domingo, 8 de junho de 2014

OS SERÕES E AS CONVERSAS NA CASA DO TIO ZÉ MADRUGA,por Judite do Céu

   "UM LIVRO DO POVO PARA O POVO"
Coube aos escritores do nosso Romantismo, em meados do séc. XIX, o mérito de terem sido os primeiros a atentar nos tesouros do romanceiro português. Entre eles, Almeida Garret foi incansável na defesa do "grande livro nacional que é o povo e as suas tradições". Um século mais tarde, Jorge Dias salientou a obrigação de salvar tudo aquilo que ainda é susceptível de ser salvo, "para que os nossos netos, embora vivendo num Portugal diferente do nosso, sejam capazes de manter as suas raízes culturais mergulhadas na herança social que o passado nos legou". Hoje, nos alvores de um novo milénio que consubstancia as miragens do "admirável mundo novo" (Aldous Huxley), cabe-nos a ingente tarefa de preservar todo um repositório da cultural popular, sob risco de deixarmos naufragar a arca de Noé das nossas tradições ancestrais. Trata-se de uma herança a legar aos vindouros, nem que seja para assinalar um tempo em que as marcas da identidade popular e regional continham uma visão do mundo que entretanto se esboroou. De facto, a tradição oral, o folclore e os costumes enraizados constituem-se em função de uma visão formulada e partir de um lugar e de uma esfera sócio cultural, o que configura uma identidade própria na relação com os outros, o real e o transcendente. Estamos assim no plano de um património imaterial onde é possível captar, em representações cénicas mais ou menos simuladas, a alma do povo que se procura retratar.
O livro de Judite do Céu Os Serões e as Conversas na Casa do Tio Zé Madruga - Memórias de um passado recente insere-se neste quadro conceptual. Ao reconstituir um espaço onde desfilam encenações várias alusivas aos costumes e à cultura das gentes fozcoenses, a autora optou por conservar a genuinidade das falas, associando-a à autenticidade de uma forma de relacionamento social, protagonizada por personagens reais. 

Assistimos assim a uma representação ao vivo, em que as personagens e os acontecimentos nos remetem para um "passado recente", embora já distanciado da nossa contemporaneidade. Exactamente por isso, este livro assinala uma viragem de culturas, contribuindo cada encenação para avivar o álbum de memórias da história do quotidiano em terras de Foz Côa. O aspecto mais marcante desses quadros é o da linguagem. De imediato damos conta da notação do registo fónico, que individualiza o falar popular e regional da região. Estamos perante fenómenos linguísticos que derivam da transcrição da oralidade, sem filtros nem restauros linguísticos. Por outro lado, como uma análise filológica, semântica e estilística poderia mostrar, certos registos vocabulares correspondem a realidades concretas, devendo por isso ser mantida a dimensão vocabular e a construção sintáctica, aceites como variedade dialectal. O estranhamento inicial perante a abundância das transcrições fónicas - sobretudo por parte de uma população mais letrada ou distanciada da realidade subjacente - é compreensível. Contudo, de forma intencional, a autora pretendeu que esses vocábulos de grafia "deturpada" (por isso em itálico) encontrassem, na sua exteriorização grafemática, a correspondência com a transposição da fala, tal como se pronuncia(va) na zona onde, digamos, decorre a acção. Neste propósito, Judite do Céu pode fazer-se acompanhar de conhecidos escritores, os quais, embora de forma menos recorrente, procuraram reconstituir nas suas narrativas a linguagem falada pelo povo. Entre outros, exemplifico com Hugo Rocha, Nuno de Montemor, Virgílio Godinho, ou, noutro patamar, Aquilino Ribeiro. Quando este último propugnava um "regresso às origens", valorizava precisamente o falar genuíno e defendia, na vertente da literatura regionalista, que o idioma se encontrava puro na aldeia, ou seja. no meio rural. Mas nesta matéria de incidência linguística, teriamos de destrinçar o plano estritamente lexical do plano fónico. E neste, seria interessante explicara evolução dos diferentes registos. classificados pelos especialistas com designações específicas como assimilação/ dissimilação, prótese. metátese. epêntese, aférese, etc. Noutro plano, importa valorizar a dimensão cultural deste conjunto de narrativas. Desde a identificação de locais da nossa geografia sentimental, passando pela referência a topónimos associados a um imaginário colectivo (sejam eles lugares de culto, de festa ou de folia): desde a captação da vivência da religiosidade popular à alusão a cenários telúricos, em que "a cultura da terra" marca o ciclo das colheitas e acentua a dureza, mas também a alacridade, dos trabalhos agrícolas; desde a descrição de actividades profissionais, onde se aprende algo sobre o mister de cada artífice, com seus "pesos e medidas"; desde a genuína "cultura gatronómica" aos rituais entretanto caídos em desuso; desde a caracterização de passatempos e desportos populares ao modo de assinalar acontecimentos no calendário concelhio (o convívio dos "setembristas", por exemplo), até, enfim, à versão antecipada da descoberta das gravuras rupestres -tudo isso vamos retendo na leveza do ritmo narrativo, acompanhado por descrições com pinceladas de humor prazenteiro. Depois, uma análise mais atenta dos textos pode conduzir o leitor à abordagem de aspectos mais profundos, de repercussões sociais e ideológicas, manifestadas em questões de índole social, como sejam o relacionamento parental e interpessoal, os acordos mercantis e salariais, os índices de natalidade ou de emigração, as superstições e as crenças, a valia da sabedoria proverbial. etc. Sendo assim, vista a cultura popular como espelho do quotidiano de terras e gentes, ela possibilita não apenas o conhecimento da História, mas também a transmissão de particularidades de natureza ..antropológica, psicológica e sociológica que importa conhecer e estudar. Honrado com o convite para prefaciar esta colectânea de memórias", proponho, como "filho da terra", uma incursão pelas histórias desse passado, mais próximo, como se compreende, da geraçãode meus pais. Mas o livro. como é intenção da autora, há-de "chegar a todos os recantos onde exista um fozcoense". E serão estes a passar a palavra. porque através da sua leitura partilham recantos da memória rediviva. Felicito, pois, a autora por este empreendimento. Neste caso, como noutros projectos, bem andam as entidades locais quando desafiam a criatividade cultural e preservam a memória colectiva. Não há cultura sem tradição. E as terras de Foz Côa, presentes na galeria do "património mundial", merecem encontrar arautos a pugnar pela divulgação dos seus pergaminhos históricos.

Henrique Almeida (Professor da Universidade Católica de Viseu)

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