A fundação da capela da senhora dos Prazeres
Começamos a traçar esta rota pela
cidade de Bragança e pelo mais antigo monumento cristão da cidade – a igreja de
Santa Maria, também designada de senhora do Sardão, sita na cidadela, ao lado
do castelo e da domus municipalis.
A construção do templo primitivo
ter-se-ia efectuado logo em seguida à reconquista da terra pelos cristãos aos
mouros, em estilo romântico. Mas terá sido ampliado e reconstruído entre 1700 e
1715, nomeadamente ao nível do seu alçado frontal, que apresenta um pórtico
barroco ladeado por colunas salomónicas.
Pelo interior a igreja é dividida
em 3 naves, separadas por 6 pilares em que assentam 6 longos arcos.
Na nave da esquerda, abre-se a
chamada capela dos Figueiredos, da invocação de Nª Senhora dos Prazeres. Acerca
do assunto, o ilustrado Abade de Baçal, dá-nos a seguinte informação:
- Esta capela, à mão direita de quem entra, é muito elegante, em estilo
da renascença, com motivos ornamentológicos nos pés direitos e arco. No fecho
deste, há um escudo composto de 5 folhas de figueira em aspa e na arquitrave a
seguinte inscrição de letras conjuntas e inclusas que quer dizer: Esta capela
mandou fazer Pedro de Figueiredo alcaide-mor. 1585.[1]
O mesmo autor, em outro passo das
suas Memórias – tomo VI, pg. 747 - deixou copiado o referido brasão. E ainda no
mesmo tomo, em outra página, ao apresentar as origens da família Figueiredo, a
outorga do barsão e a fundação do morgadio, acrescenta a seguinte informação:
- Pedro de Figueiredo casou com D. Violante Sarmento, sua prima, filha
do alcaide-mor Lopo Sarmento (…) e de D. Maria de Morais Pimentel. Instituiu um
morgadio em 1585, com capela na igreja de Santa Maria, de Bragança e nomeou
para primeiro administrador sua mulher D. Violante Sarmento.[2]
Pois é exactamente aqui que
começa a nossa Rota dos Marranos. É que esta capela será um caso verdadeiramente
exemplar de como se pode alterar a história e apagar a memória.
Na verdade esta capela da Senhora
dos Prazeres não terá sido mandada construir por Pedro Figueiredo. Tão pouco
ele era alcaide em 1585 e não era então casado com D. Violante Sarmento. A
verdade exige que esta história seja reescrita.
Rodrigo Lopes terá nascido em
Bragança por 1535, sendo filho de Diogo Lopes e Florença Manuel, ambos de
origem hebreia. Tornou-se um homem de grande prestígio social, a ponto de
conseguir casar a sua filha única – Maria Lopes – com um homem da mais da mais
alta nobreza de Bragança, como era o citado Pedro de Figueiredo. Na crise
dinástica de 1580, seguiria o partido do Prior do Crato, pois que o seu nome
consta da pequena lista dos moradores de Bragança que foram considerados
indignos do perdão geral decretado por Filipe II de Espanha a seguir à sua
eleição como rei de Portugal. Como quer que seja, Rodrigo Lopes foi preso pela
inquisição de Coimbra em Fevereiro de 1591, por culpas de judaísmo. No seu processo,
na sessão da genealogia, pode ler-se o seguinte:
- Disse que tem uma filha única chamada Maria Lopes, que casou e tem
casada com um homem muito principal, cristão velho, que se chama Pedro de
Figueiredo, filho de António de Figueiredo (…) o qual está de portas adentro
com ele réu, de 18 anos a esta parte, comendo e bebendo todos a uma mesa.[3]
Rodrigo foi então preso e de
seguida foram também mandadas prender a sua mulher e a filha. Esta não chegou a
ser presa porque estava prestes a parir e morreu de parto.[4]
A mulher, Águeda Martins,
certamente transtornada e avisada de que ia ser presa, ter-se-á escondido,
acabando, no entanto, dias depois, por se meter a caminho de Coimbra, para se
ir apresentar no mesmo tribunal.[5]
Entretanto e por suspeitarem os
inquisidores que foi o genro que a mandou esconder e estaria tratando de a pôr
em fuga, foi também objecto de um processo e mandado apresentar em Coimbra,
onde foi ouvido e mandado de volta a Bragança.[6]
Temos assim Pedro de Figueiredo
na casa do sogro, a viver sozinho e como único administrador dos seus teres e
haveres.
Meses depois, a sogra morreu nos
cárceres da inquisição, restando apenas o sogro que, depois de sair no auto de
fé, condenado em penas espirituais com cárcere e hábito perpétuo, ficou por
Coimbra para ser bem instruído na religião cristã e cumprir a sua penitência,
aguardando ordem de regresso a casa.
E foi então que Pedro de
Figueiredo escreveu uma carta ao rei Filipe e este a enviou para a inquisição.
Dizia em tal carta que a sua família era cristã velha e a mais nobre de
Bragança e seria uma vergonha se mandassem para a sua casa um homem que fora
condenado no tribunal do santo ofício como judeu. Para o bem da fama e da honra
da sua família e da religião cristã, seria conveniente que mandassem o seu
antigo sogro a viver para outra terra que não Bragança ou que o internassem em
alguma ermida ou convento.[7]
Certamente que se não ficou pela
carta, antes terá metido empenhos e cunhas por muito lado. E a verdade é que os
inquisidores despacharam favoravelmente a petição de Pedro de Figueiredo e
Rodrigo Lopes regressou a Bragança coberto com o detestado saco amarelo
decorado por uma grande cruz vermelha e foi metido no mosteiro de S. Francisco
onde ficou a viver, com grande desgosto dos frades, porventura receosos que lhe
pegasse a peste judaica.
E deste modo Pedro de Figueiredo
terá herdado a casa e os bens de seu sogro, entre eles a capela da Senhora dos
Prazeres. E depois, antes de 1600, casaria em segundas núpcias com D. Violante
Sarmento, filha de Lopo Sarmento que por aquele ano morreu e de quem herdaria o
título de alcaide-mor.
Claro que não foi ele que mandou
esculpir o brasão e escrever a legenda de que ao início se falou, na capela da
Senhora dos Prazeres. Isso terá acontecido mais tarde, quando já não havia
memória do construtor da capela, possivelmente ao organizar-se o processo de
nobilitação de algum seu descendente, com pedido de concessão do brasão dos
Figueiredo Sarmento que o rei D. João V efectivamente concedeu em Julho de
1713.
Voltando à construção da capela,
vejamos o processo de Rodrigo Lopes que, em sua defesa, argumentou:
- Provará que por ele ser, como é, bom cristão, zeloso das coisas da
santa madre igreja de Roma e da lei evangélica, ele fez uma capela na igreja de
Nossa Senhora, da cidade de Bragança, a qual capela é da invocação de Nossa
Senhora dos Prazeres e custou a ele réu mil e quinhentos cruzados, com um
pontifical muito rico de brocado, a qual tem muito ornada e paramentada de todo
o necessário, com capelão e obrigação de uma missa cada semana às
quartas-feiras.
Atiraram o sabão pelas muralhas
Porventura em toda a história da
cidade de Bragança, nunca se viu uma manifestação tão genuinamente popular como
a que se realizou no dia 4 de Maio de 1741. À excepção de alguns membros da
nobreza da terra, todo o mundo nela participou, incluindo militares e frades –
como consta de vários processos da inquisição.
Fantástico! Na cabeça da
manifestação seguiam mais de 200 freiras que nesse dia saíram dos conventos de
Santa Clara e S. Bento. Acabaram por dormir fora, nas escadas e nas eiras do
colégio dos Jesuítas.
Interessante: a manifestação foi
espontânea mas na origem estiveram as reclamações e protestos dos marranos de
Bragança, fabricantes de seda. Vamos contar.
Por essa altura, apareceram em
Portugal as fábricas de sabão químico. E o rei D. João V fez sobre elas, ou
melhor, sobre o comércio do sabão, valer os seus direitos. E concedeu a seu
irmão, o infante D. Francisco o monopólio do comércio desse produto em terras
de Trás-os-Montes. Este nomeou como seu agente em tal negócio a João
Evangelista de Mariz Sarmento, o qual, em cada terra estabelecia em quem
entendia melhor a venda do produto e pagamento dos correspondentes direitos. Em
Bragança o monopólio foi entregue a um grupo muito formado por 3 homens de
muito poder e nobreza e que eram:
- Francisco Xavier da Veiga
Cabral, que os registos biográficos apresentam como “fidalgo da Casa Real,
cavaleiro da Ordem de Cristo, comendador de Nª Sª da Conceição de Bragança, de
Santa Maria de Deilão, de S. Bartolomeu de Rabal e das Almas de Baçal, todas da
Ordem de Cristo, governador de Chaves, sargento-mor de batalhas, governador das
armas de Trás-os-Montes e Minho”. Tanto poder num homem só! Claro que naquela
data ainda não ostentava todos aqueles títulos mas já tinha sido contemplado
com uma comenda de 100 mil réis e um padrão de tença de 200 mil réis. Era então
um homem novo, casado em 1731 com D. Joana de Morais Pimentel.[8]
- Lázaro Jorge de Figueiredo
Sarmento que, em 14.6.a714 tinha sido nomeado alcaide-mor de Bragança, cargo
que desde há 100 anos vinha sendo ocupado por seu pai, avô e bisavô paterno e
como eles ostentava as insígnias de cavaleiro fidalgo da Ordem de Cristo.[9]
- Roque de Sousa Pimentel, irmão
do alcaide-mor, abade de Vinhas, comissário da inquisição em terras de
Bragança, acaso o homem mais temido da região, pelo poder difuso de que
dispunha.[10]
Acontecia que em Bragança os
grandes consumidores de sabão eram os fabricantes de seda, todos eles
pertencentes á gente da nação, que antes usavam ir comprá-lo em Castela. Com a
introdução do monopólio os preços dispararam e a revolta alastrou. Além de que
o sabão novo era menos próprio para a
indústria da seda, como veio a provar-se.
A revolta dos fabricantes de
sedas estendeu-se a outras gentes, com os marranos a conquistar a simpatia do
povo cristão e muito particularmente das freiras em cujos conventos costumavam
representar-se peças teatrais escritas e ensaiadas pelo poeta e homem de teatro
dr. Francisco Furtado Mendonça, médico, a quem se ficou devendo a mobilização
das mesmas para a frente da manifestação.
Seguiram os manifestantes para a
cidadela de Bragança e entraram no castelo, onde o sabão do monopólio estava
armazenado, com vista à sua distribuição e venda. Tal não aconteceu. Foi tomado
pelos manifestantes que subiram às muralhas e dali o atiraram pelo monte
abaixo.
Adivinha-se a quantidade de
manifestantes marranos que depois seriam presos e os muitos que deixariam a
terra para o não ser. E adivinham-se os vitupérios e ameaças proferidas,
registando-se, a título de exemplo, o seguinte depoimento:
- O abade Roque Pimentel e o brigadeiro Francisco da Veiga Cabral e
todos os mais seus parciais publicavam que se haviam de ver vingados dos
cristãos-novos e que mais não haviam de tornar a povoar a rua em que moravam, e
isto sem se valerem de pau nem pedra, e assim o vieram a conseguir.[11]
A verdade é que assim se escreveu
uma bela página da história da cidade de Bragança. Mas esta página nunca
constou de qualquer dos livros nem da heráldica brigantina! Permaneceu abafada
nos processos na inquisição na Torre do Tombo, onde nós a fomos encontrar.
Porquê? Quem estaria interessado em apagar este feito da memória colectiva da
cidade? Agora que ela foi trazida a público, impõe-se que os técnicos e guias
turísticos a incluam nos roteiros do castelo de Bragança. Sim, também por ele
passa a Rota dos Marranos.
Enterravam seus mortos na igreja de S. Vicente
A igreja de S. Vicente é um dos
mais emblemáticos monumentos da cidade de Bragança. Não tanto pela sua
arquitectura (de raiz românica e reconstrução barroca), mas especialmente pela
talha do altar-mor – um monte de ouro
– na expressão de José Cardoso Borges, o grande cronista brigantino do século
XVIII.
Certamente que a maioria daquele
ouro tem cheiro a marranismo e terá sido oferecido por gente que vivia entre o
cristianismo e o judaísmo. Na verdade a igreja de S. Vicente encerra muito da
história dos marranos da cidade e até mesmo da realeza de Portugal. Com efeito,
segundo a tradição, teria sido nesta igreja que se realizou o casamento secreto
do infante D. Pedro com a plebeia e judia Inês de Castro, sendo oficiante o
deão da Sé da Guarda.
E depois que os judeus foram
proibidos de professar a sua religião e obrigados a ser cristãos, a igreja de
S. Vicente tornou-se no espaço religioso mais frequentado pelos cristãos-novos
da terra que, em maioria moravam na Rua Direita que lhe é adjacente. Além de
que foi eleita pela gente da nação
como o espaço privilegiado para sepultar os seus mortos.
Antes de mais importa dizer que
naqueles tempos as pessoas eram enterradas no interior das igrejas e os
marranos não podiam fazer de outro modo, se bem que um dos preceitos da lei de
Moisés seja o de que os mortos devem ser sepultados em terra virgem, ou seja,
em sítio onde antes ninguém tivesse sido enterrado.
Era difícil ou mesmo impossível
conseguir tal objectivo, na generalidade dos casos e das terras. Em Bragança,
porém, na igreja de S. Vicente, nos anos de 1700, abria-se uma janela de
oportunidades nesse sentido, vamos explicar.
A administração desta igreja
pertencia a uma confraria, da Santa Cruz, que era dominada pelos
cristãos-novos. E em 1700 decidiram ampliar o templo. Resultou da ampliação um
novo espaço de terra onde antes nunca fora aberta qualquer sepultura. Era terra
virgem, ideal para nela depositarem os seus mortos. E se eles pagaram as obras
de ampliação da igreja, também fixaram o preço de cada sepultura que na igreja
se abrisse – 4 800 réis! Quase 10 vezes mais do que pagavam pelos enterramentos
em outras igrejas da cidade, nomeadamente na igreja matriz e na igreja da
misericórdia, que até eram de muito mais nobreza e dignidade, se é que tais
palavras são adequadas.
A verdade é que, na igreja de S.
Vicente apenas a gente da nação hebreia se empenhava em ali enterrar seus
mortos. Essa preocupação aparece reflectida em muitos processos da inquisição,
como aparecem também descritas as diligências de alguns padres para provar
práticas judaicas na abertura na abertura das covas e sua denúncia na inquisição.
E já que estamos falando de
enterros, diga-se que aquela gente se preocupava também grandemente em
amortalhar os defuntos. Veja-se, a tal respeito, a descrição da mortalha de uma
jovem enterrada em S. Vicente, no dia 27 de Março de 1747, feita pelo padre que
presidiu às cerimónias fúnebres:
- Assistindo ele ao enterro de Luísa, solteira, irmã de Baltasar Gomes
e de José Gomes, sobrinha de António Rodrigues Ferreira e Francisco Rodrigues
Ferreira, cristãos-novos, moradores na rua dos Oleiros, freguesia de Santa
Maria, observando ele testemunha a mortalha que a dita defunta levava, por ter
lido os editais do santo ofício, viu que a dita defunta levava uma camisa nova,
em folha, em pano de linho fino, com as mangas puxadas para fora, e ouviu dizer
ao padre Bernardo Álvares e a Joana Maria Ferreira, mulher de Diogo Pinto,
vizinhos da casa da dita defunta, que eles tinham visto que a dita defunta
também levava uma anágua em folha e que todos ao mais fatos que levava, assim
touca de freira como os mais adornos, eram novos, e muitas pessoas que
assistiam ao dito enterro fizeram observação e reparo no referido, em tal forma
que António Lopes, tesoureiro da igreja de S. Vicente, aonde foi sepultada a
dita defunta, veio falar com ele testemunha, dizendo que se admirava muito que
os párocos consentissem se enterrasse tal cristã-nova com aqueles hábitos
novos, sabendo que era proibido pelos editais do santo ofício e disse o tal
tesoureiro que até o pano com que lhe cobriam a cara era novo em folha; e que
ao dito enterro assistiu muita gente e muitos clérigos e que faziam o mesmo
reparo, como era o padre Bernardino Álvares, o padre Manuel de Morais, o padre
José Domingues e o padre António da Cunha. E que leu nos ditos editais por os
ter lido aos seus fregueses e que o
padre Manuel Rodrigues Ferreira, tio da defunta, irmão dos sobreditos…[12]
Em 1737, faleceu Pedro Álvares
Pissarro, um dos mais conceituados e ricos homens da nação e a família logo foi
comprar uma sepultura para o enterrar, na igreja de S. Vicente, em sítio de
terra virgem. Era então cura o padre Bento Rodrigues que há muito andava
intrigado com o facto de os marranos só quererem ali as sepulturas.
Resolveu-se, por isso, acompanhar desta vez a abertura da cova e tirar a limpo
essa história da terra virgem. Como a terra era dura e apresentava muitas
pedras, mandou parar o serviço e que abrissem a cova noutro sítio. Argumentaram
que aquela era a vontade do defunto, que deixou em testamento a indicação do
local onde o haviam de enterrar, que era o mesmo sítio onde já fora enterrada a
sua mulher.
Condescendeu o padre, mas com uma
condição: assim sendo, haviam de aparecer ossos. Caso contrário, teriam de
tapar aquela sepultura e abri-la em outro sítio da igreja.
Ficou o coveiro no trabalho e um
assistente foi-se ao adro da igreja de S. João e ali andavam uns ossos pela
terra, ao ar livre, sabe-se lá de quem seriam! E recolheu alguns e voltou a S.
Vicente. Com água benta da pia, molhou-os e depois os incodrigaram na terra, para dar o aspecto de que acabavam de ser
desenterrados. Só que, nessa altura voltou o padre Bento, que tinha ido dar uma
volta e apanhou-os a fazer o trabalho, com os ossos a escorrer água… mandou-os
tapar a cova e abrir outra.
Não desistiram e foram ter com o
vigário geral, a autoridade maior da terra, na esfera eclesiástica,
queixando-se que o cura de S. Vicente os não deixava cumprir a última vontade
de defunto.
Despachou o vigário a seu favor a
petição e, com o despacho na mão, voltaram ao seu trabalho. E foi a vez de o
padre Bento ir ter com o seu superior e explicar-lhe a razão da sua atitude,
que era a de impedir uma cerimónia judaica, que não era em respeito da vontade
do defunto que a abriam naquele sítio, mas porque a lei de Moisés ordena que os
mortos sejam enterrados em terra virgem.
Rua Direita – Uma verdadeira fábrica de sedas.
Em uma memória enviada em 1721
para a Academia Real da História, o secretário da câmara municipal escrevia que
a fábrica de sedas de Bragança consta
hoje somente de 30 tornos e 350 teares, que os mais se ocupam em mantas de
peso, e com o consumo da fábrica se cria muita e excelente seda nos lugares do
termo.[13]
Pensamos que o nome fábrica
não deve ser entendido como um edifício onde estivessem instalados
aqueles tornos e aqueles teares, antes terá o significado de produção e
indústria.
Não vamos também questionar
aqueles números, mas acentuamos o advérbio somente.
A verdade é que a existência de 350 teares e 30 tornos numa terra de 500 ou 600
casas, significa um elevado índice de industrialização. Por outros documentos
se verifica também que a classe dos fabricantes de seda seria a de maior peso
no tecido económico e social da cidade.
Também não será novidade para
ninguém que aquela indústria, em Bragança, como em Chacim e nos outros centros
sericícolas, estava nas mãos da gente da nação. Por isso mesmo e para o estudo
aprofundado da matéria, uma fonte essencial são os processos da inquisição
instaurados aos marranos que nessa arte trabalhavam e às cadeias foram parar.
Porque lemos já um bom par desses
processos, podemos adiantar algumas informações sobre o assunto, começando por
dizer que a maioria dos cristãos-novos de Bragança residiam na rua Direita e
que muitas das suas casas eram verdadeiras oficinas de fabrico de seda,
equipadas com teares, tornos e caldeiras.
Mas não se pense que aquela gente
apenas tirava a baba (seda) dos bichos, a reduzia a fios e os torcia para nos
teares fabricarem os tecidos. Ao contrário, eles comercializavam, comprando aos
lavradores a matéria-prima e vendendo o produto final. Eis porque as suas casas
eram em simultâneo, fábricas e lojas de comércio.
E como não podia deixar de ser,
as casas eram de habitação, com as famílias, geralmente numerosas, ocupando o
piso superior. E se uns (mulheres e crianças, sobretudo) trabalhavam no
aquecimento de caldeiras de água, outros faziam os teares laborar. E se o chefe
da família tudo coordenava, os filhos andavam por fora comprando casulos e
vendendo tecidos.
Tentemos então fazer um retrato
composto da rua Direita olhando-a como uma grande fábrica onde o ritmo da vida
quotidiana era marcado pelo matraquear de centenas de teares. E era também uma
rua comercial, a mais movimentada de todas, com dezenas de lojas de massaria
onde tudo se comprava e vendia, pois a gente da nação não perdia a mínima
oportunidade de negociar e tratar.
E ao sábado, como seria, sabendo
que aquele é o dia de descanso semanal? Fechariam todas aquelas lojas e
ficariam parados aqueles teares, com as pessoas a vestir seus fatos domingueiros?
E ao domingo, ficaria a rua Direita buliçosa como em qualquer dia de trabalho?
Certamente que isso não acontecia pois daria muito nas vistas, causaria
escândalo e os esbirros da inquisição denunciariam o caso e seguiriam vagas de
prisões. Não podendo assim fechar as lojas e parar os teares, os marranos
provavelmente abrandavam aos sábados o ritmo do trabalho, guardando em
pensamento o dia santificado. E ao domingo, para não dar nas vistas e causar
escândalo, teriam as portas fechadas e os teares parados mas aproveitavam para
fazer trabalhos de limpeza e arrumação nas lojas e manutenção nas fábricas.
Mas havia um dia a generalidade
não trabalhava mesmo. Era o dia grande do
Kipur, o mais sagrado de todos, o qual, em 1745, caiu no dia 6 de Outubro. E
tendo conhecimento antecipado de tal efeméride, alguns bufos andaram a espreitar o comportamento dos marranos e os
denunciaram à inquisição. Vejamos dois excertos dessas denúncias. Uma delas foi
feita pelo familiar do santo ofício António José da Rocha Pimentel, que disse o
seguinte:
- No dia 6 de Outubro de 1745 era dia grande e na rua Direita estavam
todos às portas a conversar, de camisas lavadas, ou a jogar e não se ouviu um
só tear.[14]
O segundo testemunho foi prestado
pelo capitão António Luís de Madureira, morador na Casa do Arco, nos seguintes
termos:
- Movido ele testemunha de curiosidade e zelo da fé, foi ele testemunha
no dito dia em companhia do dito padre António Carlos, por 4 ou 5 vezes pela
rua Direita, aonde vive a maior parte dos cristãos-novos, para efeito de
averiguar e alcançar alguma notícia e indícios certos do que se dizia, e indo
pela rua ele testemunha com o dito padre, viu Luís de Valença à porta de
António Rodrigues Falho, o qual tinha uma camisa muito bem branca e sabe por
ver, porque ele testemunha vive no meio da rua Direita que no dito dia nenhum
trabalhou, sendo que a maior parte são tecelões de seda e os viu uns estar às
janelas e outros às portas e que nenhum deles tinha camisa ofuscada.[15]
Naturalmente que estas e outras
denúncias desencadearam ondas de prisões.
E não era só a guarda do sábado e
do Kipur que que fazia os
denunciantes espreitar para a rua Direita e vigiar os marranos que nela
moravam. Sabiam que estes, às escondidas, faziam cerimónias judaicas. E
tentavam, por todos os modos surpreendê-los.
Vimos já que, a meio da rua
Direita, exactamente no sítio onde faz uma pequena curva, se situava a casa dos
Figueiredo Sarmento, família onde sempre abundaram familiares da inquisição e
alguns comissários. Pois um dos maiores denunciantes que encontramos naqueles
tempos chamava-se António Manuel de Figueiredo Sarmento. Ele próprio dizia que
se punha à janela aos sábados para ver quem trabalhava e trazia vestia
domingueiro e quando passavam os enterros para ver os ornamentos das urnas.
A casa tinha uma porta larga ao
nível do r/chão e era sítio apropriado para se porem a espreitar, sobretudo de
noite quem saía e entrava em cada casa. Sim que eles sabiam que os marranos se
reuniam às escondidas para rezar, naturalmente no estreito círculo das pessoas
de confiança, que normalmente se limitavam à própria família, mais ou menos
alargada. Estas reuniões ou ajuntamentos eram designados pelo nome de sinagoga.
Ainda hoje, na gíria trasmontana se diz: juntam-se no largo em sinagoga.
Pois, na cidade de Bragança, no
tempo que vimos referindo, ficou fama de existirem pelo menos duas casas onde
faziam sinagoga. Uma era a casa do médico Gabriel Ledesma e outra a do mercador
e rendeiro António Rodrigues, o Falho, de alcunha. Mas vejam o testemunho de um
cristão-velho, capitão de uma companhia de ordenanças, chamado Francisco Lopes:
- Disse que em casa do médico Gabriel Rodrigues Ledesma. Morador na rua
dos Oleiros desta cidade, se recolhem às noites, principalmente de sexta-feira,
os cristãos-novos desta cidade, principalmente os seguintes: os Ledesma, os
falhos, os de Lafaia e os Marranos, todos moradores na rua Direita, o qual
médico se presume ser seu rabi e na qual casa se faz sinagoga.
E que em casa de António Rodrigues Falho, morador na rua Direita, se
fazem também ajuntamentos à noite de sexta-feira, principalmente na Quaresma
aos tais ajuntamentos vão cristãos-novos, homens e mulheres e também o bacharel
António Rodrigues Pissarro e António Rodrigues Castro, o Cabecinha, tio dos
Falho e os filhos de Henrique Rodrigues e sua mãe e os de José Rodrigues, já
defunto e Rafael Rodrigues e Gabriel Rodrigues e outros mais e o praticante
daquela sinagoga é o bacharel António Gabriel Pissarro.[16]
Mas vejamos onde este capitão e
denunciante estava para ver e as precauções tomadas para que o seu depoimento
não fosse inválido:
- Pelas 8 horas da noite foram ele testemunha e os padres Bartolomeu
neves e Manuel da Cruz para a loja de José Cardoso Borges (pai do citado
Figueiredo Sarmento e marido de D. Clara Figueiredo Sarmento), sita no meio da rua Direita, a qual tem uma
porta grande para a mesma rua (…) vendo eles (…) sem ser vistos e dali viu ele
testemunha com os mais, entrar em casa de Pedro Lafaia de Castro, cerieiro,
cristão-novo, um adjunto de 6 ou 7 pessoas, homens e mulheres.
Isto foi a uma sexta-feira da
Quaresma. Na semana seguinte, antes do domingo de Ramos, voltou o mesmo capitão
àquele posto de vigia, desta vez acompanhado pelo padre José Álvares da Silva.
Vejamos o que aconteceu, conforme o seu relato, confirmado, aliás, pelo outro:
- Pelas mesmas 8 horas da noite (…) viu sair da casa do dito Pedro
Lafaia de Castro um homem com um pau ferrado ao fundo, dando golpes na calçada
da rua (…) e se meteu em casa de José Rodrigues Ledesma, em cuja casa entraram
5 ou 6 pessoas mais e logo o dito Pedro de castro foi batendo com o dito pau
pela rua acima e saiu a mulher de Pedro Carvalho, tendeiro, e veio pela rua
abaixo com um irmão dela e chegando à porta de Sebastião da Costa Chacla, pai
da sobredita, saíram da casa 4 ou 5 mulheres e se meteram em casa de Brites
Maria e outro sim saíram logo Manuel Mendes, Castanhola, de alcunha, a mulher e
a mãe e se meteram em casa do dito António Rodrigues Falho, para onde tinham
entrado as mais; e observou que a criada do dito António Rodrigues logo foi
para casa do dito Manuel Mendes, Castanhola (…) e ele testemunha ficou
entendendo, pelas referidas circunstâncias e razões, que todos os referidos
cristãos-novos se juntaram para fazer sinagoga naquela noite e muito melhor por
lançarem para fora a criada, para melhor ficarem em liberdade.[17]
Este Pedro Lafaia de Castro, tal
como o advogado António Gabriel Pissarro contam-se entre os ascendentes do
grande pintor, fundador do movimento impressionista Camille Pissarro (1830-1903).
Acaso se ele tivesse conhecido a rua Direita de Bragança e adivinhado o vulto
daquele seu antepassado que ia à noite pela rua a bater na calçada com o pau
ferrado a chamar os outros para a sinagoga, ele teria imortalizado a cena,
pintando um belo quadro. Alguém o fará por ele? Haveria de ficar bem, num
futuro museu do marranismo, em Bragança.
[1] -
FRANCISCO MANUEL ALVES, Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de
Bragança, Tomo I, pg. 325.
[2] - ALVES,
Memórias… Tomo VI, pg. 132
[3] - IANTT,
Inquisição de Coimbra, pº 2095, de Rodrigo Lopes.
[4] - IANTT,
Inquisição de Coimbra, pº 2987, de Maria Lopes.
[5] - IANTT,
Inquisição de Coimbra, pº 1712, de Águeda Martins.
[6] - IANTT,
Inquisição de Coimbra, pº 480, de Pedro de Figueiredo.
[7] - Vejam
a carta de Pedro de Figueiredo: -
[8] - ALVES,
Memórias… VI-195.
[9] - ALVES,
Memórias… I-327.
[10]
- Ficou na memória colectiva e registada nas crónicas da época a festa
realizada em Vinhas em 10.2.1744, por iniciativa e sob orientação do abade
Roque Pimentel. O pretexto foram as exéquias de Henrique Vicente de Távora,
conde de S. João e a inauguração das obras da igreja matriz da terra que se
prolongaram pelos 4 anos que antecederam, financiadas e dirigidas pelo abade /
comissário da Inquisição. E constituíram como que a sua consagração pública,
entre a mais lídima nobreza trasmontana. Vejam como a GAZETA DE LISBOA, de 3.3.1744
se referia ao caso, conforme extracto publicado por CASIMIRO DE MORAES MACHADO,
no Boletim dos Amigos de Bragança nº 17, de Julho de 1958:
- na igreja abacial do lugar de
Vinhas (…) do padroado da Ilustríssima e excelentíssima casa dos Távora, celebrou,
no dia 10 de Fevereiro o mui Reverendo Abade actual Roque de Sousa Pimentel,
protonotário apostólico de SS, Comissário do Santo ofício e Fidalgo capelão da
Casa real as exéquias do ilustríssimo Senhor Principal de Távora (…) com a
maior pompa fúnebre que nunca se viu naquele bispado, e podia parecer em toda a
parte. Celebrando (…) com 8 beneficiados, todos paramentados de veludo negro
com franjas de oiro (…) assistindo a esta função o alcaide-mor de Bragança, seu
irmão, com os mais parentes seus e todoas as pessoas nobres daquela vizinhança,
dobrando no mesmo dia e nas suas vésperas, não só os sinos da Abadia, mas os
das 6 igrejas suas anexas.
[11] -
IANTT, Inquisição de Lisboa, pº 10633, de Francisco Furtado Mendonça.
[12] -
IANTT, Inquisição de Coimbra, pº 6269, de António Gabriel Pissarro.
[13] - JOSE
CARDOSO BORGES,------------------------------------------
[14] -
[15] -
[16] -
IANTT, Inquisição de Coimbra, pº 8073, Gabriel Rodrigues Ledesma
[17] -
IANTT, Inquisição de Coimbra, pº 1806, de António Rodrigues Gabriel
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