- Então, já a trabalhar? - preguntou o Caramês, no intuito de
fazer derivar a conversa para outro rumo.
- Que remédio! Tenho de dar pronta p'ra a semana uma
encomenda de nove arrobas, p'ra
a romaria da Senhora da
Esperança. - Só de amêndoa coberta?
- Olarila! E houvesse êle tempo p'ra mais!
Achava-se sentada em sólida
cadeira de faia, diante de uma grande talha de barro vidrado que quási obstruía
tôda a largura da porta, e dentro da qual ardia
um fogo de brasas. Sôbre o rebordo, já estalado aqui e ali pelo
calor, assentava uma larga bacia de cobre onde as mãos expeditas da vélha, mangas arregaçadas até ao eotovêlo, remexiam sem
cessar os grãos oblongos, de um tom castanho claro, que já a sedimentação do açúcar ia
escondendo e forrando. De cinco em cinco minutos, tomava na mão direita uma colhér de pau, introduzia-a
na tigela de louça branca que tinha cêrca, retirava-a cheia de um líquido
viscoso e ambarino que era açúcar em ponto, regava com parcimónia as amêndoas,
- e outra vez os seus dedos nodos os, que pareciam cobertos de neve, se
enterravam naquele aglomerado de concreções alvacentas, - agitando-as,
trazendo ao de cima as que jaziam na profundidade, fazendo mergulhar as que se
encontravam à superfície, e pondo de lado aquelas em que já
avultavam grandes granulações opalinas dando-lhes o aspecto de mórulas vistas
através de uma lupa.
- Vai
ser rija, então, a festa? - frisou o Caramês.
-De
arromba, meu rapaz! Vai ser a festa maior que se tem feito no concelho.
E na tagarelice própria do sexo e da idade, pôs para
ali tudo quanto lhe havia contado a doceira que viera fazer-lhe a encomenda.
Aquele ano, era juiz da festa o Tomazinho Montenegro, que corria com tôdas as
despesas.
-Mas êle tem dinheiro p'ra isso?-interrogou o
Caramês. - Quando eu parti p'ra a tropa, já êle tinha pôsto em pantana a
legítima da mãi e andava à divina. Depois sube lá em
Bragança da morte do pai, que não deixou cinco réis ...
A vélha meneou a cabeça, em ar de dúvida. Parece que
não Iôra bem assimexplicou. Decerto, o Eusébio Montenegro, que tinha sido o
maior negociante do distrito, vira-se atrapalhado no fim da vida, com os
negócios a correrem-lhe de mal em pior. - Emfim, coisas que acontecem; e
aconteceu a muitos depois da guerra.
- Disseram-me até - ajuntou o rapazque tinha
chegado a chamar os credores.
- Foi certo. Mas, antes de isso, ao que dizem as más
línguas, fêz por aí umas vendas fantásticas, de alguns prédios que tinha, a
certos amigos. A verdade é que os credores pouco levaram. Também, acho que as
dívidas eram tantas, que calhava dez réis de mel coado a cada um.
João Caramês endireitou o busto, indignado.
- Mas
isso não é direito, ti' Ana!
- Não é, não, mas que queres, se os
tempos vão assim? E vamos lá, que, apesar de tõdas essas traficâncias, o
Tomazinho, acostumado a tudo do bom e do melhor, não ficava com fortuna que
chegasse p'ra o trem de vida que levava. Só as amásias e o jôgo lhe custavam
uma continha calada. Mas morreu-se também a tia ...
- Que me
diz? A Dona Oristina de Felgueiras morreu-se?
- Ó rapaz! -
volveu a cobrideira, com uma indignação cómica. - Tu parece que nem és de êste
mundo!
In "Ares da minha Serra" - Campos Monteiro
Fotos do Arquivo F.M.
Quem , em Moncorvo, ainda não terá lido "Ares da minha Serra" ? Pois é boa altura para o fazer nestas férias de caloraça , em que só apetece estar à fresca e ler um livro que nos agrade. É uma sugestão.
ResponderEliminarJúlia Ribeiro
Quando eu ofereci, num encontro sobre judeus, à embaixadora de Israel, Colete Avital, um saquinho com amêndoas cobertas de Moncorvo ela, ficou espantada e disse:"Isto também se faz em Israel!"
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