«Tudo o que vem do povo interessa. O povo é o passado. O povo há-de ser
também o futuro…Tudo o que vem do povo interessa: costumes, crenças,
superstições, poesia, música – e até a sua própria culinária…»
Trindade
Coelho
COMIDA DO MATA-PORCO
As Sopas de Xis são um prato tradicional do
concelho de Mogadouro, que tem de ser, ou deve de ser comido no próprio dia da
matança do porco, devido ao ingrediente essencial deste delicioso manjar (o
sangue do reco). Neste verdadeiro baluarte do “Reino Maravilhoso” temos uma
cultura e uma gastronomia ancestral, genuína, a preservar e a divulgar. O povo
simples aprendeu a tirar o máximo proveito de alimentos simples, do que a terra
dá e a transformá-los em deliciosos pitéus. Conseguiu conviver bem com um clima
hostil, associando-se com os seus vizinhos,
numa festa de abundância alimentar e num clima de torna-jeira, de convívio franco
e aberto. Era uma agricultura de subsistência. Parafraseando alguém, «a
necessidade estimula o engenho» e o isolamento desta região permitiu, por um
lado salvar muito que é genuíno e por outro “fazer milagres” com o que se tem
na horta, na floresta (cogumelos, etc.) e o que uma cultura multimilenar
conseguiu transmitir aos familiares e vizinhos. É que a matança, ou mata-porco,
é muito mais do que “matar um porco”. É antes é um exemplo do verdadeiro e
autêntico convívio comunitário. É impossível compreender a gastronomia de uma
região, sem a enquadrar numa dieta de história alimentar dessa terra. Como muito
bem escreveu Alfredo Saramago:”As
matérias-primas da alimentação e os modos de cozinhar estão ligados ao modo de
vida de uma população, à sua economia, à sua ecologia”. E o porco foi
sempre, desde tempos imemoriais a principal base da alimentação das nossas
gentes. Não é por acaso que foi um dos primeiros animais a ser domesticado.
Criado com todo o “mimo”, o “reco”
era criado com as melhores viandas (antigamente com castanhas, folhas de olmo,
mais recentemente com batatas, farelos, nabiças, beldroegas, nabos, couves,
batatas, etc.).Quem não se lembra de entrar numa velha cozinha transmontana e
não ver a caldeira da vianda para os porcos, presa nas velhas correntes de
ferro na lareira, curiosamente (ou talvez não) chamadas “Lares”, onde se estava
a cozer permanentemente a comida para o reco? Será por acaso que, o povo desta
região “venera” desta maneira esta generosa carne? Acreditamos bem que não, uma
vez que do porco tudo se aproveita. E nisto, como no resto, a História é
Mestra. Podíamos ir até tempos muito mais recuados, mas quero lembrar que aqui
era a terra dos Zoelas, tribo pré-romana, pertencente ao “Convento Asturicense” onde “aparecem” muitos berrões esculpidos em
pedra. Para concluir esta introdução, e estaria aqui horas a falar convosco,
vou citar a palavra esclarecida do “Mestre” e amigo, Alfredo Saramago: “ A criação de porcos e o javali tinham muita
importância na sua alimentação, era de facto tanta que os Zoelas deificaram o
porco, sendo testemunhos seguros as múltiplas figuras zoomórficas (como os
citados berrões) que têm sido
encontradas no seu território. (…). No entanto, o principal culto era a do
porco, e as estátuas que têm aparecido no Planalto Mirandês (o Planalto
Mirandês é constituído pelos actuais concelhos de Mogadouro, Vimioso e Miranda
do Douro), disso são prova (como o
berrão de Vilar dos Sinos, concelho de Mogadouro). O porco era a carne mais consumida, o alimento de maior valor
nutritivo e, por isso, divinizado.”Muito mais haveria a dizer.
RECEITAS
Como
diz a sabedoria popular: «Cada terra tem
seu uso e cada roca seu fuso». Assim, sendo a sopa de Xis um prato tradicional do concelho de Mogadouro, há,
naturalmente, pequenas variantes de aldeia para aldeia e até pequenas
diferenças dentro da própria terra. Isto explica-se, na medida em que estas
receitas são transmitidas oralmente, de geração em geração e também pequenas
diferenças nos próprios recursos da terra (por exemplo, em algumas aldeias não
utilizavam a laranja, simplesmente porque não as havia). Estas receitas foram
recolhidas, na aldeia de Vale da Madre (fornecida pela D. Maria Cristina
Martins, com 72 anos de idade), Castelo Branco (fornecida pela D. Maria Zelina
Salgado Rodrigues), ambas aldeias do concelho de Mogadouro, e junto do Chef
Eliseu, do restaurante mogadourense “A Lareira”. Como escreveu o escritor mogadourense
Trindade Coelho «Tudo o que é bom é
simples».
Receita Tradicional
(Receita para quatro pessoas)
INGREDIENTES
2
litros de água de cozedura de carnes de porco e galinha; 200 gramas de sangue
cozido do porco; 400 gramas, de pão fatiado fino (pão caseiro de trigo); 100
gramas de maçã; 50 gramas de laranja; 20 azeitonas (sem caroço); 10 gramas de
alho picado; 1 decilitro de azeite fino para rijar as sopas (este azeite, de
preferência transmontano, deve estar muito quente para regar as supracitadas
sopas).
COMO CONFECCIONAR O PRATO
Para
uma travessa funda cortam-se fatias fininhas de pão de trigo (caseiro), não
muito mole (deve pelo menos ter dois dias). São amolecidas com água a ferver
onde foi cosida galinha e também várias carnes de porco, sal e alho, verificar
o gosto (ver se está salgado ou insonso, corrigir, se necessário). Tampam-se
bem e em estando amolecidas verifica-se se têm alguma água que deve ser
escorrida. O azeite (há quem deite pingo) deve estar bem quente para rijar o pão
fatiado, amolecido com a referida água da cozedura das carnes citadas. Quando
se deita esse azeite quente em cima do pão fatiado, ouve-se o som Xis ou
Tchis…que dá o nome a este típico prato (onomatopeia). Após esta tarefa,
recobrir o pão amolecido com o sangue do porco cozido, bem desfeito e
esmiuçado. Enfeita-se a travessa com maçã laminada, laranja cortada às rodelas
e azeitonas (de preferência sem caroço ou esquartilhadas). Bom apetite.
RECEITA “NOUVELLE CUISINE”
A gastronomia, mesmo a tradicional,
não deve estar refém ou presa no tempo. Assim o Chef Eliseu prepara este prato
em nouvele cuisine. A receita da nouvelle cuisine, é rigorosamente a
mesma da tradicional, só difere na sua apresentação.
Tanto a receita tradicional, como
a inovadora, pode ser acompanhadas de uma boa salada de merujas ou de azedas.
NOTAS- Também há quem lhe chame
sopa de x e outros (como
por exemplo o grande e saudoso amigo Alfredo Saramago, de sopa de tchis acentuando o tch tipicamente transmontano). Rijar- regionalismo transmontano
que significa”frigir, fritar”. Equartilhadas
– Dar quatro ou mais cortes nas azeitonas. Meruja – É uma planta
que nasce nos ribeiro (água corrente) e em Trás-os-Montes se usa na salada. Azeda – é outro vegetal que
nasce espontaneamente em Trás-os-Montes, nas paredes dos caminhos rurais e
serve para uma excelente salada.
Um belo texto pede fotos dos pratos citados.Gastrónomos de Mogadouro enviem umas fotos aos blogueiros que fazem este blog.Professor,não tem lá uma em casa?Mesmo assim fiquei com água na boca .A perdiz tem a melhor chitcha das aves por que o reco não voa!
ResponderEliminarNoitibó
Berrões,porco deificado, amigo cronista e os marranos (critãos novos)? marrã=porca.Merece um texto dos seus.
ResponderEliminarC.N.
Mais textos destes, Dr. Pimenta de Castro. Deixar cair no olvido é pecado mortal.
ResponderEliminarUm abraço
Júlia Barros
Olá Júlia. É sempre um prazer trocar impressões consigo. Estou em Viana do Castelo. Sei que tem cá família. Sim eu vou continuar a divulgar a culinária tradicional transmontana. Sempre ao dispor
EliminarLucilia Rebouta escreveu:
ResponderEliminarSopa de Xis,desconhecia.Texto muito,muito interessante.
Olá Lucília. Sim a sopa de xis é típica de Mogadouro (claro que há muitas receitas, pois como diz o povo: cada roca tem seu fuso e cada terra seu uso). Ainda bem que gostou. Depois das férias, estou em Viana do Castelo, vou continuar a divulgar a nossa culinária transmontana. Boas férias
EliminarAinda bem que gostou. É um prato típico de Mogadouro (que quase já ninguém faz) por isso é importante não deixar morrer o nosso património sobretudo este tão delicioso
EliminarMaria De Jesus Fernandes :
ResponderEliminarCá em Macedo de Cavaleiros, antigamente, chamavam-se sopas de "verde"!!! Quando comecei a trabalhar, fui colocada na aldeia de Castro Vicente, Mogadouro e as pessoas da casa onde estava hospedada um dia perguntaram-me se gostava de "sopas de xis"... Fiquei boquiaberta, pois não sabia do que se tratava... Perguntei o que era e fiquei a conhecer mais esse nome... Eu adoro essas sopas quer lhe chamem "sopas de xis", "sopas de verde", ou, simplesmente "sopas de sangue"... Na altura das matanças, gosto sempre de as fazer... e saboreá-las...
Filomena Conceição Vilares:
ResponderEliminarEu gosto das sopas de xis, cobertas com maçã bem picadnha, da-lhe bom paladar e ficam mais " desenfastiadas"