O pai dos filhos de Zulmira é sapateiro por herança. Aprendeu com o seu pai, que aprendera com o avô, a consertar esses indispensáveis acessórios com que caminhamos pela vida. Como se só de chão se fizessem os passos. De chão e de pés. O marido de Zulmira percebia tudo o que havia para perceber de solas e de saltos. Dizia o povo que era um bom sapateiro.
Foi nessa sua condição de cuidador dos passos das gentes da aldeia que Zulmira o conheceu. Um homem alto e robusto. De mãos firmes e fortes. A zelar pelo bom caminhar dos outros.
Como a mãe sempre cuidara do seu. Levando ela própria os sapatos ao sapateiro quando tal se assumia como inadiável. Mas agora que a mãe se levara, de pés e passos, do seu caminho, Zulmira tinha de cuidar do seu próprio andar.
Rumou à oficina. Lá chegada, entregou-lhe os sapatos velhos.
Precisam de umas solas novas.
Joaquim baixou os olhos, desconfiado. A questionar a história daqueles sapatos de atacadores gastos. A imaginar idas e vindas presas nos mil nós que os gastaram. Mediu a proporção de medo na espera de Zulmira, na estranheza do cheiro aceso a graxa e a cabedal. Discretamente. Pressentiu o seu jeito de presa fácil na evidência da solidão que trazia agarrada aos olhos. Reconheceu-a. Já a vira passar ao longe. Já ouvira falar dela. Zulmira, a zorra. Conhecera a mãe. Ouvira falar da sua morte. Observou de novo os sapatos. Dobrou um deles como se procurasse o limite da sua flexibilidade para determinar a sua idade. E depois veio-lhe a voz.
Este sapato tem a alma partida.
Zulmira recolheu-se por segundos ao espanto da descoberta de que os sapatos tinham alma.
E como se conserta a alma?
E cruzando sentidos, Joaquim confundiu vocábulos com significados, propositadamente.
Precisa de uma alma nova.
Zulmira acreditou naquele momento que o melhor seria dar uma alma nova ao seu sapato. Ainda que não acreditasse na substituição de algo tão essencial.
E Joaquim preparava-se para forçar a realidade de todas as coisas
[da alma que todas as coisas têm]
rumo a um sentido muito seu. E reconstruiu o sapato de Zulmira, como se assim lhe reconstruísse a vida.
Mas Zulmira nunca chegaria a habituar-se à dureza da nova alma do seu sapato. Porque os pés de Zulmira já se haviam afeito ao jeito enviesado com que, rasos, beijavam o chão.
Zulmira acabou por perceber que não deveria ter trocado de alma. Que a primeira verdade das coisas é sempre maior. Mesmo partida, Zulmira dava tudo para ter de volta a curvatura viciada que lhe enformava os passos quando tudo lhe era tão verdadeiro. Mas por essa altura já o sapateiro Joaquim cobrara o seu preço pelo (des)conserto da alma de todas as coisas de Zulmira.
Virgínia do Carmo
ZULMIRA - I,II,III,IV,V em :
http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2012/02/zulmira-morreu-cronicas-da.html
Não quero a Zulmira num caixão ,quero a Zulmira em livro em todas as livrarias do país.
ResponderEliminarBelíssimo o texto; um espanto a metáfora !
ResponderEliminarTambém eu quero a Zulmira em livro em todas as livrarias do país.
Um abraço
Júlia
Obrigada! Talvez um dia, nunca se sabe :)
ResponderEliminarUm abraço