Nas
minhas investigações sobre Trindade Coelho e Campos Monteiro para a elaboração
de futuros trabalhos sobre estes escritores transmontanos, tenho deparado com muitas
coisas interessantes, algumas delas inéditas, outras pouco conhecidas. Na
verdade estou a recolher dados para a elaboração de algumas publicações sobre
estes meus «dois amores» e a cada passo (felizmente) encontro coisas novas e
interessantes que, na devida altura, terei todo o prazer de partilhar consigo.
Foi o que aconteceu com estas duas cartas que agora vou partilhar com o leitor.
Estas duas cartas fui descobri-las,
posso bem dizer que, ainda praticamente inéditas. A primeira carta é de
Trindade Coelho para Camilo Castelo Branco a Segunda de Campos Monteiro para
Trindade Coelho.
Vamos à primeira que, como referi, é
de Trindade Coelho para o seu venerado Camilo. Para se perceber bem esta carta
tem de se saber o contexto em que foi escrita. Trindade Coelho, findo o curso
de Direito, concorreu para o cargo de Delegado régio do Ministério Público e
com a ajuda de Camilo Castelo Branco foi colocado no Sabugal e pouco depois em
Portalegre. Portanto, Trindade Coelho para além da admiração pelo escritor
Camilo Castelo Branco devia-lhe esse favor que jamais esqueceu. Eis a carta:
“Ilustríssimo e
excelentíssimo Senhor e
meu
Grande e Querido Mestre:
Hoje tem sido para mim um dia
alegre...a ler nos jornais a simpatia afectuosa e o sincero entusiasmo com que
todos recebem a sua visita a Lisboa.
Eu também queria ir aí, mas o
Tesoureiro- pagador não me deixa...Brindou-me hoje com o ordenado do mês que
passou há 22 dias. E deu-me a fabulosa quantia de 16 mil reis com 625tostões(?)
(1) Em compensação ainda não há 12 horas que promovi em 84 processos crimes! A
sinceridade do meu desejo exige a sinceridade desta desculpa...De resto sou eu
o primeiro...a não me conformar por elas. Mas enfim, é poderosa.
Já gritei contra isto no Diário
Ilustrado, analisando a última reforma judicial, mandaram-me calar, - sob pena
de “me ser tolhido o futuro”.
Calei-me,
quando não, tinha mais a dizer. Mas agora dão-me ganas de desferir nova carga,
vendo-me privado de o ir visitar, em virtude de “gravidade das circunstâncias”.
Daqui lhe envio porém as minhas afectuosas boas-saúdes, desejando vivamente que
a visita à sua terra natal marque na saúde de V. Ex.a um período de vigor.
Se
a doença fosse coisa que se pudesse repartir, eu oferecia-me para lhe ficar com
metade. E não ficaria amortizada a minha enorme dívida de gratidão.
Palavra
de honra!
Os
meus respeitos a seu Ex.mo Filho cuja mão já uma vez apertei em Coimbra no
quarto do Eduardo Carvalho, meu companheiro de casa.
Sempre,
sempre às ordens de V Ex.a, como
Discípulo,
Amigo e criado
Muito
grato
Trindade Coelho
Portalegre,
22 de Setembro de 1887
Esta
carta foi passada «a limpo» creio que por sua nora Maria Cristina Trindade
Coelho, conservando-se apenas a última folha original, escrita pelo próprio
punho de Trindade Coelho. Nesta interessante carta pode ver-se não só a
profunda amizade, veneração e gratidão que Trindade Coelho tinha para com o
grande Camilo Castelo Branco como também as dificuldades económicas que o nosso
Trindade estava a passar apesar de ser Delegado régio do Ministério Público em
Portalegre.
A
Segunda carta é de Campos Monteiro para Trindade Coelho escrita em 27/11/1907
ou seja no ano anterior ao do suicídio do escritor mogadourense (Trindade
Coelho suicidou-se a 9 de Agosto de 1908) (2). Sempre me interroguei se os dois
escritores transmontanos se haviam conhecido, esta carta esclareceu esta minha
dúvida. Esta carta é um pedido de desculpa de Campos Monteiro a Trindade
Coelho. Porquê este pedido de desculpa? Vejamos o contexto em que foi escrita.
Trindade Coelho era magistrado num tribunal que aplicava as leis do governo de
João Franco e a mais odiada das leis: a lei de censura à imprensa. Trindade
Coelho como magistrado aplicava a lei do governo franquista (Trindade Coelho
era, como ele próprio dizia, um escravo da lei), como escritor condenava-a
tendo mesmo escrito vários artigos contra ela. Este dilema levou-o a pedir a
demissão do cargo, único sustento seu e da sua família, e essa demissão
acompanhada da hipocrisia dos políticos que lhe prometeram reintegrarem-no no
seu lugar logo que o governo despótico caísse (promessa que não cumpriram), foi
uma das causas da sua morte.
Campos
Monteiro deve ter escrito um artigo no jornal “ Voz Pública” contra essa lei e
contra quem a aplicava, ou seja Trindade Coelho. Trindade Coelho, homem de uma
grande sensibilidade, ficou magoado com o escritor moncorvense e este por sua
vez apercebeu-se da tremenda injustiça que fez ao grande homem e intelectual
que era o nosso Trindade, daí esta carta que revela uma grande dignidade e nos
mostra dois verdadeiros cavalheiros. Vejamos a carta:
“
Ex. mo Senhor:
Em
Agosto passado, a propósito de uma questão ventilada na “Voz Pública” fui eu
roubar o espaço de uma coluna àquele jornal, para, a respeito de V. Ex.a,
bondar umas considerações tendentes a mostrar a incoerências em que V. Ex.a me
parecia laborar, verberando como escritor um certo número de leis que era
forçado a aplicar como agente do Ministério Público.
Não
houve em todo aquele insípido arrazoado – permita-me V. Ex. a franqueza –
palavra alguma que não fosse escrita com sinceridade, desde o justos elogios ao
artista até ás talvez exageradamente censuras ao magistrado.
As razões do meu modo de sentir, expu-las
aí nesse artigo, com a rudeza sincera que eu suponho constituir o substrato
anímico de todo o transmontano. Não vale a pena volver a elas, sobretudo agora
que V. Ex. acaba de abandonar o seu cargo, comprando assim bravamente o direito
de fazer esta coisa, já hoje tão rara em Portugal: - caminhar de fronte
erguida.
E
é precisamente o conhecimento dessa resolução que me leva a escrever a V. Ex.ªfugindo
evidentemente às praxes da boa cortesia, que nos intima a não nos dirigirmos a
qualquer cavalheiro sem prévia apresentação.
Simplesmente,
acima das praxes sociais coloco eu os ditames da minha consciência, a qual
neste momento me ordena que, sem perder um minuto, venha perante V. Ex. a fazer
amende(?) honorables, estendendo-lhe a mão, esta rude mão de proletário e um
pouco confrade em Letras, que V. Ex.ª, honesto e digno como é, se não negará a
aceitar.
Evidentemente,
não basta esta simples carta. Pois que o agravo foi em público, em público e no
mesmo lugar do delito deve ele ser sanado. Nesta data escrevo uma carta à “Voz
Pública”, curta e anódina como convém sob o regime que esmaga a imprensa, mas,
ainda assim, bastante explícita para dela se inferir quanto eu folgo em fazer
justiça a quem se acaba de se revelar – um Homem!
V.
Ex.ª terá a bondade de perdoar os minutos que venho de roubar-lhe, com a
exposição de sentimentos que mediocremente o deverão interessar. Eu, porém, é
que não poderia passar mais uma noite de sono tranquilo, sem fornecer à minha
consciência este desafogo, que ela imperiosamente exigia.
De
V. Ex.ª criado e admirador
Campos
Monteiro
S.
Mamede de Infesta (Porto)
27
– XI –07”
Espero que tenha gostado de ler estas
duas belas cartas e assim ficar a conhecer melhor estes dois grandes escritores
transmontanos.
NOTAS
(1) – Na sua carta Trindade Coelho á frente
de 625 escreveu apenas uma inicial ( que se lê muito mal) e que me parece
indicar a palavra tostões.
(2) – Há muitos escritores que apontam outra
data para o suicídio de Trindade Coelho mas foi dia 9 de Agosto, entre as
quatro horas e as cinco da tarde, que Trindade Coelho apontou ao coração o
fatal revólver, na sua casa da rua larga de S. Roque, N.º 20, 4º andar, em
Lisboa. Tenho em meu poder o assento de óbito de Trindade Coelho e li muitos
jornais do dia seguinte (de que tenho fotocópia) em que atestam a veracidade
desta data. Também a lápide de mármore afixada no dia 14 de Maio de 1911 na
casa onde nasceu Trindade Coelho, em Mogadouro, diz o seguinte:
CASA
ONDE NASCEU,
A
18 DE JUNHO DE 1861,
O
GRANDE ESCRIPTOR E MAGISTRADO
JOSÉ
FRANCISCO TRINDADE COELHO
FALECIDO
EM LISBOA
A
9-8-1908
Obrigada ao blogue por nos brindar com testemunhos desta raridade.
ResponderEliminarSão sempre interessantes estes documentos que nos informam sobre tanta coisa.
E vejam como as relações sociais e até literárias se estabeleciam.