Houve um tempo na vida de Zulmira, antes do cansaço último,
daquele sopro de morte, [apagão definitivo das claridades], em que a mulher
dentro de si soube conciliar a paz com o silêncio da alegria. Essa capacidade
vinha-lhe, talvez, dos filhos. Dos seus olhos a pedirem essa sua paz. Nesse
tempo Zulmira aprendera a viver por dentro das coisas verdadeiramente
importantes: leite morno, arroz doce e fatias de bolo de laranja, o cheiro a
refogado de ternura e dedicação. E deixara para lá da porta da sua casa tudo o
que não lhe fazia falta: roupa apertada, julgamentos alheios, e sapatos.
Esta última opção provocava estranheza nas almas desocupadas
dos outros, os que não importavam, os que gostavam de atirar à cara de Zulmira
a sua sorte por ter um sapateiro em casa. Nessas ocasiões uma frase emergia das
suas entranhas mais profundas para lhe subir através da pele e se lhe alojar
nos olhos, que corriam a fixar-se num ponto imperceptível do tempo, naquele
segundo fora de todos os relógios, como se em busca de um infinito
inacessível: A felicidade anda descalça. Zulmira não sabia colocar esta
ideia de outra forma. Era como um poema de um verso só a bailar-lhe no
pensamento: A felicidade anda descalça.
Por vezes Zulmira floreava o seu poema, e acrescentava à
felicidade a ausência de rímel nos olhos. Ou de tinta no cabelo. Mas o verso
continuava ainda assim único. Porque só ele fazia sentido quando lhe falavam da
sua sorte. Como se estar descalça já implicasse estar desprovida de todos os
outros artifícios que a humanidade foi inventando para complicar a vida.
Se a felicidade usasse sapatos, não haveria forma de sentir
as cócegas das flores sob as plantas dos pés. Nem a textura das suas pétalas,
nem o viço da sua seiva. E que dizer da neve branca, do arrepio matinal
da relva húmida, ou da areia quente das praias deste mundo?
E foi por isso que Zulmira deixou de usar sapatos. Só os
calçava quando a saída à rua impunha que o fizesse. Em casa Zulmira recusava
tudo o que pudesse incomodar o contacto dos seus pés com o chão. O chão que era
a sua verdade, o seu jardim de doces flores e fresca relva. Da fria neve e das
areias quentes. O chão onde os muros começavam sem que nunca se tocassem.
Zulmira já sabia o que era ter a alma dos sapatos partida,
já sabia o que era usar sapatos apertados e desajustados, e se por algum
tempo podia descansar dos apertos e dar passos mais livres, aproveitava.
Em pouco tempo Zulmira contagiara os filhos com aquela
sensação de contacto com a simplicidade das coisas através da libertação dos
pés. E a determinada altura, andavam todos descalços lá em casa. Todos, menos o
pai dos filhos de Zulmira, Joaquim, o sapateiro.
Que maravilha de texto! Faltam-me as palavras para dizer tudo o que senti ao lê-lo a primeira vez. Sim, porque já o li algumas vezes e sempre com renovado espanto.
ResponderEliminarUm grande abraço
Júlia