O título deste testemunho é brincado, já se vê. Inspira-se num texto de uma comicidade delirante, interpretado há umas décadas pelo grande Raul Solnado. E não se aplica de todo ao que tenho para dizer ― a menos que por ‘guerra’ se entenda o desconhecido e o desproporcionado às minhas forças e capacidades. Porque, de resto, foram três anos mais ou menos pacíficos os que passei em Torre de Moncorvo, dividido entre o trabalho, as pescarias na Ribeira da Vilariça e as tertúlias do Café do Sr. Basílio (não sei se tinha outro chamadoiro o Café).
Releve-me pois o Leitor a impropriedade do título.
- Quando,
aos 30 anos de idade, fiz o Exame de Estado na Escola Comercial Oliveira
Martins, no Porto, fiquei na expectativa de poder concorrer a um lugar de
professor efectivo, mal se ajeitasse ocasião, e estava longe de pensar
que, pouco tempo depois, receberia um convite para dirigir a Escola
Industrial de Torre de Moncorvo, com a Escola Preparatória Visconde de
Vila Maior a reboque. Fiquei uns momentos, como se costuma dizer, como o tolo
no meio da ponte: sem saber o que fazer. Mas logo depois, na alegre
inconsciência e arreganho dos 30 anos, respondi que sim. E a minha vida
deu uma reviravolta ― a primeira de várias outras que tem dado depois
disso e continua a dar.
Director pois, com 30 anos apenas. Não exigirá muita imaginação ao Leitor sensato adivinhar que me meti em sarilhos para os quais não tinha qualquer preparação nem experiência. Mas asseguro-lhe, Leitor, que fiz tudo para superar as lacunas originais e creio ter levado lá o calhau ― modo de dizer, não ter feito totalmente figura de urso. Tive aliados, bem entendido. Por um lado, a relativa pequenez das escolas a dirigir (para pequena nau, pequena tormenta, como se sabe). Por outro lado, o encontrar já feita uma equipa de funcionários de grande qualidade humana e profissional, a começar pelo Chefe de Secretaria, Sr. João Mário Ferreira Leandro, de uma competência notável, que me serviu de pára-raios em mais de uma situação. A eles me amparei, e também a alguns professores que vinham já do anterior e constituíam um corpo docente em quem podia confiar. Depois, a facilidade de que me prevaleço de conseguir uma relação afectiva com toda a gente (descontada aquela que não quer relações com ninguém) fez o resto. Creio ter dirigido a barca com equilíbrio e bom senso, tirante alguns sobressaltos pelo meio de que não vale a pena falar, para não remexer em feridas que já sararam há muito.
Os acontecimentos de 25 Abril de 1974, porém, iriam pôr termo ao meu directorado. Vinha a caminho a chamada gestão democrática, que varreria para sempre (para sempre?) das escolas a gestão autocrática, mesmo quando esta fosse ― e julgo que era o caso ― o mais democrática que podia ser naquele tempo. (Lembro que eu devia ser o único director do país que assinava o jornal República e a revista Seara Nova, na época os periódicos mais acirrados contra o jugo do Estado Novo.) Como entretanto tinha concorrido a professor efectivo em Vila Real, e obtido provimento, não me restava mais do que despedir-me de Moncorvo e rumar ao meu novo destino. Foi uma segunda reviravolta. - Não me queixo. Lei é lei, democracia é democracia e (como dizia o outro) o pior sistema político com excepção de todos os outros. Mas dá-me algum conforto pensar que a minha acção como director mereceu algum apreço, como provarei em seguida.
Em 6 de Maio de 1974, começavam a rugis as turbulências do PREC, circulou na
escola uma convocatória policopiada (de que guardo ciosamente um exemplar) com
o seguinte texto:
Amigo e Camarada
Pelo sacrifício que este convite te venha a causar te pedimos desculpa e, antecipadamente, agradecemos a tua presença.
Um grupo de professores, funcionários administrativos e auxiliares.
O assunto que interessava à Escola e portanto aos Amigos e Camaradas (apelativo que nessa altura se propagou como fogo em palheiro) era, com algum orgulho o digo, uma moção de apoio à minha permanência no lugar.
Também guardo amorosamente fotocópia de um impresso de telegrama, manuscrito pelo saudoso Padre Joaquim Manuel Rebelo, professor e etnógrafo com tanto de modesto como de sabedor. Esse telegrama era a emanação visível do decidido na tal reunião de 6 de Maio. Era dirigido ao Presidente da Junta de salvação Nacional e rezava assim:
Corpo docente funcionários administrativos auxiliares Escola Secundária Escola Preparatória de Moncorvo após reunião deliberaram saudar apoiar Movimento Forças Armadas pedir continue frente direcção destes estabelecimentos de ensino seu actual director Doutor António Pires Cabral ao qual unanimidade dão seu voto confiança.
Custou 37$50 o envio deste telegrama! Vêm-me lágrimas de gratidão aos olhos quando penso que alguém pôs de seu bolso a quantia de 37$50 (que na altura já era qualquer coisa) para que a Junta de Salvação Nacional me mantivesse em funções.
Claro que a petição deu em nada. Estava em marcha uma nova visão da sociedade e da vida pública que ingénuos telegramas como este não podiam deter. Fui recebendo do ministério ordens de emalar a trouxa e preparando a retirada para Vila Real. Mas ainda levei o ano lectivo de 1973/74 a termo.
Uma última prova de estima de professores e funcionários foi-me dada num jantar de homenagem, realizado a 29 de Outubro de 1974, de que também guardo com enlevo o menu. Comeu-se caldo verde, arroz à valenciana e cabrito assado. Lembro-me de que, na hora de agradecer, por pouco não espremi pessoalmente uma lágrima ― mas vi lágrimas nalguns rostos. Foi o meu último acto público. Logo no princípio de Novembro mudei-me com armas, bagagens e família para Vila Real, onde a minha vida tem decorrido desde então.
Dizer adeus a Moncorvo não foi fácil, nem para mim, nem para minha Mulher, nem para meus Filhos (dois, na altura). Já tínhamos, todos nós, deitado raízes no chão criançoso dessa terra acolhedora. Pela minha parte, vivi ali três anos da minha vida que me tinham trazido experiências novas e sobretudo novos amigos. Para além dos professores e funcionários, contava como amigos todos os que frequentavam o anexo do Café do Sr. Basílio: o Eng.º Monteiro de Barros, o Dr. António Menezes Falcão, o Dr. Manuel Joaquim Ribeiro, os Drs. Horácio Simões e Camilo Sobrinho, o Sr. António Alberto Campos, o Sr. Adriano Fernandes, o Sr. Amadeu ‘Cibinho’ e mais uns tantos cujo nome se me baralhou nas encruzilhadas da memória ou se me varreu de todo. Creio que muita dessa gente já terá morrido. E, se acaso estão em lugar onde possam ler este testemunho, lembrarão decerto que procurei ser sempre leal à sua amizade e que é com comovida saudade que os evoco aqui, mesmo aqueles que não nomeio.
É esta a história da minha ida à ‘guerra’.
A.M. Pires Cabral
Revista do Colégio Campos Monteiro
Âncora Editora
Grande mestre para uma fornada de jovens professores provisórios que então preenchíamos os quadros de ambas as escolas. Não me recordo de um único incidente surgido nem entre professores, ou funcionários e mesmo alunos! As reuniões com ele eram mesmo produtivas, no que respeitava ao planeamento da actividade escolar e actitude pedagógica. E não era dele a colecção de discos do Zeca Afonso que em actividades extra-escolares e fora de horas lectivas se ouviam na escola?! Por outro lado recordo a o seu trato afável e cordato e a forma como se dava com todas as pessoas, pobres ou ricas, doutores ou plebeus. E creio que foi nesses tempos de Moncorvo que P. Cabral publicou o seu primeiro livro - "Algures a Nordeste" (poesia). E também na literatura Moncorvense P. Cabral marcou presença com a publicação de "O Diário de C". J. Andrade
ResponderEliminarLindas meninas,algumas avós.Vamos lá identificar todas elas.Começo eu;não conheço ninguém a não ser o professor(vem muito nos jornais )
ResponderEliminarO Dr. Pires de Cabral, foi substituir o Director da Escola Industrial e Comercial de Moncorvo,temido por todos os alunos na altura. Só para dar um exemplo uma vez ao tocar a sineta para o inicio de uma aula e indo a passo mais acelarado a subir as escadas de acesso ao pisos superior e ele vindo a descer, pregou uma bofetada num aluno, deixando-o a sangrar abundantemente pelo nariz. Outros exemplos poderia referir mas não interessam para o caso.
ResponderEliminarQuanto ao Dr. Pires de Cabral quando chegou a Moncorvo foi um anjo que ali caiu, pois com o seu grande humanismo, sabedoria e inteligência tornou aquela Escola muito melhor.
Mas o dr. Pires de Cabral com o qual me cruzo por vezes em V. real continua o mesmo de sempre, um ser humano excepcional,não tendo palavras para o poder descrever.
"A minha ida à guerra"(brincado,claro!)é muito agradável de se ler e, tal como o autor nos diz, é, de verdade,algo de brincadeira; muito genuíno, muito puro! e assim naturlmente, vai-nos mostrando momentos que lhe foram muito caros! é um texto que se lê com muito gosto,vai-se motivando, como as cerejas!
ResponderEliminarCom amizade,
A.Andrés
Dr. Pires Cabral é um Senhor e foi um Senhor. Estudei na escola que ele com tanta sabedoria e humanismo dirigiu. A Ele, ao senhor Leandro e sua santa esposa, e ao sacrifício que os meus pais fizeram para eu poder estudar, devo aquilo que sou... Eles foram um bocado o meu espelho. E na minha vida profissional tive sempre em conta o modelo de professor e director que foi para mim Pires Cabral. O senhor Leandro e a d Maria José também tinham um coração muito grande, a sua bondade e dedicação ajudaram em muito, pois naquele tempo nao havia a fartura que há hoje. Era tudo bem contadinho.. Mas eles , sempre, sempre resolviam e davam as soluções. Os meus pais, com honestidade, humildade e nobreza incutiram sempre valores de respeito e trabalho. Obriga, escola, dr Cabral, sr. Leandro, d Maria José e meus queridos pais.
ResponderEliminarAna Diogo :
ResponderEliminarMt obg. por este texto admirável, Lelo Demoncorvo! Uma 'guerra' ganha com honra e saber.
"A loba e o Rouxinol"um livro que gostei de ler.
ResponderEliminarCom admiração
Irene Garcia
E eu estive nessa bonita guerra. Fui aluna do doutor Cabral e vivi os meus mais bonitos anos de juventude em Moncorvo a estudar na escola que tao bem soube dirigir esse nobre Senhor.
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