sexta-feira, 23 de março de 2012

MÓS - ANTIGA VILA MEDIEVAL (2009)


 

10 comentários:

  1. Contaram-me,um dia, uma estória hilariante sobre a justiça de Mós.Não a sei reproduzir, mas alguém que saiba, que a conte.Vale a pena.

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  2. A JUSTIÇA DE MÓS
    Conto popular
    I
    O concelho de Mós fora extinto. A câmara municipal de Torre de Moncorvo não perdeu tempo a transformar em sonante metal as coisas públicas do extinto município. Vendeu logo as casas do aljube e da roda, o terreiro da barreira, assentos na barbacã do castelo e os cobiçados baldios. Até o foral, datado de 1192, desapareceu, este vendido a um bacharel de direito pelo último escrivão da câmara.
    Naturalmente que todas estas coisas caíram nas mãos de amigalhaços que, já antes eram os mais ricos e poderosos lá do sítio. O processo de leilão em nada foi transparente e todos afirmam ter visto perus e cabritos correr para casa do administrador.
    Os moradores pobres, que apenas tinham os extensos baldios para apascentar seus gados e as matas concelhias para fazer o carvão com que alimentavam os comunitários fornos do babrico de cal e ferro, além das lareiras das próprias casas, ficaram numa situação aflitiva, mais dependentes ainda da bizarria dos ricos.

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  3. II
    A maior humilhação viria, no entanto, da escolha do novo alcaide. Eles estavam habituados a que o alcaide, proposto embora pelo conde de Sampaio, fosse um homem da terra, bom e direito, zeloso do interesse público, escrupuloso no cumprimento das leis. Aliás, entendiam que o bem público não era inimigo do bem individual, mas antes a maior soma possível dos bens e interesses particulares.
    Agora, a câmara de Moncorvo, por indicação dos homens ricos de Mós, nomeou, para servir de alcaide menor, um latagão que estava preso nas cadeias da comarca por ter morto um almocreve que vinha das Beiras para a feira de Moncorvo. Era um brutamontes, ignorante, com a força de um boi, malvado, escarninho e rancoroso.
    Os ricos de Mós ficaram radiantes e foram mesmo esperar o novo alcaide com tambores e foguetório. Era o homem de mão, o carrasco dos pobres que reclamavam que reclamavam trabalho. E não tardou em fazer prova de suas qualidades: a um garoto que apanhou a colher um figo em propriedade alheia, cortou-lhe logo a mão com a roçadora!

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  4. III
    O povo ficou enfurecido. Não tanto por o alcaide ter cortado a mão do garoto, mas principalmente por ter feito justiça por mãos próprias, em vez de o levar à presença do juiz. Aliás, ele fora ali colocado para gozar com as leis comunais, para amansar os pobres e vigiar os ricos.
    O juiz era um homem velho e bom, remediado no que respeita a fazendas. Fora eleito pela unanimidade dos votos das pessoas de Mós, havia uns 30 anos. E sempre fora respeitado por todos, incluindo os mais ricos. Estes ficaram despeitados quando, por sentença em julgado, o juiz mandou que à mulher de um vereador metessem na cara o frei das maldizentes, por ter difamado uma rapariga solteira que namorava um belo moço, mordomo da fogueira naquele ano distante.
    Na audiência, em praça pública, perante todo o povo, ficou bem demonstrado que a rapariga e pastora, muito honesta e bonita, rasgara a camisa do vereador antes de se pôr em fuga, gritando, porque ele a queria desonrar. Os ciúmes da mulher, uma beata que muito irritava o abade, fizeram-na inventar uma outra história que espalhou aos quatro ventos: a rapariga é que perseguia o seu marido e andava a meter-se debaixo dele, a malvada!

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  5. IV
    A fonte do Gogo dista uns 3 quilómetros da aldeia. No decurso do ano ela deita pouca água. Mas, em noite e S. João, à meia-noite em ponto, entra de jorrar em abundância. O povo de Mós sempre considerou isto um milagre e sempre usou ir àquela fonte na noite de S. João curar-se das suas maleitas. E sempre a sineta colocada no campanário da casa da câmara tocava durante a noite milagrosa.
    Agora, porém, o novo alcaide, obedecendo ás ordens da câmara de Moncorvo e às orientações dos graúdos de Mós, proibira que tocassem a sineta anunciando os milagres. Era a primeira vez que tal coisa acontecia. Ninguém nunca imaginou tal sacrilégio!
    A ordem era conhecida de todos, pois fora proclamada pelo abade na missa de domingo e pelo porteiro da extinta câmara durante toda a semana, além do edital afixado no pelourinho.
    Ninguém se atreveria, certamente, a tocar a sineta. Uma tal atitude significaria um passeio seguro até à Forca. E nenhum pobre diabo, por mais crente e corajoso que fosse, arriscaria semelhante propósito. O alcaide estava certo disso e os amigalhaços saudavam-no com entusiasmo. Até que enfim, alguém esmagava a cabeça dessa víbora terrível que é a massa popular revoltada com as injustiças!
    - Agora sim, vão morder a terra! – dizia, impante, o alcaide, engolindo mais um copo de vinho.

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  6. V
    A imaginária popular, ao serviço da autonomia municipal e do bem comum, inventa, porém, soluções incríveis:
    Foi assim que, à noitinha, alguém não identificado, subiu ao campanário da casa do concelho e prendeu do badalo do sino, um comprido ramo de videira com folhas que descia até à rua. E, à porta da casa do concelho, foi preso um jumento bem velho e cheio de fome.
    Naturalmente que o burro começou a comer as folhas do ramo da videira. O ramo assim puxado fazia a sineta tocar. Uma badalada… depois outra… Era um toque desusado, assim lamuriante e, por isso mesmo, mais irreverente!
    O alcaide acordou sobressaltado e, furioso, acorreu ao local. Deparou com o burro a roer a vide e tocar a sineta e mais furioso ficou. Se fosse gente, matava-o logo. Assim… os ricos mandões que igualmente acorreram desabridos… tiveram uma ideia luminosa:
    - Vamos antes enxovalhar o pobre juiz! Esta vai ser muito boa! Há-de julgar um burro!

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  7. VI
    Era manhã cedo. Muito povo, discretamente acompanhado pelo abade, regressava lá da fonte do Gogo. Alguns diziam-se curados. Outros testemunhavam visões de milagres ou catástrofes.
    Ao ver o juiz, na praça, sentado na base do pelourinho, em acto de julgamento, o povo estancou.
    Impante, o alcaide segurava, pela rédea, o burro transgressor. Os ricos estavam todos lá, cochichando:
    - Agora vamos ver como o Velho descalça a bota! Que sentença lançará sobre o desgraçado do burro?!
    O animal mantinha-se imóvel, de orelhas caídas. Os pobres… apanhados de todo… receavam tempestade.
    O juiz, compenetrado dos seus deveres, após ouvir a acusação desabrida do alcaide e o testemunho inequívoco dos ricos que todos viram o burro tocar a sineta, a voz pesada um pouco alevantando, sentenciou:
    - Que o burro morra! Que rebente! E para rebentar, metam-lhe uma cana no cu! E, um de cada vez, todos os moradores desta terra vão assoprar na outra ponta da cana! Ele cometeu um crime contra a comunidade!
    O alcaide lançou um riso escarninho. Os homens ricos, surpresos da sentença, ficaram meio intrigados. Mas logo se acalmaram. É que, respeitosos da Justiça, os pobres começaram logo a conduzir o burro pelo caminho da Forca, soprando á cana, um de cada vez, metendo ar pelo cu para a barriga do burro. Tinha de rebentar! Tinha de cumprir-se a sentença do juiz!
    VII

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  8. VII
    Parecia uma procissão. O burro à frente, o povo em fila, revezando-se todos a soprar pela cana. E, no fim, sorridentes e enfáticos, os ricos abraçavam o alcaide. Seguiram pelo caminho da Forca Velha, além dos Lagarinhos…
    Já tinham soprado pela cana, metendo ar na barriga do burro, todos os populares. Mas… não havia jeito de o animal rebentar!
    - Escândalo! – berravam os ricos – afinal o juiz é um idiota! A sentença foi mal dada!
    A procissão voltou à praça. O juiz conservava-se imóvel, sentado na base do pelourinho. O alcaide vinha à frente, segurando o burro pela rédea, a cana pendurada do ânus do animal, os ricos gracejando, o povo simples humilhado por não conseguir cumprir a sentença do juiz e temendo que o alcaide se vingasse neles.
    Malvado, escarninho e rancoroso, o alcaide atirou:
    - Senhor juiz, a sentença muito sábia que haveis dado não resultou! Entrego-vos, de novo, o burro para que o julgueis melhor!

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  9. VIII
    Na praça o silêncio pesava chumbo, a ansiedade era enorme. Imperturbável, o juiz tais palavras tirou do experto peito:
    - Levem de novo o burro a caminho da Forca! E que sejam agora os ricos a soprar. Eles têm mais fôlego na barriga. O burro há-de rebentar! Isso é que há-de!
    As palavras do juiz eram certas, pelo menos para o alcaide. Porém, os ricos apelaram, com justiça:
    - Como havemos nós de ser obrigados a meter os nossos lábios na mesma cana por onde os pobres sopraram?
    O juiz concordou:
    - Têm muita razão. Verdade que não podem meter a boca na mesma gamela dos pobres. Virem, por isso, a cana ao contrário e assoprem pela outra ponta. O burro rebentará, tenho a certeza!

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  10. IX
    Saiu novamente a procissão. O burro à frente. O alcaide, majestático, de chicote em punho, fazia os ricos revezarem-se a soprar ao cu do animal. E lá seguiram pelo caminho da Forca Velha.
    Na praça ficou o juiz e o povo contando os milagres que Deus operara na fonte do Gogo naquela noite de S. João e rezando pelas almas dos defuntos.
    Chegaram ao monte da Forca quando o desgraçado burro se deixou zourar todo. Uma esgrichada valente de porcaria apanhou, mesmo na cara, o antigo vereador que então soprava com toda a força.
    O burro caiu e ali morreu, com tanto pontapé que tinha levado na barriga.
    CRUMPRIA-SE A SÁBIA SENTANÇA DO JUÍZ DE MÓS!
    NOTA
    Esta lenda foi-me contada pelo velho Cuco, que a ouvira a seu avô. Naturalmente que eu a reescrevi, retirando-a da idade dos mitos e fixando-a na época da extinção do medievo concelho das Molas.
    António Júlio Andarde

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