JOÃO DE MIRANDA – Rabi da comuna de judeus
Não conseguimos encontrar o processo que a Inquisição de Lisboa certamente instruiu contra o cristão-novo João de Miranda. Acaso ele desapareceu. E talvez por isso nunca este homem mereceu especiais referências dos estudiosos da comunidade marrana de Miranda do Douro. Dessas referências registamos a de Maria José Ferro Tavares (haverá outras?) que é do seguinte teor:
- “Sinagoga” era a tenda de Diogo de Leão da Costanilha, sapateiro, instruído na religião judaica, pelo que teve uma influência marcante em Miranda do Douro, juntamente com João de Miranda. (1)
Sim: tal como o Costanilha, João de Miranda era pessoa de muita influência no seio da comunidade cristã-nova da terra, pois terá sido um dos últimos, senão o último rabi da comuna de judeus de Miranda do Douro. Vamos então ver o que sobre ele conseguimos encontrar, alertando para a possibilidade de mais elementos aparecerem em outros processos que não consultamos.
A fazer fé no testemunho de Diogo de Leão, da rua Nova, que em 1542 lhe atribuía 90 anos, João terá então nascido por 1452. (2)
Quando o rei D. Manuel publicou o decreto de expulsão dos judeus, teria ele uns 44 anos, sendo casado com Isabel Garcia e dela tinha um filho – Diogo de Miranda – ao qual dedicaremos um dos próximos capítulos. E tinha, pelo menos, outros 3 filhos, de um primeiro casamento, cuja consorte ignoramos, e que eram:
* Amador de Miranda que mais tarde foi casar em Castela e lá fixou residência.
* Filipe de Miranda que foi preso pela Inquisição de Lisboa, como se verá. (3)
* Francisca de Miranda que casou com António Lopes, irmão de Diogo de Leão da Costanilha, atrás apresentado. Por 1558 era já viúva e residia em Alcanices, Castela. (4)
Claro que todos estes nomes foram por eles tomados pela Páscoa de 1497, na altura em que receberam a água do baptismo cristão, ignorando-se os nomes judeus que antes tinham. Sim: João de Miranda e sua mulher e filhos fizeram parte da multidão de baptizados em pé, ou seja, os que então foram obrigados por decreto do rei D. Manuel a abandonar a religião judaica e abraçar o cristianismo fazendo-se baptizar. Imagina-se quanto isso terá sido doloroso para um homem que foi rabi, mestre da lei. E percebe-se também que, apesar de todos os esforços, por mais vontade que tivesse, não seria fácil alterar as suas convicções religiosas. Percebe-se que João de Miranda, como a generalidade dos que receberam o baptismo forçado, continuaria a ser judeu, muito embora se comportasse exteriormente como cristão. Se as águas baptismais lavaram facilmente os nomes e as caras dos judeus, não lavaram as suas almas.
40 anos depois, quando foi criado o tribunal da Inquisição para julgar os que, tendo recebido o baptismo, eram apanhados a rezar, a fazer cerimónias ou realizar actos próprios da religião judaica… tinha João de Miranda uns 84 anos e, anos depois, logo que o tribunal entrou de funcionar regularmente, ele foi encarcerado e acabou queimado na fogueira, em data que ignoramos, mas antes de 1544. Acaso terá sido ele o primeiro dos cristãos-novos de Miranda de Miranda do Douro a experimentar tão trágica punição. (5)
Não sabemos qual o comportamento de João de Miranda no decorrer do processo. Mas, entre as acusações feitas pelo promotor de justiça contra Diogo de Leão da Costanilha, ficou registada a seguinte declaração:
- João de Miranda disse que o réu judaizava largamente falando sempre em hebraico com outros cristãos-novos (…) o dito João de Miranda afirma publicamente que em casa do dito réu se faziam ajuntamentos de cristãos-novos que andavam alvoroçados em fazer cerimónias judaicas e que jejuavam o jejum do kipur e disputava sobre a vinda do Messias tendo e afirmando que não era vindo e nas coisas que praticava falava hebraico com os outros cristãos-novos nas profecias e autoridades que alegava (…) e diz mais o dito João de Miranda que rezava o réu as orações judaicas e praticava sobre o que haviam de fazer nas Páscoas dos judeus… (6)
Em resposta a estas acusações, a defesa de Diogo de Leão ficou assim registada no mesmo processo, a folhas 68:
- É de pouca fé e crédito que se deva dar a João de Miranda, notório que foi um grande judeu vestindo um nome de cristão, como lobo com pele de ovelha e por tal foi julgado e queimado (…) o dito João de Miranda foi rabi e judeu…
No mesmo processo estão ainda registadas outras referências a João de Miranda. Numa delas, (folha 1) Diogo de Leão, o da rua Nova declarou:
- Que sabiam quando caía o dito jejum (do kipur) por João de Miranda e pela sua mãe dele Diogo de Leão que é falecida.
Outra confissão do mesmo, feita em Abril de 1543 e registada na folha 72 reza o seguinte:
- Disse ele Diogo de Leão que era verdade que haverá 7 ou 8 anos, em um dia, estando ele com João de Miranda nas ferrarias do espírito Santo junto à vila de Miranda, ele João de Miranda lhe dizia que o Messias não era ainda vindo e que ainda havia de vir e que a lei dos judeus era boa e que fora primeiro dada e não a dos cristãos e que quando o Messias viesse Roma havia de ser tomada e que se haviam de juntar todos em Jerusalém.
Ainda no mesmo processo, a folhas 75, está registada uma confissão semelhante mas feita por um outro prisioneiro, o que reforça a sua credibilidade sobre a liderança religiosa de João de Miranda. Vejam:
- Aos 23 de Maio de 1543, no colégio da doutrina da fé, estando ali o inquisidor João de Melo, mandou vir perante si a André Gavilão e entre outras coisas disse que haveria 6 anos, estando ele Andrá Gavilão na vila de Miranda onde é morador e que um João de Miranda ia com ele e com Diogo de Leão, da rua Nova e outros ao campo a umas eiras que estão junto à ermida do Santo Cristo e lhes dizia que o Messias não era vindo e que quando viesse havia de Roma ser destruída e que os judeus haviam de tornar a Jerusalém.
De entre os Mirandeses que naquela altura foram hospedados nas masmorras da Inquisição de Lisboa, e para além dos já citados, contavam-se dois filhos de João de Miranda: o Diogo e o Filipe de Miranda. Com o primeiro não sabemos se ali se cruzou alguma vez. Com o segundo, sim, esteve cara a cara, na sala de audiências, na presença e por iniciativa do inquisidor João de Melo. Antes de relatarmos o encontro, atentemos no estado de espírito de cada um.
João de Miranda, a esse tempo, tinha já confessado as suas culpas e denunciado os seus companheiros. Tinha também declarado que dera uma educação judaica aos filhos, carregando assim a culpa deles. Pensaria, naturalmente, que essa era a única forma de alcançar o perdão e ver-se livre da cadeia. E entre outras coisas confessou que, já na cadeia, jejuara no kipur e que recomendara ao filho que fizesse o mesmo.
Filipe de Miranda, ao contrário, continuava negando todas as acusações que lhe faziam, que não tinha qualquer culpa a confessar, que nunca judaizara e, em concreto, que nem sequer soube quando caiu o kipur nem fez qualquer jejum, ao contrário do que o pai afirmara.
E foi com esta disposição de espírito que pai e filho foram postoa cara a cara. Vejamos agora como as coisas se passaram nesse encontro, conforme o registo então feito pelo notário da Inquisição e que consta do processo de Filipe de Miranda:
- Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1542, aos 22 de Março, nas casas do despacho da santa Inquisição, estando ali preso João de Miranda, o senhor dr. João de Melo apresentou ao dito João de Miranda Filipe de Miranda, mancebo, solteiro, seu filho. E o dito João de Miranda pedira para que viesse falar com ele, sabia que isso era necessário e que cumpria para sua salvação. E estando ali o dito João de Miranda viu diante de si o seu filho e em presença do senhor inquisidor e mais testemunhas disse que ele réu pedia perdão e que havia ensinado a Filipe de Miranda e aos outros filhos o Kipur e as festas das Cabanas e da Páscoa do pão asmo para as guardarem e que fizessem o que ele seu pai fazia e as guardava.
- E logo o dito seu filho Filipe de Miranda disse ao dito seu pai que não sabia o que dizia, no que falava, que estava tornado do miolo, que estava louco e que nunca tal lhe ensinara nem lhe disse o que havia de fazer.
- Ao que o dito seu pai lhe disse que não estava louco e que falava a verdade e que havia de pedir ao senhor inquisidor que mandasse vir a sua mulher e outras pessoas da sua casa para os reconciliarem e pedir perdão.
- Filipe de Miranda disse que o pai estava louco e que não sabia o que dizia.
- E João de Miranda (voltou a dizer) que mandara dizer-lhe que jejuasse o jejum do Kipur este Outubro passado e o mesmo fizera Dinis Álvares a um seu filho, e que ele disse que o faria… E João de Miranda disse a Filipe de Miranda que o olhasse, que não fugisse ao que dizia… (12)
E terminamos este capítulo com as declarações de mais um prisioneiro de Miranda do Douro onde se reafirma que João de Miranda era um doutrinador messiânico:
- Aos 23 de Maio de 1543, no colégio da doutrina da fé, estando ali o inquisidor João de Melo, mandou vir perante si a André Gavilão e entre outras coisas disse que haveria 6 anos, estando ele André Gavilão na vila de Miranda onde é morador e que um João de Miranda ia com ele e com Diogo de Leão, da rua Nova e outros ao campo a umas eiras que estão junto à ermida do Santo Cristo e lhes dizia que o Messias não era vindo e que quando ele viesse havia de ser Roma destruída e que os judeus haviam de tornar a Jerusalém. (13)
António Júlio Andrade
Fernanda Guimarães
NOTAS
1- MARIA JOSE PIMENTA FERRO TAVARES, Para o Estudo dos Judeus de Trás-os-Montes Sec. XVI, in: Cultura História e Filosofia, vol. VI, p. 380, Lisboa, 1985
2- IANTT, Inquisição de Lisboa, pº 4532, de Diogo de Leão, f 15: - “Entende provar que João de Miranda era judeu e herege, sendo homemde 90 anos e muito falho de juízo”
3- IANTT, Inquisição de Lisboa, pº 12112, de Filipe de Miranda.
4- Em 1544, quando António Lopes estava preso no tribunal de Évora, disse que tinha 3 filhos, a saber: Diogo, de 7 anos; Álvaro, de 4 anos e Isabel, de (?) idade. – pº 2945
5- Para além de João de Miranda e dos primos Diogo de Leão, na primeira leva de presos de Miranda contar-se-iam ainda os seguintes cristãos-novos:
* Jácome Valentim
* Duarte Navarro
André Gavilão
Dinis Álvares de Carvajales
Luís Fernandes
* Jácome Valentim (IANTT, Inquisição de Lisboa, pº 4642). - Tinha 40 anos e era filho de Valentim de Barros e de Leonor Gonçalves.
* Duarte Navarro (IANTT, Inquisição de Lisboa, pº 12770). Pensamos que nem chegou a estar preso e o seu processo consiste em um simples auto de declarações. Traz apenso um documento raro, que é uma sentença proferida pelo juiz dos órfãos de Miranda em 14.3.1496. Este documento foi lido e publicado pelo DR. HUGO MIGUEL CRESPO, no jornal Terra Quente de 15.8.2008, sob o título: Uma descoberta única: uma sentença da comuna judaica de Miranda do Douro nas vésperas da conversão geral.
* André Gavilão era casado com Isabel Gonçalves, Pimparel, uma irmã da mulher do Costanilha, a qual foi também processada e de quem se falará mais à frente. Por agora, refira-se que quando ela foi presa, era já viúva há mais de 10 anos, podendo desconfiar-se que André Gavilão terá morrido nas prisões do Santo Ofício, ou ter sido relaxado. Não conhecemos o seu processo.
* Dinis Álvares residia já em Bragança. O seu nome é referido em vários processos sempre aliado aos de João de Miranda e Diogo de Leão da Costanilha, mas “era muito mais douto”. Quando o Costanilha e o Miranda não sabiam responder a alguma questão, mandavam perguntar a Dinis Álvares “o qual vivia a 10 ou 12 léguas da dita vila”, segundo refere uma testemunha. De resto, sabe-se que Dinis Álvares veio de Zamora e que era casado com Isabel de Castro. Uma filha do casal, residente em Bragança, viria a ser presa pela Inquisição de Évora em 1545 – Pº 11641.
Luís Fernandes (IANTT, Inquisição de Lisboa, pº 13199 e pº 12298).
6- IANTT, Inquisição de Lisboa, pº 4532, de Diogo de Leão, f. 64 e seg.
Nota do Editor:
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