jorge Nunes, o governador civil, cumpriu-a antes de deixar funções. O acontecimento teve honra de notícia no site oficial do Governo Civil de Bragança, com a imagem do santo já devidamente fardado de guarda republicano. Insólita, a notícia comporta o risco de remeter para o domínio da caricatura as actividades que ocupavam os governadores civis, que o Governo de maioria PSD/CDS-PP exonerou já".

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  10. Na página electrónica do Governo Civil de Bragança ainda é possível confirmar o acto oficial:
    "O Governador Civil de Bragança entregou esta terça feira, dia 21 [de Junho], duas novas fardas ao menino Jesus da Cartolinha em Miranda do Douro. Jorge Gomes entregou uma farda da PSP e outra da GNR à imagem que remonta ao século XVIII cumprindo, assim, uma promessa do ex ministro da Administração Interna, Rui Pereira que se comprometeu a doar aquelas fardas aquando da sua ultima visita a Miranda do Douro. “É um acto simbólico porque o ministro é nascido em Duas Igrejas e como é conhecedor das tradições de Miranda do Douro decidiu oferecer duas fardas ao Menino Jesus da Cartolinha: uma da Guarda Nacional Republicana e outra da Policia de Segurança Pública” referiu o governador acrescentando que se trata “ de um gesto que visa reconhecer a capacidade e qualidade de trabalhos na área da segurança que estas duas forças policiais têm prestado aos cidadãos”. No acto simbólico da entrega das fardas estiveram também presentes os comandantes distritais desta duas forças de segurança que agradeceram o gesto de reconhecimento. “Temos muito gosto em ver o nosso uniforme associado a um ícone tão forte de Miranda do Douro como é o Menino Jesus da Cartolinha” referiu o Tenente-coronel da GNR Sá Pires. “A partir de agora teremos no Menino Jesus da Cartolinha um protector dos polícias para nos ajudar a prestar um serviço de melhor qualidade e mais eficiente” frisou o comandante da PSP Amândio Correia. Além de reforçarem o guarda-fatos do Menino Jesus da Cartolinha, as duas novas fardas serão a partir de agora, mais um motivo de atracção da Sé Catedral de Miranda do Douro".

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  11. Assim que se demitiu, o ex-governador civil de Bragança decidiu "passar três semanas sem fazer nada". Meteu-se num avião e foi passar 18 dias à Índia e ao Nepal.
    http://www.ionline.pt/conteudo/148082-tres-meses-depois-do-fim-o-que-e-feito-si-senhor-governador-civil
    GOOGLEMAN

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  12. O Rui Reininho ,que segundo uns, parece que a avó era de Carviçais,canta "Eu sou um GNR".GNR na linguagem roqueira é:Grupo Novo Rock.
    As voltas que estes textos nos fazem dar e, quem anda por gosto não cansa.Mais uma volta ,Já!
    venha outro conto

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  13. Ora, ficámos todos a saber que quem deu as fatiotas de guardas da GNR e da PSP ao Menino Jesus foram governantes !!! Por esta não esperava eu. Também ficámos a saber das férias do Sr. Governador Civil de Bragança. E que GNR em linguagem roqueira é Grupo Novo Roque. Imaginai só o que eu vou aprendendo. É verdade : as voltas que um texto nos faz dar.
    Já lhe fiz a vontade, caro Anónimo, já seguiu outra estorinha. Que estes textos, aqui para nós, nem chegam a ser contos ...

    Abraços para todos e um bem haja para o Lelo.
    Júlia

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  14. Olá, Bom dia!
    Enviei um comentário,não sei se o dedo foi mais ligeiro que a intenção, não saiu publicado
    Dizia mais ou menos o seguinte: " Júlia, amo tudo o que escreves, porque parece que tem cor, perfume e endereço. Esse endereço é o coração! Me transporta a um passado que não vivi, mas, que muito ouvi comentado. Gostei dessa sua história de Davi e Golias. Fez-se a justiça!"
    Saudades de Moncorvo e dos moncorvenses!
    Abraço
    São Paulo, 11 de setembro de 2011
    Wanda Wenceslau Afecto

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  15. Noites largas e quentes pedem rua ,amigos e copos. Bagueiro e taineiro perdi-me. Levei ,a pedido da recém-criada comissão de apoio aos barragistas, uma eng.ª aos gambozinos. Regresso. Li ,reli e fui ter com o meu tio, que só fala dos peixes do Lino e do coelho da Urbana e ,disse-lhe; Já leu o último conto da Júlia?
    -és um pamonha! sabes que sei tanto disso como de lagares de azeite. Contei-lhe a história. Ele disse que lhe disseram ,que quando estava na tropa em lanceiros 2 e não tinha bago para vir às festas, do estardalhaço que se fez no castelo.
    Cascatas nos Remédios ,vasos na praça e baile no castelo.O baile era organizado pelos bombeiros para angariarem cacau para uma mangueira nova. A música estava a cargo do Norberto Moreira. Poeira, calor, tinto e belas raparigas .O Gil com a desculpa que era coxo , não podia com os passe dobles, pediu LA COMPARCITA. Ninguém sabe como tudo começou, de repente o Barriel e o Pando pegaram-se à porrada .A malta a ver , do meio da multidão surge um policia ( o posto tinha sido inaugurado no outro ano), disposto a fazer cumprir a lei .Alfacinha, com desdém pelas berças ,começou a explicar a lei com o cassetete. Todos à uma se viraram contra o cívico, que saiu desta história muito mal parado. Disse o Tó ,mais tarde ao meu tio ,contando-lhe o sucedido, -quem encomendou o sermão ao gajo? ...um cão de fora, a querer meter-se onde não era chamado.Levou umas arrotchadas para aprender. É bem feito. Remédio santo.O chui pediu a transferência alegando que não se dava com o calor da Vilariça Esta é a história que conto que o meu tio me contou.
    Noitibó

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  16. Olá, Wanda!

    Bons olhos te vejam , com saúde e boa disposição. Já tenho pensado muitas vezes no que seria feito da Wanda, que tinha desaparecido ! Tinha sumido mesmo. Mas que reapareceu agora, agorinha aqui. Que alegria!! Vem muitas vezes, porque és muito bem vinda.

    Um abraço muito grande
    Júlia.

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  17. Olá, Noitibó, grande contador de estórias. E que belas estórias.
    Alguém disse, e com razão, que as estórias e as memórias são como as cerejas : vêm sempre umas atrás das outras.

    Um abraço
    Júlia

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  18. Joaquim Silva escreveu: gostei desta estorinha !.. ´é o meu regresso ás origens : a minha corredoura, na minha aldeia , era na rua do caminho do rio ( rio sabor ) ,, embora conhecesse muito bem esta corredoura da estorinha , uns anitos depois

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  19. Jose Carlos escreveu:tb gostei...obrigado por partilhar ...

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