TMM- Pode dizer-nos o que foi a “questão sendinesa”?
MBF - Esse é um ponto crucial. Foi depois de o Mirandês já ter obtido o
estatuto de Língua oficial que os sendineses foram confrontados com a situação
de não terem estado suficientemente representados no grupo da convenção. Porque
o padre Mourinho era um homem extraordinário, um autêntico sábio. Porém ele, e
nós, os linguistas, tínhamos muitas dúvidas em relação ao Sendinês, porque
escrever os sons sendineses tal qual se pronunciam, através dum alfabeto
corrente, não é coisa fácil. Foi por isso que nos pareceu mais exequível tratar
de unificar, antes de mais, a escrita mirandesa propriamente dita. Além disso,
o Sendinês está na mesma situação que o Barranquenho e o Riodonorês: é falado
apenas numa localidade. Escrever em Sendinês é escrever para muito pouca gente.
Se se escrever em Mirandês... então com os mirandeses espalhados pelo mundo,
que são gente duma criatividade extraordinária, tem capacidade de sobreviver
por mais uns anos largos. E a escrita proposta pela Convenção pode ser lida de
muitos modos.
Cláudio Torres ,Manuel Barros Ferreira, Amadeu Ferreira, Teresa Martins Marques e Leonel Britos |
Aliás, eu já tinha feito um trabalho sobre as diferenças fonéticas do Sendinês
em relação ao Mirandês. E tinha chegado à conclusão que o Sendinês é uma
variedade do Mirandês, proveniente do mirandês antigo, ou leonês. Julgo que se
trata de um dialecto não muito antigo do Mirandês, que se foi constituindo
provavelmente a partir do século XVI.
Foi só depois de ter sido publicada a lei do reconhecimento oficial do Mirandês
que conheci o Amadeu, ou seja, no Outono de 1999. Nessa altura mostrou-me um
documento: “Manifesto para uma língua moribunda”, que era um manifesto a favor
do Sendinês. E o Amadeu exigia, com a sua delicadeza natural, que o Sendinês
também tivesse uma Convenção Ortográfica. Ele passou a ir ao Centro de
Linguística, onde eu trabalhava, uma ou duas vezes por semana e conversávamos
durante horas sobre questões linguísticas. Ele dava uma grande atenção às
coisas que ouvia, porque eu lhe apresentava todos os argumentos que conhecia, e
reflectíamos em conjunto sobre tudo. Pensámos os dois nas coisas e chegámos à
conclusão que a escrita mirandesa, com algumas pequenas adaptações, podia
servir perfeitamente para o Sendinês. Era uma questão de ler de outra maneira.
Tal como acontece na grafia portuguesa: nós escrevemos “ou” e, em grande parte
do país, lemos “ô”, não é? Nós escrevemos “louco”, “pouco” mas lemos “lôco”,
“pôco”. Neste caso, a grafia normativa corresponde a uma maneira de falar que
hoje está confinada ao norte, mas que certamente já existiu em todo Portugal.
Temos várias coisas na escrita que correspondem a etapas antigas, por exemplo,
escrevemos com “ç” e com “ss”, quando hoje na maior parte do país essas duas
formas têm o mesmo som. Antigamente pronunciavam-se de modos diferentes – e
ainda hoje se pronunciam de modo diferente na Beira Alta e Trás-os-Montes.
Então o Sendinês também podia aceitar determinadas diferenças da escrita em
relação à sua pronúncia, porque a escrita mirandesa corresponde a uma pronúncia
mais antiga, que terá sido mais uniforme mas evoluiu de modos diferentes de
aldeia para aldeia. Por isso é possível ter uma escrita só para toda a gente.
Mas toda a gente pode e deve conservar a sua própria pronúncia. Esta é
património natural das pessoas que falam umas com as outras e nenhum académico
de parte alguma lhes pode dizer: “Tu, quando falares com o teu vizinho não lhe
dizes: “Bou a la fonte” ou “Bou a la funte”, tens de dizer: “bou a la fuonte”.
Não pode ser. Não se pode impor a fala. Impõe-se a escrita, porque tem o papel
de fixar ideias que são lidas por milhares de pessoas. Ou milhões. Mas a fala é
outra coisa.
E o Amadeu é assim, o Amadeu é uma esponja extraordinária. O Amadeu tudo aquilo
que ouve e que é bom e que é inteligente e que é racional, que é lógico, ele
absorve e considera sempre. Ele disse uma vez: “eu sempre fui muito bom aluno”
e era. De facto era. É uma das grandes inteligências que tive o privilégio de
passaram pela minha vida.
TMM- . Daquilo que eu tive o gosto de ouvir à professora
Manuela Barros Ferreira, fiquei com a convicção de que o Amadeu Ferreira tinha
sido muito importante para evitar a "crispação", aquele extremar de
posições entre o Sendinês de um lado e o Mirandês propriamente dito do outro.
Ele foi importante para amenizar essa situação?
MBF- Foi importante com o tempo e foi importante pela quantidade e qualidade da
sua produção que hoje ninguém pode negar. Por muito mal que tenha caído em
muita gente o facto de ser um Sendinês (no fim de contas até era uma família de
sendineses porque o irmão também contribuía para isso e depois o filho) a
cultivar a língua Mirandesa. Isso não foi muito bem aceite no início por
pessoas que sempre defenderam que o Mirandês era aquela pureza de Duas Igrejas,
de Palaçoulo, sei lá, de todos os ninhos de águia que há em Miranda, e que
fossem os sendineses a escrever mais, a promover, a dar aulas... mas se não fossem
os sendineses e sobretudo o Amadeu, o Mirandês hoje tinha uma obra, ou duas ou
três obras por ano. Assim não só tem essas obras, elas continuam a aparecer,
mas tem dezenas, talvez já centenas de cultores da língua.
Foi o Amadeu com a sua escrita e com a Associação da Língua Mirandesa, com as
aulas que deu em Lisboa, com as suas crónicas no Público e outros jornais, com
os sites e blogues que ele instituiu em Mirandês. O meu site desapareceu,
esteve dois anos no ar e acabou por paralisar. Ainda pode ser consultado mas
desde 2003 que parou. Apareceram e floresceram os sites de Mirandês graças ao
Amadeu, às pessoas que aprenderam com ele, aos seus seguidores. Claro, também
há um ou outro site que apareceram por outras iniciativas como, por exemplo, o
de Sendim...
Portanto a crispação talvez não tenha totalmente desaparecido em algumas
pessoas que ainda estão vivas, mas no entanto toda a gente se rendeu à
evidência da superioridade da escrita do Amadeu.
TMM - O que é que acha da iniciativa da tradução d’Os Lusíadas para Mirandês?
- É uma empresa que me parecia impossível, portanto ele venceu o impossível
mais uma vez, venceu o impossível e por outro lado é um acto simbólico, é
extraordinário. É um acto simbólico como fundação da língua. É simbólico de
muitas maneiras. Traduzir para Mirandês Os Lusíadas é, por um lado, reforçar o
lado Português dos Mirandeses e por outro, reforçar o lado Mirandês de
capacidade de escrita.
TMM- Aquela sessão da leitura pública, foi qualquer coisa de verdadeiramente
extraordinário. Fui de propósito a Sendim para assistir.
MBF- Eu não assisti, mas acredito.
TMM- O Amadeu, fez um cronograma, aceitou inscrições de pessoas da zona, não só
de Sendim mas de diversas aldeias que quiseram inscrever-se para ler um
excerto. Fez essa programação e assistiu-se durante um sábado e domingo à
leitura pública e gravada integralmente por todas aquelas pessoas. Era muito
interessante ver o pai, a mãe e um filho pequeno, com sete ou oito anos todos a
ler. Apresentavam-se - sou o fulano tal, tenho a idade tal, etc. É um documento
oral tão importante para a língua Mirandesa como o documento escrito da
tradução d’Os Lusíadas. E tudo isto foi um empreendimento fantástico do Amadeu.
MBF- Também achei fantástico. E também a tradução d’ Os Quatro Evangelhos a partir
do Latim!
TMM- Utilizou, evidentemente, os conhecimentos que ele tem do tempo do
seminário. São iniciativas excepcionais, que deixam na sombra quaisquer outras.
MBF- Pois, mas isso é uma inevitabilidade, conhecendo a personalidade do Amadeu
é uma inevitabilidade porque ele é excelente, ele é excelente por definição.
MBF- Tem que ser!
TMM- Era assim no seminário, não sei se a professora tem a informação de que
havia uma única bolsa de estudo para todo o seminário e era ele quem a ganhava
todos os anos. A bolsa era para o melhor aluno e ele ganhou-a a partir dos
treze anos até ao fim. Portanto é uma inevitabilidade, eu diria que querer
concorrer com o Amadeu é desde logo uma estultícia, porque ele não faz esforço
nenhum para ser excelente.
MBF- É daqueles fenómenos da natureza, ele é um fenómeno da natureza.
TMM- Acabou agora de fazer o volume dos provérbios Mirandeses que vai sair em
breve...
MBF- Os Ditos
TMM- Os Ditos que vão sair agora. Mais um serviço do Amadeu para a causa
mirandesa.
MBF- Que salvou a memória do Mirandês, salvou. A memória e a capacidade, a
capacidade de expressão do Mirandês. E aí eu queria ter uma palavrinha para a
família, não para a família, mas para a mãe. A mãe do Amadeu é uma pessoa
completamente fora de série.
TMM- Eu concordo consigo. É de uma cultura natural. É também uma força da
natureza.
MBF- Ela é o supra-sumo. Aliás as coisas, as histórias que ele conta e em que
se baseia, aquele vocabulário que ele foi buscar à mãe, que gosta tanto de
contar coisas de toda a vida que viveu. Ele honra o vocabulário que a mãe tem e
qualquer palavra que ela diga, ele dá-lhe a volta e aquela palavra torna-se uma
joiazinha. Eu acho isto extraordinário. E essa mãe teve a clarividência de o
mandar para o seminário e de o apoiar em tudo. Mas também tenho a impressão que
é o grande amor da vida dele. Ela, e o pai, os filhos e toda a família. Ele tem
um culto, a família em primeiro lugar, depois os amigos, depois é toda a gente.
E ele é as árvores, ele é os animais, ele é a maneira como olha uma rocha, a
maneira como olha as fotografias e a natureza que ele descobre. E a música que
eles aprenderam desde pequenos. Para já não falar mais da Língua mirandesa à
qual se dedicou de corpo e alma. Tudo isto define uma pessoa extraordinária.
Uma pessoa assim devia poder viver muitos, muitos anos.
Teresa Martins Marques
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