quarta-feira, 25 de março de 2015

O NELITO BARRIGUDITO - Arinda Andrés

Urros. Foto da autora
Era uma vez o Nelito Barrigudito, tinha nove irmãos, com ele, os pais, e os avós, à mesa, eram sempre à volta de quinze pessoas, tempos de fome, de miséria, as coisas eram muito difíceis; o Nelito Barrigudito, com uns suspensórios presos por uma alça, só a um botão, o par daquele já tinha ido para o jogo dos feijões, ai isso!… ganhava sempre a tudo e a todos, não fora aquele dia em que o Toino Patoilo lhe passou a rasteira… tinha que os apanhar, lá isso é que tinha… e puxava a outra alça, a arrastar ou dependurada das asas da sua liberdade, sempre com a constipação a sair-lhe pelos moncos do nariz, esverdeados, a barriga à vela, verão ou inverno, com um pau na mão, fazia muitos e muitos caminhos, e o pau sempre a abanar de um lado para o outro, para não perder tempo, se fosse preciso… eles verão! inda num se tinha esquecido, muito corado, ou da febre, mas não devia de ser, que os garotos eram muito saudáveis, os que vingavam… morria-se muito garoto, mal os botavam ao mundo, e depois, que bem que Deus se lembrou de ti, e dele, e de todos vós, foi um bem; então se foi assim tão bem, porque choram por eles? porque é mesmo assim, foi um bem porque vão para os Anjinhos; e pronto; e morria mais outro menino, e mais outro nascia e outra vez se dizia, é que era bem que Deus lho levasse, então porquê?! porque é um Anjinho. Já fui ver o Anjinho e levar-lhe flores, vão enterrá-lo… então tem que ser! o tinha que ser, eu não gostava nada dele.
Numa casa pequenina, com uma porta também pequena, a abrir para a escuridão, o lar, com dois ou três pauzitos, a arder, sem lume, puxavam os banquitos também pequeninos, metiam os dedos num buraco, para os arrastar, no telhado, com mais dois ou três,por onde passava a água da chuva, a aparar-se numa bacia ou caldeiro, enquanto não se juntava dinheiro para as telhas, o sol jogava ao esconde-esconde com as nuvens e o Nelito, na ausência dos mais velhos, brincava com um raio de sol, poalha de luz iridescente que ele agarrava na palma da sua mão gorda e reboluda, tens a mão sapuda, dizia-lhe o irmão do meio, quando o Nelito não o ajudava nas contas de multiplicar; aquela mancha luminosa era o mundo, ali entre os seus dedos, enquanto inventava uma saída para a partida dos feijões, a brilhar de sonhos e de fantasias, entrava por aquele buraquinho, e em diagonal, atravessava a casa e saía pelo buraco da fechadura, e doirava tudo por onde passava, depois chegava à rua e desaparecia, nem ele era capaz de a descobrir, nunca ninguém a tinha visto! ninguém sabia onde se tinha metido, só o Nelito é que a tinha descoberto, tal e qual como nos contos de fadas, depois sentava-se em cima da cama coberta com uma mantinha de farrapos de algodão, sobras de uma encomenda de Mogadouro, que a tia Elisa tinha feito no tear, depois, com esse dinheiro é que iriam comprar a lã, em sacos, fiá-la, comprar as tintas, e a ver se ficava algum para comprar uma porquinha, e sentado, as pernas cruzadas, a língua de fora, a cabeça assim inclinada para o lado da sua fantasia, com o espelho que ganhou a jogar ao par ou pernão, enganava o raio de sol e surpreendia-o , em passo de magia, onde ele quisesse, que lindo, era uma maravilha! no dia seguinte ia fazer inveja aos outros. Era ainda mais milagrosa que os contos que o avô Toino lhe contava ao serão, de cigarro esquecido e húmido, entre os dedos, trémulos mas certos, de olhos piscos, no gosto de os fazer e de os enrolar e no inverno, por entre as telhas do telhado, o vento tocava melodias de entreter, em combinações de sons misteriosos e a caleira, em compasso, acompanhava, e embalava os sonhos dos mais novos, todos à volta do lume, a avó rezava e contava contos aos mais pequeninos, queres que te conte um conto? e os dois mais novos saltavam-lhe logo para o regaço, grande, de pernas cansadas e ossudas, abriam em arco e o avental preto fazia um grande vale, fundo, de amor e devoção a tudo e a todos; outra vez! pedia o Zezito, já a sonhar com as três maçãzinhas de ouro, e a dividi-las pelos irmãos todos, não chegavam muito bem e depois queria dar a parte maior ao Nelito, de repente, já o sonho estava a diluir-se na cara enrugada, mas tão bonita da avó Teresa, com os cabelos tão branquinhos, tão branquinhos, tão macios, tão onduladamente fofos, como a neve, a cobrir as montanha mágicas, do livro de leitura da escola, porque tem os cabelos tão branquinhos, avó? porque já peneirei muitos sacos de farinha para tu comeres o pão, e já não peneira mais? 
não, agora, quem peneira é a vossa mãe, e também vai ficar com os cabelos brancos? também, e o Zezito dormia tranquilamente, no seio daquela paz que se metia na alma de todos e até o gato Rufas a sentia também e, de olhos fechados, sonhava como era bom estar ali, mesmo a puxarem- lhe o rabo, sempre que se lembravam, especialmente o Nelito, a cabeça tombando sobre o braço dobrado em cima do joelho da avó Elisa e a mão pendente, ingenuamente tão livre quanto submissa e entregue, em doce abandono, àquele cantinho de que ele tanto gostava, era o seu mundo e tinha-o ali bem perto de si para ouvir outras histórias; era uma cozinha pra tudo, menos para dormir, que eram uns xiragões, inchidos cum palha, que se mudava todos os anos, o chão em terra batida, era testemunha calada, silenciosa, do amor e harmonia que acomodava tudo e todos, e quando a fogueira ardia, o caldo de feijões era uma festa, mormente, era de nabiças ou couves como diurético que era, iam para a cama com a galinha, mijavam a cama, dormiam uns para cima, outros para baixo, e a mãe ia logo com um pau de cinco varas, e quando o pai chegava, cheio de frio, de invernos rigorosos, sem roupa que os agasalhasse, todos à volta do lume, ali brandinho, a alumiar as caras, e os corações e os copos de alumínio presos à parede do almário, e a avó, ali sempre ao cantinho, era o canto da avó, o pai atirava com caruma e dizia, pronto, já tenho lugar! Terminado o serão o pai, muito calmo, dizia, já pedistéis a bênção?, e os mais velhos, ouvindo, ordeiramente, dizer, a sua bênção! estendiam a mão sobre as cabeças, diziam, Deus te abençoe! e parece que até o mundo todo ficava em paz, as crianças olhavam para baixo, em sinal de respeito, e seguiam tranquilamente para a cama. Mas no dia seguinte o Nelito Barrigudito tinha que ganhar, e conseguir aquele botão que pertencia à camisa do pai; e foi ali, no adro da igreja, o garoto, cheio de coragem, calmamente, desafiou, num assomo de manha e de esperteza, és um medricas de medroso, não és capaz de me mostrar o botão, ai és! tens mas é medo, queres a uma aposta, se fores capaz? dou-te outro, ora mostra, se és capaz!; o outro, para não se ficar, meteu a mão ao bolsito da camisa, e …zupa! num relance, saltou para dentro da mão do Nelito; a mão ágil voou, agarrou bem rápido o botão da camisa do pai , e enquanto o Artur ficou de olhos arregalados, a olhar para a palma da mão, vazia, ele deitou-lhe esta, julgas que eu sou burro? ia agora deixar-te ficar com o botão, e logo este.

Mais leve que uma gazela, escapuliu-se para o quarto, a cosê-lo, e tinha que ser bem cosido, lá isso é que tinha, para a mãe não dar conta. E no silêncio da sua criancice, sem ninguém ver, iria coser o botão ; a linha, já estava, e já agora, pensava na alegria da mãe ao vê-lo assim tão bem pregado, mas o melhor era que nem desse conta, e passava a linha, uma, duas, três, e mais outra e mais outra, havia de ficar bem pregado, como a mãe gostava, nunca mais se iria despregar, enquanto arrastava a camisa pelo chão da cozinha à procura de uma faca, para terminar aquele trabalho e bem depressa, não viesse alguém… e que lhe adiantava, depois, dizer? iam logo pensar que foi adrede que arrincou os botões, bem, já estava ali bem dobradinha a camisa, ao cantinho da arca como só as coisas da avó Emília estavam. E tudo iria correr normalmente, a avó continuava a contar contos, depois da ceia , rezavam, era melhor do que sobremesa, na escola fazia as contas de cabeça , até primeiro que a professora, no inverno, envolvidos no manto espesso da noite, a caleira combinava com o vento, no telhado, melodias para adormecer os meninos e no quintal, dois ou três palmos de terra, para lá da cozinha, lá ao fundo, a água corria em sulcos, lavrando estórias de verdade, para embalar, na paz do trabalho, os mais crescidos; o sol havia de continuar a brincar com os bagos das uvas do quintal, que iriam comer a cor das folhas, e elas, secas e encarquilhadinhas de tanta dedicação e protecção, iriam esmorecer, perder a cor da vida, a pulular-lhes nas veias, verdes de tantos sonhos, para se desfigurarem em sombrios castanhos de Outonos melancólicos; o sol, havia de continuar a brincar com as folhas da pereira que, no calor do Agosto, naturalmente, na calada do vento, acompanhada pelo luar misterioso, profundo e calmo, ia beber água do poço, à sua vontade, sem ninguém ver, só o Nelito sabia este e outros segredos.

Arinda Andrés
( os cacharozes da minha infância)


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9 comentários:

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  4. HÁ UMA SÉRIE DE VOCÁBULOS E EXPRESSÕES QUE, PORQUE INCORRETOS, INTENCIONALMENTE, PARA MELHOR CARACTERIZAR AS PERSONAGENS E O MEIO, DEVERIAM FIGURAR EM ITÁLICO... OBRIGADA A TODOS.
    ARINDA ANDRÉS

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  5. era assim que se vivia...

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  6. Prosa a jorros,que nos deixa sem fôlego,mas nos inunda a alma de prazer.
    Um beijo,Tininha.

    Uma moncorvense

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  7. Força, Tininha: a torrente avança com ímpeto. E não nos faltam grandes mestres, quer cá dentro quer na estranja.

    Abraço
    Júlia

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  8. Mais TININHA,mais ARINDA,mais!
    Noitibó

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  9. OBRIGADA A TODOS.
    TININHA

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