... e vi a locomotiva escura ao longe... |
Quando
tinha cinco anos, antes de questionar Deus e a existência, detinha-me a meditar sobre a passagem do tempo durante as
refeições longas. Começou com o vício de
olhar para o relógio pendurado
na parede da cozinha, sem o ponteiro dos segundos. Costumava alertar a minha mãe que o
relógio estava parado, porque
os ponteiros nunca se mexiam, enquanto a comida arrefecia no prato. Ela tentava convencer-me que o ponteiro dos minutos avançava
uma
casa ao fim de 60 segundos
e dava uma volta ao fim de 60 minutos, quanto ao das horas movia-se
tão
devagar para a minha idade que, quando desse vinte ou trinta voltas, já
seria quase a altura de entrar para
a escola.
Tentava exemplificar o movimento do ponteiro dos minutos com o dedo indicador na
toalha de renda
sobre a mesa e movia-o tão devagar quanto possível, mas chegava logo ao cabo da mesa, sinal de que tinha de abrandar se queria acompanhar aquela medida de tempo.
Sentia que enquanto fazia estas medições e
contagens, o tempo não avançava tanto, como quando
o TV Rural durava a manhã toda, até ao
início dos Desenhos
Animados. Por mais que abrandasse
o ritmo sobre
a toalha de fantasia, nunca acompanhava a
cadência, por isso especulei que
o tempo só
passava se não o
vigiássemos e que mesmo com relógios modernos e computadores, ele passava por entre as horas de distracção,
como as horas do recreio, muito mais rápidas
que as das refeições, por
essa razão mesma.
Assim, um dia incerto, na
altura dos meses quentes, decidi acordar antes dos meus pais e da sombra da casa da Tia Emília Antera descobrir a rua e sentei-me numa pedra encostado à parede
do palheiro do Tio Augusto a
inspeccionar a passagem do tempo. Vi passar
uma das primeiras cabradas da manhã e as vacas do tio Modesto para o Mondego, reparei nas andorinhas a levar o conluio para os filhos nos ninhos e pensei que o tempo devia passar
muito mais depressa
para elas, porque andavam a 100 à hora, muito mais do que ali aonde eu
estava parado. Depois vi passar alguns carros a fugir na estrada e o tempo a ficar para trás pela força do vento na testa. Estava nisto quando ouvi a minha mãe gastar-me o nome da janela e depois de chinelos junto ao portão da rua.
Fiz a pausa para o pequeno-almoço e tentei explicar-lhe que
estava a fazer uma casa rústica em
miniatura, por isso é que tinha de estar ali ao pé dos palheiros para tirar o modelo e as pedras. Assentiu que continuasse,
mas com a
condição de levar o chapéu
de palha e de fazer uma pausa alargada para a
sesta, na hora do calor.
Saí de casa com as sopas de leite quente na barriga e
a licença de observação por mais duas horas e meia. A partir das 11h o calor começou a apertar, mesmo à sombra da cerejeira e comecei a sentir o tempo estagnar na aragem que não
havia, nas folhas que transpiravam
paciência, nas pedras resignadas ao
sol e nos cães pardos estirados debaixo das carroças. De vez em quando uma velha de preto e lenço na cabeça
aparecia à porta a despejar uma bacia
de água para a valeta, outras sentavam-se à sombra a comer pão e maçã ou azeitonas com cebola e salpicão. Davam-me as boas horas e
perguntavam-me se
estava a brincar sozinho. Eu assinava que sim, que estava a ver o tempo passar, como quem diz que estava a passar
o tempo de alguma maneira para a minha idade. Vizinhos mais velhos passavam com sachos
e ancinhos às costas e
perguntavam-me se não queria ir com eles descobrir minhocas, eu ficava agachado
na erva junto à
parede e dizia que estava a cativar uns grilos para
uma gaiola lá de casa.
Por volta do
meio-dia
ouvi uma buzina do
comboio para os lados da
estação, aproximei-me da linha e vi a locomotiva escura ao longe. Preparava-se para arrancar com as cabeleiras de
fumo e fuligem pela chaminé de ferro preto, depois de reabastecida com água. Havia já muitos anos que
não levava nem
trazia passageiros, o serviço de
automotora tinha acabado no
ano em que nasci e agora só transportava cimento, telhas, madeira e trigo de um lado
para o outro.
A curiosidade e a imprudência levaram-me a agarrar uma pedra da linha e
a pousá-la em cima do carril, para ver o que acontecia à
cadência do comboio comandada pelo tempo dos
horários oficiais, parentes do ser dia e do nascer-do-sol. Corri
uns quatro ou cinco metros e
escondi-me atrás de uma silveira à espera de ver o que acontecia no instante em que a roda de aço tocasse
a pedra, no movimento pesado da máquina. Por sorte escolhi uma pedra pequena e de granito, que se desfez em estilhaços
na fracção de segundo do estrondo e
devolveu ao meu coração a
frequência normal. Se
provocasse um descarrilamento teria uma
suspensão da minha infância ou mesmo ordem de prisão, pela tentativa de alterar a marcha do tempo e os meus
pais seriam
deportados pela
responsabilidade do meu
acto premeditado.
Estava nestes pensamentos terríveis, quando fui salvo pelo chamado da minha mãe para ajudar a pôr a mesa do almoço. Ela estranhou a minha prontidão e
na falta de perguntas, tentou adiantar conversa sobre a minha experiência como engenheiro na casa em miniatura. Disse
que estava mal feita e que a tinha deitado abaixo por causa dos grilos e
das formigas que iam lá viver com poucas condições.
Na hora da sesta, protegido do calor da tarde pela persiana do
quarto, pensava ainda nos restos do tempo que tinha gasto a construir e a alimentar a tentativa de controlar o tempo, na
forma de uma casa de pedra, aonde o
queria aprisionar nos diferentes compartimentos diários. Não fui capaz de chegar a conclusão nenhuma, mas achava que para fazer durar
mais o tempo era
preciso dividi-lo em tijolos de
barro e usar os tempos mortos para
fazer escadas até às alturas em que desejamos passar depressa para a hora seguinte, nos andares
de cima, aonde
queremos ficar com mais vagar.
Depois de acordar para lanchar
tentei lembrar-me do sonho e perguntei à minha mãe se era
mesmo verdade que sonhávamos mais tempo do que aquele que dormíamos e se na nossa cabeça o tempo girava de maneira diferente consoante a idade. Ela respondeu
que agora o tempo a deixava para trás e lhe escapava sorrateiro, enquanto que para mim era ainda uma
espécie de passatempo
Reedição de posts desde o início do blogue
Ana Diogo :
ResponderEliminarQue texto tão belo, que memórias de infância tão ricas! E que bem escreve o Tiago Patrício!
Uma belíssima "tradução" do que o tempo pode fazer congeminar na cabeça de uma criança. Um grande texto !
ResponderEliminarJúlia Ribeiro
... ou o tempo a passar pela idade e a idade a fugir ao tempo.
ResponderEliminarUm texto notável do Tiago.
Abraço.