segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Zulmira morreu 15: Do ruído que a vida faz



Havia lixo no chão. E sombras. Os olhos de Zulmira não chegavam para as sombras espalhadas pelo chão. Nem para o lixo. Era dia de feira. Zulmira saíra de casa como fazia sempre que era dia de feira, para comprar hortaliças e fruta. Às vezes comprava outras coisas. Pijamas e roupa interior para os filhos, por exemplo. No Outono gostava de passear de tenda em tenda a regatear as camisolas de dentro. Não regateava o preço. Não, nada disso. Regateava o pelinho que cada uma tinha no avesso. Ganhavam as mais cardadas, as mais felpudas. Porque os seus filhos iam para escola e não podiam levar os abraços que ela lhes dava quando lhes pressentia os arrepios de frio. E precisavam, por isso, de umas camisolas interiores bem quentinhas, que fizessem lembrar abraços. Que fizessem sentir abraços. Zulmira tocava-lhes para sentir se teriam a temperatura certa. Apalpava-as, virava-as de dentro para fora, chegava-as ao nariz, para também lhes sentir o calor do cheiro que tinham.
Entretanto, havia lixo e sombras no chão. E ruído. Ruído espalhado pelo ar que Zulmira respirava. Pesado. Cada vez mais. Havia vozes disformes e roucas a inventar defeitos naquele e naqueloutro. A desenharem, no circo das tendas, enredos depreciativos de todas as pessoas. Zulmira perguntava-se muitas vezes como era possível que, sempre que voltava a atenção para fora de si, parecia haver alguém a falar de alguém. Alguém a julgar alguém. O filho da Carminda deixou a mulher. A secretária do 2º C anda com o patrão. O filho da divorciada do 3º A vai chumbar por faltas. O negócio daquele não vai longe. E nos intervalos do ruído, palavras de há dias a pesarem no ar. Palavras manchadas de sombras brancas. Trataremos de si, D. Zulmira.Vai ver que vai ficar boa. Tem uma nódoa na bata, doutor. Hoje em dia tudo se trata. Parece de fruta, doutor. Tenha esperança, D. Zulmira, vai tudo correr bem.
E foi num movimento de inspiração do ruído misturado com as palavras manchadas de branco que sentiu o coração a fugir e a levar as vozes, as sombras, o lixo, o próprio chão e as palavras. Zulmira caiu numa espécie de céu sobre o sono das folhas secas e nasceu-lhe silêncio por dentro.

5 comentários:

  1. Este texto está muito bem. Mas é tão triste, tão melancólico...
    Mas é verdadeiro, lá isso é.
    Falar de "lixo", já é, um pouco, remeter para restos, detritos. Mas" nada" é preferível a lixo.
    Não é tão negro.

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  2. Estou a repetir-me: é um texto excepcional . Aliás , a escrita da Virgínia do Carmo é fantástica. Uma maravilha.

    Abraço
    Júlia

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  3. Está bem,está bem,estamos todos de acordo mas se mata a Zulmira quem fica orfão somos nós.Longas páginas de vida a Zulmira,Ainda hei-de sorrir para ela através da montra da livraria Lelo,no Porto.Virtual no Lelo de moncorvo e real na Lelo da Invicta.Bem-haja a autora.
    Agostinho

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  4. Excelente texto, é. Sem dúvida. Mas, quanto a mim, é melancólico, mórbido, até. O que não implica, de modo nenhum, que não seja um bom texto.

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  5. Obrigada a todos, pelos comentários :) Um abraço!

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