sexta-feira, 9 de março de 2012

Zulmira morreu -Crónicas da sobrevivência e da morte III


Da infância de Zulmira

 Zulmira crescera numa pequena aldeia sob o estigma da bastardia. Zulmira, a zorra, chamavam-lhe na aldeia. Num aproveitamento básico da aliteração ironicamente acidental. Não lho chamavam directamente. Como se, poupando-lhe os ouvidos das palavras, lhe suprimissem o respectivo eco no peito. Mas era assim que falavam dela.
A mãe era uma boa mulher. Calhara ter acreditado que os frémitos do corpo tinham sempre raízes na alma. Nos sentimentos puros e castos que nascem muito antes da pele. E assim se entregou à desonra, inocente e apaixonada.
O desencanto que lhe tomou os restantes dias da existência depois da dolorosa lição com que a vida lhe tirou a inocência foi tal, que a mãe de Zulmira nunca mais quis saber de homem nenhum. E muitos foram os que, por via da sua condição de desonrada, tentaram a sua sorte. Mas nenhum deles chegou a experimentar o deleite das suas formas de mulher.
Zulmira admirava a mãe. Levantava-se cedo para ir à jeira. Trabalhava de sol a sol. E trabalhava quando não havia sol e o gelo lhe tomava os pulsos, torturando-lhe os gestos. Trabalhava como poucas mulheres, para criar a pequena Zulmira.
Zulmira sofria com o afastamento dos avós, que renegaram a filha desonrada e a neta ilegítima. Mas nada dizia à mãe para não aumentar o fluxo de lágrimas que todas as noites ela entregava ao cansaço na quietude do travesseiro. Zulmira bem ouvia o seu choro amarrotado sob a mordaça do silêncio. O ruído que fazia ao correr, para desaguar nas manhãs sempre iguais.
Acordava Zulmira com uma carícia na testa. Todos os dias. E todos os dias lhe dizia Deus te abençoe, minha filha.
Quando Zulmira entrou para a escola, a mãe temeu pela segurança emocional da filha. As outras crianças haviam de constantemente lembrar a pequena, com requintes de malvadez, da sua condição de zorra. Todos os dias. Apoquentada, resolveu antecipar-se e foi à escola, falar com a professora. Contou-lhe a história da sua vida. Comovida, pediu-lhe que não castigasse a filha pelos erros da mãe. Que a tratasse como às outras meninas. Que não deixasse as outras crianças humilharem a sua menina.
A professora disse-lhe que sim. Mas no dia seguinte decidiu, sem querer, que Zulmira seria a sua pior aluna. Porque nenhuma menina sem pai poderia ter aproveitamento escolar. E colocou-a na última fila da sala. Sem querer. Seguindo, inconsciente, os trilhos fáceis deixados pelos estigmas sociais da época.
Zulmira percebeu. Mas não quis apoquentar mais a mãe. Nem mesmo quando as outras meninas começaram a gozá-la no recreio, por ter um pai que não era pai dela. A mãe nunca lhe explicara claramente o que acontecera para que nunca tivesse conhecido o seu pai. Mas Zulmira sabia que enquanto tivesse aquela mãe nenhum pai lhe faria falta. Era tácita mas sólida a cumplicidade que as unia. Numa teia apertada de emoções pela qual se excluíam do mundo.
Por isso, quando a mãe lhe faltou, aos 21 anos de idade, Zulmira perdeu-se nas malhas dos afectos fáceis. Tropeçou tragicamente no pai dos seus três filhos e na queda perdeu o andar. E assim se tornaria dependente. Para sempre.
Virgínia do Carmo
Ver:http://lelodemoncorvo.blogspot.com/search?q=virginia+do+carmo

http://lelodemoncorvo.blogspot.com/2012/03/macedo-de-cavaleiros-convite.html

7 comentários:

  1. Lamentávelmente, ainda hoje em nossas aldeias tem esse tipo de preconceito estúpido. A exclusão de pessoas que poderiam dar muito de si e não lhes foi dada oportunidade.
    Certa vez, uma mulher pecadora estava para ser apedrijado.Jesus aproximou-se e prguntou o que estava acontecendo. depois que disseram o ue se passava, Jesus disse a multidão:... Quem não tiver pecados atire a primeira pedra.

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  2. Há muitas pessoas que "atiram pedras"na direcção errada.Deveriam ser elas o alvo,mas nem todas são capazes de reconhecer os próprios erros.

    Só tenho duas palavras para comentar este texto :que maravilha!
    Parabéns,Virgínia!

    Uma moncorvense

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  3. Fascinada a nordeste.Surpreendente e bela a escrita de Virginia do Carmo.
    Judite

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  4. Viva, Virgínia:

    Aí até metade da sua crónica, vi a minha infância retratada em detalhe e com nitidez. Depois ... bom, depois há um pormenor que fez toda a diferença.
    Um dia, talvez também me decida por uma longa crónica.
    Mas agora o mais importante - a sua escrita: deixa-me encantada, no sentido total da palavra.

    Abraço
    Júlia

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  5. Olá Vírginia!

    Que Deus abencoe que tão bem escreve!
    Com admiração e grata pela sua escrita que me deixa fascinada.
    Irene

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  6. Olá Vírginia!

    Que Deus abençoe quem tão bem escreve!
    Com admiração e grata pela sua escrita que me deixa fascinada
    Irene

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  7. Viva! Obrigada por terem lido e reflectido comigo sobre esta triste tendência dos seres humanos para o preconceito fácil. :) E por partilharem comigo o afecto por esta mulher que não sendo real, existe em tantas outras. Um abraço para todos.

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