terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

ComO se As NuVenS AmarelAs, por Raquel Serejo Martins

Da infância, lembro-me de ti a jogar à bola.
A única menina entre os rapazes, a mais veloz, os cabelos loiros como uma nuvem, como se as nuvens amarelas.


Depois: “A menina já não tem idade para jogar à bola.”
“Mas somos todos da mesma idade!”
“Mas a menina é menina!”
“Mas…”
“Mas nada! Não discuta.”

Na escola primária, lembro-me de ti a afiar os lápis.
Parecias um jogador de bilhar, arrumavas os lápis em linha, como se um exército, os gumes afiadíssimos, como se dardos.
Depois, na escola secundária, passavas as aulas de olhos postos no mundo do outro lado da janela, uma árvore caquéctica e mirrada, uma estrada engarrafada de trânsito, entediante, e tu atenta ao tédio; passavas os intervalos a desenhar e a fumar, um lápis na mão direita, um cigarro na mão esquerda.
Teria dado um rim para ver os teus cadernos, saber o que desenhavas.
Não me matava, não penses, as pessoas vivem perfeitamente com apenas um rim, mas terias ficado impressionada, não terias?
Desenhavas como se estivesses a revolver uma ferida, movimentos curtos, a ponta do lápis no mesmo ponto do papel, como se no lugar exacto da dor.
O teu olhar sereno.
Não eram tuas as feridas.
Seriam as tuas feridas?
A menina mais bonita da turma, alheia e indiferente a tudo, ao resto da turma, aos professores, até os professores suspiravam, e o que mais suspirava, o senhor Aníbal, o contínuo, devia ter idade para ser teu avô.
Um dia ouvi-o dizer a si mesmo que o bonito era para se ver, pareceu-me bonito, o elogio, demorei muito tempo a perceber que não era bonito.
Tu, apenas indiferente, indiferente ao chão que pisavas, às nuvens no céu, ao vento que te revolvia o cabelo, como se as nuvens amarelas, indiferente.
Ou não.
O que é que eu sei, se nunca vi os teus desenhos.
Um dia apresentaram-nos. Luís: a Júlia.
Foi como se tivessem apresentado o pânico à indiferença.
Depois, desapareceste da minha vida mais de vinte anos, todavia fui sabendo o que te foi acontecendo.
Sabendo, acontecendo, lembra letra de samba, fraquinha, fraquinha!
E, corrige-me se estiver enganado.
Foste para Belas Artes. Uma universidade conceituada no estrangeiro.
Imagino que passavas as aulas a desenhar e os intervalos a desenhar e a fumar, um lápis na mão direita, um cigarro na mão esquerda.
Depois casaste, suponho que com o tipo perfeito para te fazer infeliz.
Qualquer um seria perfeito para te fazer infeliz.
Tiveste uma filha.
Não parecias ter sido feita para ser mãe.
És uma boa mãe. Não sei porque é que isto me surpreende, mas surpreende.
Assim, a vida foi acontecendo, a intervalos, enquanto não estavas a pintar, um lápis, um pincel, na mão direita, um cigarro na mão esquerda e música para abafar o mundo, quase exclusivamente Mozart, sonatas, que faziam alegria dentro de ti.
Os quadros, as encomendas, de Singapura a Los Angeles, os museus, italianos, franceses, holandeses, as leiloeiras inglesas, nova-iorquinas, as revistas da especialidade, os jornais, as televisões, a falar de ti.
Tu sem falar, nunca vi uma entrevista, um comentário que fosse, teu, que me parecesse teu.
Apenas fotografias.
Um café em Montmartre, um capuccino em Trastevere, um chá Notting Hill, um chá tomado em pé dentro do Grand Bazaar, um passeio a pé por Tiegarten, uma cerveja no Raval, um copo de vinho em Alfama, um jantar Soho, um cigarro à porta de uma galeria em La boca, tu a sair do metro em Estocolmo, Budapeste, Atenas, Varsóvia, Viena, Zagrebe, a sair de um táxi em Pequim, Lima, Santiago, Montevidéu, Cairo, Damasco, Goa, Tel Aviv.
Tenho uma caixa de sapatos cheia de ti.
Como se a tua vida coubesse numa caixa de sapatos.
Como se o que eu sinto por ti coubesse numa caixa de sapatos.
E hoje de manhã, depois de uma noite mal dormida, de uma discussão doméstica tardia, de um sono precário no sofá, de me ter cortado em dois sítios ao desfazer a barba, o que há anos não me acontecia, as minhas mãos despassaradas, irreconhecíveis, vesti a bata, comecei a trabalhar e tu eras a última pessoa que esperava encontrar.
Mas eras tu ou era o teu copo, os pulsos cortados, feridas feias de ver, deitada numa maca que voava pela urgência adentro.
Acordaste há mais de uma hora, há mais de uma hora que não tiras os olhos da janela, e eu há mais de seis horas que não tiro os meus olhos de ti.
Na janela a copa de uma árvore, não caquéctica e mirrada, frondosa, verde, sonora, andorinhas e pardais que não se ouvem deste lado da janela.
Fui eu que escolhi a cama, por causa da árvore na janela.
Fui eu que te cosi os pulsos.
Sou eu que estou atrás da porta, há mais de uma hora à espera que olhes para a porta, para o meu sorriso baço atrás do vidro da porta, uma porta que parece janela.
Eu a morrer de vontade de te perguntar: lembras-te de mim? 
Porque há tantas maneiras de morrer.

IN :http://www.blogclubedeleitores.com/2013/02/como-se-as-nuvens-amarelas.html?spref=fb 

3 comentários:

  1. bELÍSSIMO TEXTO.
    Eu até tenho receio de escrever alguma coisa.
    Não digo nada, nada! Perante esta perfeição, eu, eu não digo nada!
    Este sim! Gostei!
    A.A.

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  2. Raquel Serejo Martins nasceu em Trás-os-Montes (Vilarandelo, Valpaços). É licenciada em Economia, vive em Lisboa. Colaborou com a Rádio Universitária de Coimbra e e com o Diário de Coimbra. Tem dois gatos, o Xana e o Ícaro, pratica ioga, e tenta escrever poemas, fados e outras canções. Comove-se com as palavras de Lobo Antunes, Joaquín Sabina e Chico Buarque, com as pinceladas de Paula Rego, e com o cheiro a terra molhada em entardeceres de verão.

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  3. A Raquel é uma escritora!
    Não precisa de adjectivos nem eu me atrevo a aplicá-los.

    Vou apenas deixar-lhe aqui um abraço imenso.
    Julia

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