No dia do funeral de Zulmira choveram pedras do céu. Literalmente.
Pedras diferentes das que se encrostaram na liquidez turva das lágrimas dos
seus filhos. Pedras de verdade. Sólidos agregados de partículas. Fragmentos
petrificados, soltos do alinhamento correctivo da natureza.
Era Domingo. O primeiro Domingo de Novembro, provavelmente o
mês mais triste do calendário. Já todas as folhas haviam perecido. Já todas as
idades se haviam fundido no húmus indiferenciado da terra para onde Zulmira era
levada. O padre rezara na missa palavras [mal] lavadas na água inquinada da pia
pousada há muito no adro da memória. Alheio ao corpo dobrado de Zulmira nas
escadas de esquinas vivas onde tantas vezes ela imaginou os seus pulsos
cortados, invocara a culpa para que a ideia de inocência não viesse. Sobre as
cabeças de todos os presentes derramara bênçãos que não lhe pertencia
distribuir. Que não era digno de dizer. Todos haviam inclinado o rosto para o
chão que Zulmira tanto amava. De pés descalços. E o chão tremera de saudade. E
de vergonha.
O cortejo fúnebre seguia lento e anoitecido de luto. Todo o
chão recebia os olhos dos estranhos a Zulmira e estremecia de dor. De mãos
dadas, os seus três filhos engoliam os passos. E aquela melancolia de não entenderem,
de não aceitarem. E num intervalo indistinto entre dois segundos fugazes o céu
abriu-se e caiu estilhaçado. Com a violência redentora de todas as coisas
celestes vieram do alto enormes glóbulos de gelo que atingiram
indiscriminadamente pessoas e coisas. Houve gritos e ténues fios de sangue.
Houve pânico por dentro de tudo o que seguia atrás do corpo morto de Zulmira. O
padre foi atingido por uma das maiores pedras e desmaiou. Dizem que já no
hospital terá delirado e dito o nome de Zulmira várias vezes por entre gemidos
de aflição.
O diácono António foi chamado para que enterro se
consumasse. À chegada ao cemitério eram poucos os que sobravam da
tempestade. O céu fizera a justa triagem
dos amigos de Zulmira e decidira quem devia despedir-se dela. Por momentos o
sol rompeu a escuridão e repôs a paz certa nas mãos unidas das três crianças
encharcadas de tristeza. Zulmira desceu à terra e houve gritos de novo. E outros
ténues [invisíveis] fios de sangue. E um eco de dor a vestir de negro as pedras
que haviam caído do céu. As maiores pedras caídas do céu de que há memória na
terra de Zulmira.
Virgínia do Carmo
Depois de Pires Cabral a Poética tem que entrar na prosa/poesia.Editar a Zulmira é obrigatório.Eu,Eduardo L.Gomes compro dez exemplares.Um para mim e os outros para oferecer no Natal.Posso já fazer a encomenda on line?
ResponderEliminarSou muito grata, Eduardo, e a Zulmira há-de ser um livro, um dia... mas penso que terá ainda de "morrer" muitas vezes :) Não sei se terei tempo até ao Natal de escrever a sua morte inteira. Um grande bem-haja!
EliminarE os três filhos?Um tira o curso de enfermagem e vai para Inglaterra,outro escreve-se na J do PSD e o outro morre com uma overdose no Casal Ventoso depois de uma experiência frustrada como travesti no Bairro Alto.Será assim? Aguardamos os novos capítulos.O Regresso do velho folhetim dos jornais do séc IXX e princípios de XX é uma experiência notável:o folhetim online.Bem-haja minha senhora.E escreve tão bem!
ResponderEliminarLeitor
Boa noite, Virginia:
ResponderEliminarUm dos textos mais belos que já li.
Obrigada. Também espero o livro "Zulmira".
Júlia