sexta-feira, 20 de junho de 2014

CONTOS NO TERREIRO AO LUAR DE AGOSTO, de Júlia Ribeiro. Apresentação de Hercília Agarez

 A memória é a sentinela do espírito      Shakespeare


Hercília Agarez e Júlia Ribeiro no "artes e livros"
    Para quem a não conhece, diremos que nasceu em Torre de Moncorvo, se licenciou em Filologia Germânica em Coimbra, é mestre em Ciências da Educação  e exerceu importantes cargos no âmbito do ensino, tendo sido leitora na Universidade de Leipzig.
    Para o que aqui nos interessa, diga-se que foi autora de vários livros cujas datas de publicação desconhecemos. É para falar da última obra que estamos aqui, embora pouco tenhamos a acrescentar ao que constitui a sua matéria introdutória. Na verdade, após um prefácio escrito por mão segura e conhecedora dos meandros da cultura popular transmontana em que são realçados os aspectos mais relevantes do livro aos níveis do conteúdo e da forma, temos dois testemunhos sobre o mesmo e a introdução da responsabilidade da própria autora. Não temos, portanto, muito a acrescentar, com a desvantagem (ou vantagem?) de desconhecermos Júlia Ribeiro.
    Lemos o seu livro na totalidade, embora não profundamente por falta de disponibilidade. Assim, passaremos à sua apreciação, resultante da nossa sensibilidade enquanto leitores.

   Parece ser timbre dos transmontanos o seu apego às raízes. Nascidos em terras desfavorecidas e vítimas de uma interioridade madrasta, tiveram, aqueles a quem estavam reservados mais altos voos, de se deslocar para meios académicos. Outros, para quem o amor soou mais alto, seguiram o seu destino familiar a arrastá-los para longes terras. Seja como for, raramente renegaram o berço, tantas vezes humilde, onde abriram os olhos para um mundo de pureza e de silêncio. E ei-los, sempre que possível, em busca de sítios e gentes da sua infância, a segregarem baba, como o cão de Pavlov, à simples ideia de irem saborear aquele fumeiro inconfundível, a tenrura de uma boa posta, o sabor das couves num caldo bem regado com azeite da região e migado com a broa que conseguiu escapar à modernidade.


    De olhos cansados de ausências, agora enxutos, fazem percursos de reconhecimento, interiorizam partidas irreversíveis, dão-se conta de todas as transformações ditadas pelo progresso, lamentam o desaparecimento de quanto, gravado na memória, faz parte do seu património afectivo, material e imaterial.
    De ano para ano encontram as aldeias mais desertas, mais transfigurada a paisagem, mais urbanizados os habitantes. Vão-se apercebendo do encerramento dos Fornos do Povo, da raridade das Vezeiras, do arremedo grotesco das Chegas de Bois, do fim de tradições ancestrais de que se salvaram, por exemplo, os Caretos.
    Repetimos: os transmontanos são ciosos da sua identidade, da sua cultura, da sua ruralidade sã e espontânea. Mas, como acontece um pouco por toda a parte, parece haver um antagonismo entre o autêntico e o artificial, entre a agricultura e a indústria, entre as histórias contadas à lareira ou ao luar e as telenovelas.
    Se o nosso passado, antropológica, monumental e etnograficamente de extrema riqueza chegou à era do novo-riquismo globalizado, onde o materialismo impera como rei absoluto, tal fica a dever-se ao interesse por ele manifestado por estudiosos portugueses e estrangeiros que foram capazes de captar a sua essência identitária e sobre ela trabalhar como tem acontecido, por exemplo, com arqueólogos e epigrafistas, com etnomusicólogos do gabarito de Michel Giacometti, com teimosos defensores e incentivadores dos jogos populares, como foi António Cabral, com apaixonados pelos registos orais do povo, cheios de pitoresco e de riqueza de linguagem regional de que é justo referir o trabalho de campo empreendido, entre outros, por Alexandre Perafita. Sem esquecer o apaixonado e profícuo trabalho dedicado à divulgação de rituais profanos ligados à máscara levado a cabo por Pinela Tiza. E, claro está, graças aos inúmeros escritores que fazem gala em cultivar um tipo de literatura erradamente qualificada de regionalista.

    Feita esta introdução, entremos no livro. O título e a capa são esclarecedores e remetem-nos para um espaço rural e para um tempo longe onde se contavam histórias ao ar livre, aproveitando a luz poética do luar de Agosto, assistente mudo do que se passava lá em baixo. Quer isto dizer que a autora, cuja infância foi passada numa aldeia do Concelho de Moncorvo, foi armazenando na sua memória os enredos tantas vezes rocambolescos narrados por contadoras e contadores, quase todos gente do povo, iletrada, transmissores em segunda ou terceira geração daquilo a que Pires Cabral chama contas nesse livro muito apreciado que se chama O Diabo Veio ao Enterro.
    A autora dá a voz a esses agentes transmissores de histórias que oscilam entre o picaresco, o fantástico, o sobrenatural, o lendário e o trágico. Serve-se dos resquícios da memória e aviva-as, muitas vezes aproveitando-as como ponto de partida para a efabulação, donde a aliança do real com o imaginado. Nesta primeira parte do livro há que realçar três tipos de registos: simples narrativas, a que poderemos chamar, como Rogério Rodrigues, short storys, condensadas em pouco mais de uma página, episódios e contos propriamente ditos onde a acção assume um desenvolvimento onde cabem descrições e um emaranhado de peripécias criador de ambiente de expectativa.
    São inúmeros, como ficou dito, os contadores, quase todos, assim como algumas personagens, com nomes e alcunhas bem típicas das aldeias. Exemplificando: Alfredo Bota-e-Meia, Tia Olinda Falinhas, Tia Noventa, Teresa Gata, Manelzão, Tia Catalona, Tio António Calvo, Deolinda Rola. Para dar verosimilhança à ruralidade dos narradores, é natural que a autora, a exemplo de grandes contistas transmontano-durienses como Trindade Coelho, Bento da Cruz, Pires Cabral, Torga, João de Araújo Correia e outros, recorra a regionalismos como esboucenada, mandastros, casquinar, lessos, alanzoar, incoirachas, fraca-chichas e muitos mais, e a expressões com sabor a provérbio facilmente descodificados pelo contexto.
    Além dos aspectos apontados, importa realçar o valor documental destas narrativas pelo que elas encerram de elementos históricos, sociais, económicos, antropológicos, geográficos, políticos. São elas fixação perene de realidades devidamente enquadradas num espaço real –o bairro da Corredoura – e num tempo em que a maioria das casas aldeãs não tinham água canalizada, o que levava a entrarem em acção cântaros a caminho da fonte, em que o meio de transporte mais usado era a família dos equídeos, em que a roupa era lavada, também na fonte, com sabão e cloreto. Tempos sem televisão nem centros culturais, falhas que não invalidavam a distracção dos camponeses, fiéis assistentes de um espectáculo ao vivo a funcionar, sempre, como estreia.
    Nesta primeira parte do livro à autora cabem apenas (e nem sempre) palavras introdutórias quando se impõem informações importantes para a compreensão das histórias. Logo passa a palavra a quem as sabe contar com toda a ingenuidade e realismo, num colorido pitoresco, com pausas nos momentos próprios, como profissionais que sabem, tecnicamente, como manter o clima de suspense, como não deixar adormecer os adultos, já que a miunçalha, apesar da curiosidade, acabava por adormecer no fresco do terreiro, em cima de mantas.
    De registar a vivacidade conferida ao desenrolar da acção. Garantem-na os actores secundários, ou seja, aqueles que interrompem o contador para fazer comentários, pedidos, reclamações e aclamações. A autora preocupou-se com pormenores como o uso de expressões exclamativas bem ao gosto da religiosidade popular como por exemplo “Santo nome de Deus! Livrai-nos de todo o mal!”, “Vai para o quinto dos Infernos!”, “Deus nos livre dos maus pensamentos e das tentações do demónio”, “Que Nosso Senhor nos acuda!”, “Santíssima Trindade!”, “Credo! Abrenúncio”. E já que falamos neste traço da psicologia das gentes simples e que nunca largaram as berças, acrescentemos a sua credulidade, a sua fé em rezas, benzeduras e esconjuros, o medo do fim do mundo, o ódio aos judeus, a confiança no efeito de remédios caseiros, as bruxarias, as visões, o gosto pelo fantástico, a tendência para misturar o divino com o profano, o desempenho das carpideiras, a defesa da justiça popular, etc.
    De entre os contos, e por razões tão diversas como a técnica narrativa e a matéria narrada, saliento, no primeiro caso, “O Vagabundo dos Olhos Claros”. O estatuto da narradora, a pessoa então mais respeitada na aldeia a seguir ao padre, confere um ambiente mais formal à assistência e é garante de seriedade, de ausência de brejeirice em que os narradores machos eram peritos. A narração, bem diferente, em vários aspectos, das restantes, não tem interrupções e é evidente a sua densidade, traduzida na quase total ausência de parágrafos a fazer lembrar José Saramago. Os presentes mantinham a expectativa devido às capacidades histriónicas da D. Luzia, a professora primária. Pensamos que os leitores, desta vez graças à mestria da autora, também não abandonarão a leitura a meio.
    Se, por uma razão ou por outra, todos os textos encerram os seus atractivos de conteúdo e nos ajudam a melhor compreender a realidade rural transmontana de meados do século passado, a sua identidade, qual espécie em vias de extinção, escolhemos os que despertaram em nós maior interesse e que são: “Mesmo depois de Morto”, pelo insólito do desenlace, “As Gémeas”, pela crença em Nossa Senhora, “As Mãos Postas”, pelo domínio do fantástico, “A Dentada” pelo espírito de vingança em questões de honra feminina, “Ó Ri-Có-Có” pelo realismo descritivo, sem falsos pudores, e pela violência exercida por um homem num casamento comprado, “O Vestido Lilás”, pela mentalidade, pelo sofrimento infligido a uma miúda por uma crendice maquiavélica.
    Como nos comediógrafos Aristófanes e Gil Vicente, como nas fábulas de Esopo e de La Fontaine, também a função morigeradora está presente, implícita ou explicitamente, nestas narrativas em geral baseadas em factos reais e a que a autora dá forma escrita que enriquece com o aproveitamento ficcional. Significa isto que o povo, divertido ou comovido, está, sem disso se dar conta, a ser edificado.
    Sobre esta primeira parte do livro resta tecer um comentário: se a acção das histórias se localiza num espaço real do nordeste transmontano, as personagens nelas envolvidas viviam, pensavam e agiam como quaisquer outras na mesma época, mas noutros locais do país, tinham hábitos idênticos, regiam-se pelos mesmos princípios morais, seguiam a mesma religião, tinham vícios e virtudes semelhantes. Era o povo no seu melhor e no seu pior, a gente genuína que cultivava as leiras, que guardava o gado, que cozia o pão, que matava o porco. Eram os cesteiros, os ferreiros, os latoeiros, os ferradores, os marceneiros, os mordomos das festas, os homens que se excediam na pinga em dias de romaria, que mimavam as conversadas, que não deixavam a defesa da honra por mãos alheias.

   Passando à segunda parte da obra (lembre-se ser ela o resultado da junção de três obras anteriormente publicadas), preparemo-nos para leituras outras. A autora assume o papel de narradora o que altera, desde logo, o registo da escrita. Da ficção passamos para a realidade, para o relato de histórias verídicas, também elas antigas, remontando até ao último quartel do século XIX com a sua instabilidade política entre progressistas e regeneradores e indo até á década de cinquenta do século XX. Agora o recurso à imaginação e o esforço da memória dão lugar à atitude de responsabilidade de quem se propõe registar factos ocorridos na zona de Moncorvo e que carecem de consulta de fontes orais e escritas, trabalho aturado exigido pelo rigor histórico.
    Com a narradora fazemos uma viagem ao passado com os seus costumes – “A prisão do Sr. Abade” - , as representações teatrais de carácter religioso –,“ Vai em Paz” - , a educação das raparigas – ,“A Marquinhas dos Remédios” - , a confecção do fumeiro –, “A Esmola” - , a Segunda Grande guerra e o mercado negro –,“O Horácio Espalha” - , a emigração –, “O Teodorico Carteiro” - , a sabedoria popular – “Os três Grãos de Cevada” - , a crença em milagres –, “Fablina” - , o quotidiano de uma pensão urbana e outros relatos alheios à Corredoura – ,“A Benção”, “Trocadilhos”, etc.
    Pelo facto de neles estar ausente a ficção, estes episódios revestem-se de interesse para o leitor, não apenas como documentos de uma época, mas pela vivacidade que a autora lhes empresta.
   Sem grandes preocupações estilísticas, nem obsessão de burilar as frases, antes numa linguagem desenxovalhada e impressionista, num ritmo narrativo fluido, Júlia Ribeiro dá provas da sua apetência pela escrita, da sua habilidade em transitar bruscamente do discurso directo para o indirecto, de adaptar a cada personagem a maneira de falar que ajuda a torná-la verosímil, do seu entusiasmo ao reviver um passado que também lhe pertenceu e que teima em não deixar morrer para o bem de quantos se orgulham de uma cultura ancestral que a modernidade teima em tornar obsoleta.
    A nomes mais sonantes da literatura transmontano-duriense como Miguel Torga, Trindade Coelho, João de Araújo Correia, Pires Cabral, Bento da Cruz, têm vindo a juntar-se, no registo de uma transmontaneidade de antanho, escritores teimosamente residentes na região e outros a trabalhar fora do país, como Isabel Mateus. Júlia Ribeiro vive na cidade do Lis, mas a sua terra de origem mantém na sua memória a nitidez de outrora e a evocação dos tempos nela passados como criança e adolescente trar-lhe-á uma  saudável saudade misturada com a satisfação de um dever cumprido enquanto agente literário de preservação de usos, costumes e tradições que a voragem do tempo irreversivelmente engoliu. 

                                                                                                                                                        M. Hercília Agarez

        Vila Real, 13 de Junho de 2014-06-07
                                                         Bragança, 14 de Junho de 2014
     


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