domingo, 29 de junho de 2014

Tiago Patrício leva o processo revolucionário até uma terra perdida no meio das serras transmontanas.

Mil novecentos e Setenta e Cinco, assim mesmo por extenso, é a Revolução de Abril a atiçar eufórica o fogo revolucionário numa aldeia de Trás-os-Montes.
Na raia, à vista das serras e das fragas, entre senhores feudais, bastardos, criadas, lavadeiras e pastoras, o espírito novo tenta germinar em terra seca de arrebatamentos. Num lugar onde a autoridade terrena e espiritual partilham dono — e não é o altíssimo — e os sonhos se enterram mais depressa do que os homens.
    
Ao segundo romance, Tiago Patrício volta às paisagens que bem conhece, as mesmas terras que davam título ao livro com que ganhou o prémio revelação Agustina Bessa Luís em 2011 (Trás-os-Montes), para nos oferecer um primoroso estudo de um lugar identificável no espaço mas avesso a submeter-se ao tempo. A qualquer um: no interior atávico, a mudança é adjectivo ruim, coisa do diabo. “Há muitos montes à nossa volta, dizem que o Estado Novo também teve dificuldade em chegar cá e agora somos o último reduto da servidão”, diz um dos personagens no decurso do Processo Revolucionário (p. 62). É difícil arrancar maus hábitos, resignações.
Remetendo pelo título ao Noventa e Três de Victor Hugo e, por consequência, à Revolução Francesa, Mil Novecentos e Setenta e Cinco é menos idealista no seu retrato e mais terreno nos que retrata. E embora se possam usar os personagens como arquétipos de um mundo que se basta a si mesmo por não querer (saber?) olhar mais além, o escritor evita que isso seja da sua lavra. Prefere que seja o leitor a colher.
O que, sim, há neste livro é um domínio invejável do diálogo como motor essencial da narrativa — fruto do gosto pelo teatro e do trabalho de Tiago Patrício na dramaturgia —, uma preocupação atenta à caracterização rigorosa de um microcosmos com linguagem e características próprias — não só no espaço, também no tempo —, fechado às influências externas: um feudo onde ainda não chegara a televisão, esse instrumento essencial da democratização — e da uniformização. Como afirma Fernanda, a estudante que vem do Porto para ver de perto a revolução a acontecer: “Estou fascinada com a tua aldeia, Horácio. Se a pudesse descrever com uma frase, acho que diria que é um paraíso desconhecido até para quem cá mora. Parece que vive aqui um povo isolado do mundo.” (p. 265) E Horácio não tem outra coisa para responder que um “nós somos de ferro… Fernanda.”
A aldeia é um microcosmos suspendido durante um ano, como um limbo histórico, um parêntesis de modernidade na narrativa habitual, onde até a morte descansa para desgraça do coveiro que acabará dedicado às leituras e às escritas por ausência de quem enterrar (“Bons tempos, em que as pessoas ficavam doentes e dali a um par de meses morriam. Agora não, é uma desgraça”). Há nas suas narrativas, introduzidas quase no fim do livro, contornos de fantasia que nos remetem para Alexandre Herculano: “Vós, os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem em tropelias de Satanás, sentai-vos aqui à lareira, bem juntos ao pé de mim (…) e não me digam no fim: — ‘não pode ser.’ – Pois, eu sei cá inventar coisas destas? Se a conto, é porque a li num livro muito velho. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral nos seus cantares” (Lendas e Narrativas).
É como a revolução: outros continuarão a usá-la como assunto literário e a contar o que nela foi feito e o que dela se fez com narrativa empolgante, metáfora boa, personagens de se lhe tirar o chapéu, mas ninguém contará tão bem como Tiago Patrício a história da revolução nesta aldeia.

 ANTÓNIO RODRIGUES 
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/ha-revolucao-na-aldeia-1659130

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