domingo, 24 de fevereiro de 2013

Zulmira morreu 11: A felicidade anda descalça,por Virgínia do Carmo


 Houve um tempo na vida de Zulmira, antes do cansaço último, daquele sopro de morte, [apagão definitivo das claridades], em que a mulher dentro de si soube conciliar a paz com o silêncio da alegria. Essa capacidade vinha-lhe, talvez, dos filhos. Dos seus olhos a pedirem essa sua paz. Nesse tempo Zulmira aprendera a viver por dentro das coisas verdadeiramente importantes: leite morno, arroz doce e fatias de bolo de laranja, o cheiro a refogado de ternura e dedicação. E deixara para lá da porta da sua casa tudo o que não lhe fazia falta: roupa apertada, julgamentos alheios, e sapatos.
Esta última opção provocava estranheza nas almas desocupadas dos outros, os que não importavam, os que gostavam de atirar à cara de Zulmira a sua sorte por ter um sapateiro em casa. Nessas ocasiões uma frase emergia das suas entranhas mais profundas para lhe subir através da pele e se lhe alojar nos olhos, que corriam a fixar-se num ponto imperceptível do tempo, naquele segundo fora de todos os relógios, como se em busca de um infinito inacessível: A felicidade anda descalça. Zulmira não sabia colocar esta ideia de outra forma. Era como um poema de um verso só a bailar-lhe no pensamento: A felicidade anda descalça.
Por vezes Zulmira floreava o seu poema, e acrescentava à felicidade a ausência de rímel nos olhos. Ou de tinta no cabelo. Mas o verso continuava ainda assim único. Porque só ele fazia sentido quando lhe falavam da sua sorte. Como se estar descalça já implicasse estar desprovida de todos os outros artifícios que a humanidade foi inventando para complicar a vida.
Se a felicidade usasse sapatos, não haveria forma de sentir as cócegas das flores sob as plantas dos pés. Nem a textura das suas pétalas, nem o viço da  sua seiva. E que dizer da neve branca, do arrepio matinal da relva húmida, ou da areia quente das praias deste mundo?
E foi por isso que Zulmira deixou de usar sapatos. Só os calçava quando a saída à rua impunha que o fizesse. Em casa Zulmira recusava tudo o que pudesse incomodar o contacto dos seus pés com o chão. O chão que era a sua verdade, o seu jardim de doces flores e fresca relva. Da fria neve e das areias quentes. O chão onde os muros começavam sem que nunca se tocassem.
Zulmira já sabia o que era ter a alma dos sapatos partida, já sabia o que era usar sapatos apertados e desajustados, e se por algum tempo podia descansar dos apertos e dar passos mais livres, aproveitava.
Em pouco tempo Zulmira contagiara os filhos com aquela sensação de contacto com a simplicidade das coisas através da libertação dos pés. E a determinada altura, andavam todos descalços lá em casa. Todos, menos o pai dos filhos de Zulmira, Joaquim, o sapateiro. 



1 comentário:

  1. Que maravilha de texto! Faltam-me as palavras para dizer tudo o que senti ao lê-lo a primeira vez. Sim, porque já o li algumas vezes e sempre com renovado espanto.

    Um grande abraço
    Júlia

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