A propósito de José Maria Fernandes, um gaiteiro de Terras de Miranda e, em minha opinião, um dos melhores gaiteiros do mundo, sugiro ao leitor que veja este vídeo e, sobretudo, que escute muito bem. Ficará maravilhado com a música e talvez espantado com a letra da canção.
É ainda o Sr. José Fernandes quem nos diz que ouvira a
cantiga a um homem de acordeão que tocava e cantava pelas feiras. “E eu
captei-a. Era miúdo e captei-a”.
Ora, escute o leitor, que depois falaremos dela e da
realidade por detrás dela.
Bacalhau não há,
arroz, feijão não há,
qualquer sabão não há,
massa e pão não há.
azeite mau não há, *
só há apetite, sim,
isso sim, há.
Veio o padeiro e o pão é racionado
E o merceeiro então faz-se poupar.
A gente paga até um dinheirão
de cara alegre e dinheiro na mão.
Bacalhau não há, etc...
Já não se pode ser dona de casa,
Passa gente co’s nervos em brasa,
Falta-nos tudo então para comprar.
Mulheres com juizo não há,
bem educadas não há,
aquilo que é preciso não há,
e bem poupadas não há,
só há mandrionas,
gulosas e borrachonas.
Assim , sem mais nada, até parece uma cantiga de
brincadeira, mas o cenário em que, há uns 60–70 anos se enquadrou , era
terrível. A Espanha vivia ou acabara de viver a Guerra Civil (1936-1939), de
extrema violência, em que foram cometidos actos de enorme crueldade. ( Homens e
mulheres de Terras de Miranda, como Sendim, recordam o horror de verem, do lado
de cá atrocidades sem nome, ouvirem os gritos de mulheres sendo violadas,
gritos esses que não mais esqueceram, até porque alguns tinham filhos e filhas
, netos e irmãos que casaram “do outro lado” ).
Mas estávamos a falar da cantiga: a miséria, a penúria e
a fome eram indescritíveis. Faltava tudo e tudo era racionado. “Tínhamos de ter
etiquetas (senhas de racionamento) para conseguirmos um cachico de pão “ .
Em Portugal, e por tabela, também houve grandes
carências. Contudo, apesar delas, as gentes de toda a raia seca do norte
transmontano (e não só) recolheu, escondeu refugiados a quem estava destinado o
fuzilamento. Imagine o leitor qual não
seria a raiva das gentes raianas, quando viam passar combóios cheios de cereal,
batata, farinha, arroz, etc. enviados
por Salazar aos fascistas espanhóis, com a seguinte tabuleta em letras enormes
nos vagões: “SOBRAS DE PORTUGAL” , como se Portugal nadasse em abundância e
aqui não houvesse fome. E não era fome de quem espera pelo jantar, era fome
entranhada em dias, semanas e meses a habituar o estômago a receber um quarto
do que ele precisava.
A Guerra Civil de Espanha foi logo seguida pela 2ª
Guerra Mundial (1939-1945) e a miséria continuou e agravou-se, crua e dura. Lembro-me,
tinha eu uns 6 anitos, de passar horas na “bicha do Paiva” (Torre de Moncorvo) com
a senha de racionamemto na mão (“Cuidado, não a percas” me recomendava a minha
avó que já não andava), para receber um codorno de pão de centeio tão
absolutamente integral que até tinha palhas e praganas.
As mulheres, nas “bichas,” ralhavam umas com as outras;
nos Pocecos até se roubava o pedacinho de sabão que tinha de durar para toda a
semana. Não se admire pois o leitor por na cantiga as mulheres não serem “bem
educadas”. A verdade é que “casa onde não há pão, ....” Isto é ditado nosso.
Mas as mulheres espanholas, Santo Deus, onde estavas quando a bomba nazi
destruiu Guernica? As mulheres espanholas a quem mataram os homens, filhos, pais, irmãos, que foram espancadas e violadas,
essas não me admiro que fossem buscar no vinho o esquecimento.
Para quê falar mais da terrível realidade que está por
detrás da cantiga que tão bem toca o nosso gaiteiro de Terras de Miranda ?
Fiquem com a música, que eu farei outro tanto.
* “Azeite mau não
há”, isto é, nem do mau havia, porque do bom nem pensar.
Leiria, 15.10.2013
Júlia Ribeiro
Nota do editor:Depois da entrevista a José Maria Fernandes, conduzida por Mário
Correia (director do Centro da MúsicaTradicional –Sons da Terra) para Memória Futura
e gravada em video por mim,perguntei ao entrevistado que recordações tinha da Guerra
Civil de Espanha,da fome,das senhas de racionamento ...Com a Sony ligada por descuido, foi possível recolher este importante
depoimento que,com o contributo da Júlia, ficou mais enriquecido.
Abraços à Júlia, ao Mário e a ao Gaiteiro,senhor
José Maria Fernandes.
Leonel Brito
Um enorme abraço ao Sr. Administrador do Blog,à querida Julinha,ao Mário e ao Sr.José Maria Fernandes o melhor Gaiteiro do mundo.Muito obrigada pelo vosso excelente trabalho.
ResponderEliminarIrene
Um grande Gaiteiro e um grande texto.
ResponderEliminarElmiro Barbeiro Barbeiro escreveu:Excelente amigo!Parabéns.
ResponderEliminarGostei da cantiga tocada pelo Sr. Fernandes e gostei do que a Dra. Júlia escreveu. Gosto sempre de aprender.
ResponderEliminarParabéns ao gaiteiro,parabénsl à Júlia e parabéns ao Leonel por se aperceber da importância do depoimento e o partilhar connosco.
ResponderEliminarGostei muito. Ainda me lembro da minha avó fazer sabão com borras de azeite e qualquer coisa que ia buscar ao senhor Vriato,
ResponderEliminarArmanda S..
Manuel Mourao escreveu:Capela,assiste a esta aula de gaita de foles ministrada pelo gaiteiro mor de Terras de Miranda!
ResponderEliminarViva Ireninha:
ResponderEliminarJá cá faz muita falta.
Um grande abraço
Júlia
E outro abraço para os comentadores e blogueiros.
ResponderEliminarJúlia Ribeiro