quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Mário Correia ,Nuno Pacheco,Zeca Afonso ,Rogério Rodrigues e Teresa Torga

Lembram-se, certamente, de ouvir Chico Buarque cantar que "a dor da gente não sai no jornal". A verdade é que às vezes sai, ainda que dissimulada. E até inspira canções. Esta, de Chico, que aliás não é dele, pode servir de exemplo. Chama-se Notícia de jornal, porque foi essa a sua fonte: um jornal sensacionalista brasileiro publicara a história de uma mulher que, por desgosto de amor, tentara suicidar-se (felizmente sem êxito). O mais curioso é que os autores da canção foram dois jornalistas (também músicos), Luís Reis (1926-1980) e Haroldo Barbosa (1915-1979). Escreveram-na assim: ""Tentou contra a existência num humilde barracão/ Joana de tal, por causa de um tal João/ Depois de medicada, retirou-se pro seu lar"/ Aí a notícia carece de exactidão/ O lar não mais existe, ninguém volta ao que acabou/ Joana é mais uma mulata triste que errou/ Errou na dose, errou no amor, Joana errou de João/ Ninguém notou, ninguém morou na dor que era o seu mal/ A dor da gente não sai no jornal".
 Sem amores nem suicídios, mas com um toque trágico, é a história de uma outra notícia (esta portuguesa) transformada em canção: Teresa Torga. Escreveu-a José Afonso, depois de ler uma crónica do jornalista Rogério Rodrigues publicada a 4 de Maio de 1975 no Diário de Lisboa (DL). Uma mulher decidira fazer strip-tease no cruzamento das avenidas Miguel Bombarda e 5 de Outubro, em Lisboa. E enquanto alguns transeuntes se dirigiam a ela no intuito de a cobrir dos olhares mais curiosos, um fotógrafo aproveitou-se da confusão para tentar fotografá-la. A história é agora recordada no livro As Mulheres Cantadas por José Afonso, da autoria de Mário Correia e editado pela Sons da Terra neste Agosto em que se completaram (no dia 2) 84 anos do nascimento do músico e compositor. 

"Os populares - dizia a crónica -, indignados com o que consideraram ser uma "baixeza moral", investem sobre ele, insultam-no, empurram-no, agridem-no e só a intervenção do proprietário de uma drogaria vizinha impede que não lhe partam a máquina. É obrigado a entregar o rolo, que é destruído no próprio local onde a acção decorre." Feita canção, ficou assim a história: "No centro da Avenida/ No cruzamento da rua/ Às quatro em ponto perdida/ Dançava uma mulher nua.// A gente que via a cena/ Correu para junto dela/ No intuito de vesti-la/ Mas surge António Capela.// Que aproveitando a barbuda/ Só pensa em fotografá-la/ Mulher na democracia/ Não é biombo de sala." A canção não acaba aqui, tem mais três quadras (já agora, ouçam-na), mas, a par da enorme arte de José Afonso a construir canções, muita gente só conhece de Teresa Torga o nome. E a canção.
 Pois o livro de Mário Correia faz-lhe um breve retrato, juntando dados antigos (que Rogério Rodrigues já incluíra na sua crónica) a outros depois descobertos. Maria Teresa Gomes Baptista, que escolheu Teresa Torga para nome artístico devido à sua admiração pelo escritor Miguel Torga, tinha, à data do episódio, 41 anos. Divorciada, residente na Rua Elias Garcia (bem perto do local onde se despiu), estaria a tratar-se no Hospital Júlio de Matos. "Para sobreviver, alugava três dos quartos da sua casa e o seu último emprego tinha sido numa discoteca de Benfica a pôr discos", escreve Mário Correia. Foi corista, actriz de revista, estreando-se na revista Lisboa é Coisa Boa (1952) e, no Brasil, de onde voltou em 1963 devido à morte da sua mãe, foi estrela na revista Tem Candango no Soçaite. De volta, actuou na revista A Ponte a Pé e cantou fado em boites. Depois sobreveio-lhe uma depressão.
 Alan Romero, pesquisador musical e colaborador da Associação José Afonso, descobriu um disco com duas cantigas que ela gravou no Brasil, lançado pela Chantecler. E um blogue, Rua dos Dias Que Voam, reproduziu uma entrevista que lhe fizeram em 1966 para a revista Plateia (com duas fotos) e a crónica de Rogério Rodrigues. Que, no seu blogue Torre de Moncorvo, ao ver a história de Teresa Torga citada no livro Os Dias Loucos do PREC, de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira (ed. PÚBLICO e Expresso, 2009), comentou que nesse dia era o único jornalista presente no local porque (responsável pela Educação no DL) ia ao Ministério da Educação "buscar notícias". Não trouxe notícias, trouxe uma crónica. E a semente de uma canção que havia de ser célebre. As voltas que este mundo é capaz de dar...
https://www.facebook.com/mario.correia.332?fref=ts
Nota do editor do blogue:Os textos em destaque são da nossa responsabilidade.

3 comentários:

  1. "Quarta.feira, 7 Maio 1975 'Quem se despiu na via pública, ontem, às 4 da tarde?'
    (...)
    "No DL, R.R. (Rogério Rodrigues) conta a história de uma mulher " de que não se conhecia o nome" , que ontem, às quatro da tarde fazia streap-tease enquanto dançava, ao centro do cruzamento da Avenida Miguel Bombarda com a Avenida 5 de Outubro.
    "Visivelmente surpreendidos, alguns espectadores da cena, invulgar em ruas de Lisboa, dirigiram-se para a mulher no intento de a proteger das vistas de quem passava e de quem parava, persuadi-la a vestir-se e abandonar o local. No meio da confusão, surge o repórter António Capela, que começa a disparar. Os populares, indignados com o que consideram 'uma baixeza moral', investem sobre ele, insultam-no, empurram-no, agridem-no e só a intervenção do proprietário da drogaria vizinha impede que não lhe partam a máquina (...) Entretanto a mulher tinha sido levada para o limiar de um prédio com porteita à porta. Já vestida, olhava apática para as pessoas que a rodeavam. Dizem-me que se chamava Maria Teresa.'Não sou Maria. Não sou Teresa. Tenho muitos nomes'.Tinha os lábios encortiçados e recusava o copo de água que lhe ofereciam".
    "Quem se despiu na via pública, ontem, às 4 da tarde?", interroga-se o jornalista, que passa a contar o percurso de vida, entretanto averiguado, de uma mulher de 41 anos, divorciada, sucessivamente actriz de revista, emigrante no Brasil, cantora de fado e que agora, no intervalo de tratamento no Júlio de Matos, "mudava discos no pick-up" de uma boite de Benfica.
    Usava o nome de Teresa Torga " porque há um escritor que se chama assim" e ela gostava muito de ler, conta uma vizinha. A última vez que o repórter a viu seguia ela num carro da polícia para a esquadra do Matadouro.
    Zeca Afonso lê a crónica, magnífica, põe-lhe notas e voz, e imortaliza-a."

    No centro da Avenida
    No cruzamento da rua
    Às quatro em ponto perdida
    Dançava uma mulher nua

    (...) Dizem que se chama Teresa
    Seu nome é Teresa Torga
    Muda o pick-up em Benfica
    Atura a malta da borga

    Aluga quartos de casa
    Mas já foi primeira estrela
    Agora é modelo à força
    Que o diga António Capela

    T'resa Torga, T'resa Torga
    Vencida numa fornalha
    Não há bandeira sem luta
    Não há luta sem batalha.

    José Afonso, Teresa Torga
    in álbum "Com as minhas tamanquinhas", 1976
    NB - Não consegui encontrar no youtube esta canção cantada pelo Zeca Afonso. Fica aqui esta outra versão.
    http://weber.blogs.sapo.pt/514090.html

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  2. Para ouvir:
    http://www.youtube.com/watch?v=dadXXdbyd0Q

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  3. Alguém sabe o que foi feito dessa mulher?

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