domingo, 5 de março de 2017

Teresa Martins Marques e a Prof Doutora Manuela Barros Ferreira- a maior especialista do mirandês (in Biografia de Amadeu Ferreira)

TMM- Pode dizer-nos o que foi a “questão sendinesa”? 
MBF - Esse é um ponto crucial. Foi depois de o Mirandês já ter obtido o estatuto de Língua oficial que os sendineses foram confrontados com a situação de não terem estado suficientemente representados no grupo da convenção. Porque o padre Mourinho era um homem extraordinário, um autêntico sábio. Porém ele, e nós, os linguistas, tínhamos muitas dúvidas em relação ao Sendinês, porque escrever os sons sendineses tal qual se pronunciam, através dum alfabeto corrente, não é coisa fácil. Foi por isso que nos pareceu mais exequível tratar de unificar, antes de mais, a escrita mirandesa propriamente dita. Além disso, o Sendinês está na mesma situação que o Barranquenho e o Riodonorês: é falado apenas numa localidade. Escrever em Sendinês é escrever para muito pouca gente. Se se escrever em Mirandês... então com os mirandeses espalhados pelo mundo, que são gente duma criatividade extraordinária, tem capacidade de sobreviver por mais uns anos largos. E a escrita proposta pela Convenção pode ser lida de muitos modos. 
Cláudio Torres ,Manuel Barros Ferreira, Amadeu Ferreira,
Teresa Martins Marques e Leonel Britos
Aliás, eu já tinha feito um trabalho sobre as diferenças fonéticas do Sendinês em relação ao Mirandês. E tinha chegado à conclusão que o Sendinês é uma variedade do Mirandês, proveniente do mirandês antigo, ou leonês. Julgo que se trata de um dialecto não muito antigo do Mirandês, que se foi constituindo provavelmente a partir do século XVI.
Foi só depois de ter sido publicada a lei do reconhecimento oficial do Mirandês que conheci o Amadeu, ou seja, no Outono de 1999. Nessa altura mostrou-me um documento: “Manifesto para uma língua moribunda”, que era um manifesto a favor do Sendinês. E o Amadeu exigia, com a sua delicadeza natural, que o Sendinês também tivesse uma Convenção Ortográfica. Ele passou a ir ao Centro de Linguística, onde eu trabalhava, uma ou duas vezes por semana e conversávamos durante horas sobre questões linguísticas. Ele dava uma grande atenção às coisas que ouvia, porque eu lhe apresentava todos os argumentos que conhecia, e reflectíamos em conjunto sobre tudo. Pensámos os dois nas coisas e chegámos à conclusão que a escrita mirandesa, com algumas pequenas adaptações, podia servir perfeitamente para o Sendinês. Era uma questão de ler de outra maneira. Tal como acontece na grafia portuguesa: nós escrevemos “ou” e, em grande parte do país, lemos “ô”, não é? Nós escrevemos “louco”, “pouco” mas lemos “lôco”, “pôco”. Neste caso, a grafia normativa corresponde a uma maneira de falar que hoje está confinada ao norte, mas que certamente já existiu em todo Portugal.
Temos várias coisas na escrita que correspondem a etapas antigas, por exemplo, escrevemos com “ç” e com “ss”, quando hoje na maior parte do país essas duas formas têm o mesmo som. Antigamente pronunciavam-se de modos diferentes – e ainda hoje se pronunciam de modo diferente na Beira Alta e Trás-os-Montes. Então o Sendinês também podia aceitar determinadas diferenças da escrita em relação à sua pronúncia, porque a escrita mirandesa corresponde a uma pronúncia mais antiga, que terá sido mais uniforme mas evoluiu de modos diferentes de aldeia para aldeia. Por isso é possível ter uma escrita só para toda a gente. Mas toda a gente pode e deve conservar a sua própria pronúncia. Esta é património natural das pessoas que falam umas com as outras e nenhum académico de parte alguma lhes pode dizer: “Tu, quando falares com o teu vizinho não lhe dizes: “Bou a la fonte” ou “Bou a la funte”, tens de dizer: “bou a la fuonte”. Não pode ser. Não se pode impor a fala. Impõe-se a escrita, porque tem o papel de fixar ideias que são lidas por milhares de pessoas. Ou milhões. Mas a fala é outra coisa. 
E o Amadeu é assim, o Amadeu é uma esponja extraordinária. O Amadeu tudo aquilo que ouve e que é bom e que é inteligente e que é racional, que é lógico, ele absorve e considera sempre. Ele disse uma vez: “eu sempre fui muito bom aluno” e era. De facto era. É uma das grandes inteligências que tive o privilégio de passaram pela minha vida.

TMM- . Daquilo que eu tive o gosto de ouvir à professora Manuela Barros Ferreira, fiquei com a convicção de que o Amadeu Ferreira tinha sido muito importante para evitar a "crispação", aquele extremar de posições entre o Sendinês de um lado e o Mirandês propriamente dito do outro. Ele foi importante para amenizar essa situação?
MBF- Foi importante com o tempo e foi importante pela quantidade e qualidade da sua produção que hoje ninguém pode negar. Por muito mal que tenha caído em muita gente o facto de ser um Sendinês (no fim de contas até era uma família de sendineses porque o irmão também contribuía para isso e depois o filho) a cultivar a língua Mirandesa. Isso não foi muito bem aceite no início por pessoas que sempre defenderam que o Mirandês era aquela pureza de Duas Igrejas, de Palaçoulo, sei lá, de todos os ninhos de águia que há em Miranda, e que fossem os sendineses a escrever mais, a promover, a dar aulas... mas se não fossem os sendineses e sobretudo o Amadeu, o Mirandês hoje tinha uma obra, ou duas ou três obras por ano. Assim não só tem essas obras, elas continuam a aparecer, mas tem dezenas, talvez já centenas de cultores da língua.
Foi o Amadeu com a sua escrita e com a Associação da Língua Mirandesa, com as aulas que deu em Lisboa, com as suas crónicas no Público e outros jornais, com os sites e blogues que ele instituiu em Mirandês. O meu site desapareceu, esteve dois anos no ar e acabou por paralisar. Ainda pode ser consultado mas desde 2003 que parou. Apareceram e floresceram os sites de Mirandês graças ao Amadeu, às pessoas que aprenderam com ele, aos seus seguidores. Claro, também há um ou outro site que apareceram por outras iniciativas como, por exemplo, o de Sendim...
Portanto a crispação talvez não tenha totalmente desaparecido em algumas pessoas que ainda estão vivas, mas no entanto toda a gente se rendeu à evidência da superioridade da escrita do Amadeu.
TMM - O que é que acha da iniciativa da tradução d’Os Lusíadas para Mirandês?
- É uma empresa que me parecia impossível, portanto ele venceu o impossível mais uma vez, venceu o impossível e por outro lado é um acto simbólico, é extraordinário. É um acto simbólico como fundação da língua. É simbólico de muitas maneiras. Traduzir para Mirandês Os Lusíadas é, por um lado, reforçar o lado Português dos Mirandeses e por outro, reforçar o lado Mirandês de capacidade de escrita.
TMM- Aquela sessão da leitura pública, foi qualquer coisa de verdadeiramente extraordinário. Fui de propósito a Sendim para assistir.
MBF- Eu não assisti, mas acredito.
TMM- O Amadeu, fez um cronograma, aceitou inscrições de pessoas da zona, não só de Sendim mas de diversas aldeias que quiseram inscrever-se para ler um excerto. Fez essa programação e assistiu-se durante um sábado e domingo à leitura pública e gravada integralmente por todas aquelas pessoas. Era muito interessante ver o pai, a mãe e um filho pequeno, com sete ou oito anos todos a ler. Apresentavam-se - sou o fulano tal, tenho a idade tal, etc. É um documento oral tão importante para a língua Mirandesa como o documento escrito da tradução d’Os Lusíadas. E tudo isto foi um empreendimento fantástico do Amadeu.
MBF- Também achei fantástico. E também a tradução d’ Os Quatro Evangelhos a partir do Latim!
TMM- Utilizou, evidentemente, os conhecimentos que ele tem do tempo do seminário. São iniciativas excepcionais, que deixam na sombra quaisquer outras.
MBF- Pois, mas isso é uma inevitabilidade, conhecendo a personalidade do Amadeu é uma inevitabilidade porque ele é excelente, ele é excelente por definição.
MBF- Tem que ser!
TMM- Era assim no seminário, não sei se a professora tem a informação de que havia uma única bolsa de estudo para todo o seminário e era ele quem a ganhava todos os anos. A bolsa era para o melhor aluno e ele ganhou-a a partir dos treze anos até ao fim. Portanto é uma inevitabilidade, eu diria que querer concorrer com o Amadeu é desde logo uma estultícia, porque ele não faz esforço nenhum para ser excelente. 
MBF- É daqueles fenómenos da natureza, ele é um fenómeno da natureza.
TMM- Acabou agora de fazer o volume dos provérbios Mirandeses que vai sair em breve...
MBF- Os Ditos
TMM- Os Ditos que vão sair agora. Mais um serviço do Amadeu para a causa mirandesa.
MBF- Que salvou a memória do Mirandês, salvou. A memória e a capacidade, a capacidade de expressão do Mirandês. E aí eu queria ter uma palavrinha para a família, não para a família, mas para a mãe. A mãe do Amadeu é uma pessoa completamente fora de série.
TMM- Eu concordo consigo. É de uma cultura natural. É também uma força da natureza.
MBF- Ela é o supra-sumo. Aliás as coisas, as histórias que ele conta e em que se baseia, aquele vocabulário que ele foi buscar à mãe, que gosta tanto de contar coisas de toda a vida que viveu. Ele honra o vocabulário que a mãe tem e qualquer palavra que ela diga, ele dá-lhe a volta e aquela palavra torna-se uma joiazinha. Eu acho isto extraordinário. E essa mãe teve a clarividência de o mandar para o seminário e de o apoiar em tudo. Mas também tenho a impressão que é o grande amor da vida dele. Ela, e o pai, os filhos e toda a família. Ele tem um culto, a família em primeiro lugar, depois os amigos, depois é toda a gente. E ele é as árvores, ele é os animais, ele é a maneira como olha uma rocha, a maneira como olha as fotografias e a natureza que ele descobre. E a música que eles aprenderam desde pequenos. Para já não falar mais da Língua mirandesa à qual se dedicou de corpo e alma. Tudo isto define uma pessoa extraordinária. Uma pessoa assim devia poder viver muitos, muitos anos.

Teresa Martins Marques



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