Tenho à minha frente uma
montanha de nomes - todos contistas. Um que outro sachou aqui romance, coisa
mais de estranhos' que de naturais. Agigantou-se a poesia em alguns, mas o
melhor dela guarda-se no intérmino romanceiro (e no menos estudado cancioneiro)
que faz deslocar à raia sucessivas inteligéncias logo vencidas no coração. O
conto casa bem, pois, com a oratura. Foi terra de avós que os anos sessenta
tornaram órfáos: de filhos emigrantes e netos com futuro que já não só o da lavoura.
Nas fainas ou à lareira interiorizávamos as regras da narrativa - «E depois,
avô, -, donde pensar que, junto à figura do romance que na montanha
esforçadamente se ergue, merecemos obras cimeiras em género de mais vasto andar
e largo fôlego. Justificando, afinal, as renovadas panorâmicas até ao fio do
horizonte...
Souberam, no
quadro breve, dar o sangue e a carne que seres de papel ainda admitem. São personagens
determinadas, impositivas no discurso da língua, que, de tão singular, fica já
bem documentada e pode revolver- se para as próximas sementeiras. Mas há
subtilezas que leigo nâo vé, doce é Trindade Coelho, como não direi de Torga ou
de Araújo Correia, mais alcantilados no termo ou no cachoar das paixões - e,
todos, dramáticos; aos mais etnográficos respondem rocas e fusos de quem, ainda
ai, não perdeu a balanceada nostalgia dos caminhos aos soluços - doença de quem
se achou disperso e fora de marcos ou referências.
A grandeza dos tipos vai na sua inquebrantável unidade,
corpos de um só lema e tinta de uma cor. O conto é uma forma de pensamento. A
conexão de vidas aí pontuadas, se lida dinamicamente, deixa já entrever o tal
propósito romanesco. Mostrei, em tempos, baralhando os contos, um dilacerado
jogo contra pontístico em Os Meus Amores (talvez, com os de Eça, a obra do
género mais editada em Portugal)'. Dessa «descrição, semelhanças e variantes,
vim desembocar na unidade prismática que pode configurar o romance; além de que
provei «quanto existe de tensão sob uma escrita aparentemente serena, como
teimam em dizê-la enganados pela luminosidade, pelos espaços edénicos mais
fictos que de facto. A doçura, a generosidade (abrupta, logo mãos rotas), as
portas abertas, em suma, conduzem à outra face, de vincos fundos. A memória
deve ser assim, marginada por veigas e salgueiros pipilantes: ou de lavadas
pedras, altivas, sem concessões a espasmos de letras e vociferar partidário.Terminemos.
Lacónicos, autores e a tão discreta modalidade do conto não me exigem mais
prosa, que outros, transmontanos e altodurienses de raiz ou só devoção, dariam
melhor. Na minha floresta de altos cimos, entre Junqueiro E Torga, sucedem-se
as clareiras. E temos, originário e modelar, um tronco elevado e poderoso:
certo Francisco de Morais, autor desse monumento europeu intitulado Palmeirim
de Inglaterra. Quis dizer como não se escapa ao prirneiro lodo.
Notas
* In Ler-Livros
& Leitores (Lisboa), 10, Primavera de 1990.
1) Por exemplo,
António Rebordão Navarro, Um Infinito
Silêncio, Lisboa, 1970: Viamonte corresponde a Vimioso.
2) Agora, em
Cultura Literária Oitocentista, Porto, 1999, p. 257-266.
Nota do editor do blog: Este texto está incluído no livro "Pátria Breve" de Ernesto Rodrigues, edição Textype.
Ernesto Rodrigues (Torre de Dona Chama, 1956), poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e tradutor de húngaro, é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente de direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
Principais obras: Várias Bulhas e Algumas Vítimas, novela, 1980; A Flor e a Morte, contos e novelas, 1983; Sobre o Danúbio, poesia, 1985; A Serpente de Bronze, romance, 1989; Torre de Dona Chama, romance, 1994; Histórias para Acordar, contos para a infância, 1996; Sobre o Danúbio / A Duna Partján, poesia e ficção, 1996; Pátria Breve, miscelânea, 2001; Antologia da Poesia Húngara, 2002. Na crítica e ensaio, seleccionamos: Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, 1998; Cultura Literária Oitocentista, 1999; Verso e Prosa de Novecentos, 2000; Visão dos Tempos. Os Óculos na Cultura Portuguesa, 2000; Crónica Jornalística. Século XIX, 2004; «O Século» de Lopes de Mendonça. O Primeiro Jornal Socialista, 2008; A Corte Luso-Brasileira no Jornalismo Português (1807-1821), 2008; 5 de Outubro - Uma Reconstituição, 2010. Responsável pelos 3 volumes de Actualização (Literatura Portuguesa e Estilística Literária) do Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho (2002-2003), editou, entre outros, Padre António Vieira, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Trindade Coelho, José Marmelo e Silva, António José Saraiva.
Nota do editor do blog: Este texto está incluído no livro "Pátria Breve" de Ernesto Rodrigues, edição Textype.
Ernesto Rodrigues
Ernesto Rodrigues (Torre de Dona Chama, 1956), poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e tradutor de húngaro, é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente de direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
Principais obras: Várias Bulhas e Algumas Vítimas, novela, 1980; A Flor e a Morte, contos e novelas, 1983; Sobre o Danúbio, poesia, 1985; A Serpente de Bronze, romance, 1989; Torre de Dona Chama, romance, 1994; Histórias para Acordar, contos para a infância, 1996; Sobre o Danúbio / A Duna Partján, poesia e ficção, 1996; Pátria Breve, miscelânea, 2001; Antologia da Poesia Húngara, 2002. Na crítica e ensaio, seleccionamos: Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, 1998; Cultura Literária Oitocentista, 1999; Verso e Prosa de Novecentos, 2000; Visão dos Tempos. Os Óculos na Cultura Portuguesa, 2000; Crónica Jornalística. Século XIX, 2004; «O Século» de Lopes de Mendonça. O Primeiro Jornal Socialista, 2008; A Corte Luso-Brasileira no Jornalismo Português (1807-1821), 2008; 5 de Outubro - Uma Reconstituição, 2010. Responsável pelos 3 volumes de Actualização (Literatura Portuguesa e Estilística Literária) do Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho (2002-2003), editou, entre outros, Padre António Vieira, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Trindade Coelho, José Marmelo e Silva, António José Saraiva.
Ana Diogo :
ResponderEliminarEsta sim, é uma surpresa total para mim! Não conheço o livro, mas o título e a capa são tão belos que despertam logo o interesse na leitura. E com o selo de aprovação de Teresa Martins Marques, leitora / autora de excelência, como duvidar da qualidade superior do conteúdo?! Obg. pela partilha Lelo Demoncorvo.
Teresa Martins Marques :
ResponderEliminarAdoro este livro do Ernesto Rodrigues !
Ernesto Rodrigues :
ResponderEliminarEste livro sobre a 'pátria breve' transmontana é, já, uma raridade bibliográfica. A textura do papel nota-se na reprodução desta bela fotografia. Grato, pois, ao Leonel Brito.
Um texto notável, de um livro que não tenho e penso que é um pecado mortal não ler.
ResponderEliminarDois abraços : para a Teresa e para o Ernesto.
Júlia