sábado, 31 de março de 2012

Zulmira morreu -Crónicas da sobrevivência e da morte V,por Virgínia do Carmo


 Os olhos de José

 Talvez um dia o pequeno José venha a descobrir a temperatura precisa de cada cor e possa assim pressentir com a ponta dos dedos os contornos das coisas para além dos declives e saliências das formas. Zulmira nunca se cansava de dizer-lhe como eram belos os seus dedos. Transparentes a todas as verdades. Permeáveis à honestidade do seu rosto. Muito mais puros que os outros olhos. Os que todos temos. Zulmira encontrava em José a paz de chorar e sorrir com uma sinceridade que não se mostra aos olhos de ninguém. Mas que somos capazes de contar aos dedos do nosso pequeno filho. Com a voz despida de ciscos. Com os lábios abertos às lágrimas.
Zulmira sabia que talvez os nove anos de José não fossem divisíveis em dias, mas em plúmbeas e arrastadas sequências temporais múltiplas desses dias. Dos dias dos outros. Uma medida a que ainda ninguém conseguiu dar nome. A compreensão de tudo era para si um esforço para além do que devia exigir-se a um menino de nove anos. Por isso Zulmira sabia que os nove anos de José talvez não fossem, afinal, nove anos, mas nove vezes o tempo em que se propagava o seu esforço. Isso descansava um pouco Zulmira, que olhava para o seu filho e imaginava um verdadeiro homenzinho. Capaz de ver o que os seus outros filhos nunca haveriam de ver. Mas os seus pés ainda não caminhavam sozinhos. E havia passos que à data da morte de Zulmira o pequeno José não sabia dar por si. Também o pequeno José procurava e precisava da mão da sua mãe. Para fazer melhor tudo o que já fazia. Para aprender o que não aprendera ainda. Para descobrir todos os obstáculos por vir. Para ir à rua e memorizar todos os caminhos possíveis.
Desde a morte de Zulmira José não voltou à escola por muito tempo. José esperava que um dia alguém se lembrasse que tinha dedos. E que com eles poderia guardar no pensamento o mundo e todas as coisas que existem. Como a sua mãe lhe ensinara. “Meu pequeno José, os teus dedos são um milagre de Deus!”, dizia-lhe.
E por isso José, que é cego, que não conhece as cores, mas que conhecia a temperatura precisa da mão da sua mãe, sabe que tem dedos. E na ponta dos seus dedos é tão maior e mais depurada a saudade do rosto de Zulmira.
E talvez um dia o pequeno José venha a descobrir como colorir o chão monocromático da ausência doída da sua mãe. Mas há uma cor irrepetível. Que se foi para sempre.
Virgínia do Carmo

2 comentários:

  1. Bom dia, Virginia:
    Vou repetir-me, mas não posso deixar de lhe dar os parabéns por textos de tanta beleza e profundidade.

    O abraço muito grande

    Júlia

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  2. Muito obrigada, Júlia!

    Desejo-lhe uma Páscoa muito feliz:)

    Beijinhos

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