Os olhos de José
Talvez um dia o pequeno José venha a descobrir a temperatura
precisa de cada cor e possa assim pressentir com a ponta dos dedos os contornos
das coisas para além dos declives e saliências das formas. Zulmira nunca se
cansava de dizer-lhe como eram belos os seus dedos. Transparentes a todas as
verdades. Permeáveis à honestidade do seu rosto. Muito mais puros que os outros
olhos. Os que todos temos. Zulmira encontrava em José a paz de chorar e sorrir
com uma sinceridade que não se mostra aos olhos de ninguém. Mas que somos
capazes de contar aos dedos do nosso pequeno filho. Com a voz despida de
ciscos. Com os lábios abertos às lágrimas.
Zulmira sabia que talvez os nove anos de José não fossem
divisíveis em dias, mas em plúmbeas e arrastadas sequências temporais múltiplas
desses dias. Dos dias dos outros. Uma medida a que ainda ninguém conseguiu dar
nome. A compreensão de tudo era para si um esforço para além do que devia
exigir-se a um menino de nove anos. Por isso Zulmira sabia que os nove anos de
José talvez não fossem, afinal, nove anos, mas nove vezes o tempo em que se
propagava o seu esforço. Isso descansava um pouco Zulmira, que olhava para o
seu filho e imaginava um verdadeiro homenzinho. Capaz de ver o que os seus
outros filhos nunca haveriam de ver. Mas os seus pés ainda não caminhavam
sozinhos. E havia passos que à data da morte de Zulmira o pequeno José não
sabia dar por si. Também o pequeno José procurava e precisava da mão da sua
mãe. Para fazer melhor tudo o que já fazia. Para aprender o que não aprendera
ainda. Para descobrir todos os obstáculos por vir. Para ir à rua e memorizar
todos os caminhos possíveis.
Desde a morte de Zulmira José não voltou à escola por muito
tempo. José esperava que um dia alguém se lembrasse que tinha dedos. E que com
eles poderia guardar no pensamento o mundo e todas as coisas que existem. Como
a sua mãe lhe ensinara. “Meu pequeno José, os teus dedos são um milagre de
Deus!”, dizia-lhe.
E por isso José, que é cego, que não conhece as cores, mas
que conhecia a temperatura precisa da mão da sua mãe, sabe que tem dedos. E na
ponta dos seus dedos é tão maior e mais depurada a saudade do rosto de Zulmira.
E talvez um dia o pequeno José venha a descobrir como
colorir o chão monocromático da ausência doída da sua mãe. Mas há uma cor
irrepetível. Que se foi para sempre.
Virgínia do Carmo
Bom dia, Virginia:
ResponderEliminarVou repetir-me, mas não posso deixar de lhe dar os parabéns por textos de tanta beleza e profundidade.
O abraço muito grande
Júlia
Muito obrigada, Júlia!
ResponderEliminarDesejo-lhe uma Páscoa muito feliz:)
Beijinhos