De nome Maria Adelaide Leonardo, filha de Adília do Céu Leonardo e Alfredo
Augusto Leonardo, nasce no dia 28 de Novembro de 1930, na freguesia de
Açoreira, 9 anos antes do início da 2.ª guerra mundial, que sucedeu à guerra
civil de Espanha (1936_1939).
Adelaide, “Filha única”, assim
ficando conhecida porque na altura as proles eram numerosas, logo, os meus avós
ficarem apenas com uma filha era facto estranho para um povo habituado a que os
casais rondassem os 5 ou 9 filhos, força de amor e de trabalho para sustento
familiar. Contudo, única por força da genética e de recomendação expressa do
Dr. João Leonardo, médico da família, que ao felicitar a minha avó pelo
rebento, lhe afirmou, de forma categórica: “- Adília, nem mais um! Esta nasceu
perfeitinha, mas os próximos… Nada o pode garantir, pois sabes bem que ambos
são primos “carnais” (primos “direitos”)! A questão da consanguinidade falou
mais alto e assim cumpriram religiosamente as recomendações recebidas.Em tempos de dificuldade e muita miséria, quer de pão quer de trabalho, ter uma só filha foi quase bênção pelo que a menina dos seus olhos foi criada com mais fartura, mimo e sem grandes preocupações, ao contrário do que acontecia com outras famílias numerosas da freguesia. Sucediam-se na época as “bichas” do Paiva, melhor dizendo, as filas cheias de gente crescida e em tenra idade, vindas de todas as freguesias do concelho, filas que chegavam até à estação do caminho de ferro em busca de um naco de pão que teria de servir para a família inteira que, tantas vezes “enrezinava” ao ser partido em casa, tal a quantidade de pão a cozer no forno do Sr. Paiva. Porque rareava o cereal e o tempo era de contenção, o pão, o alimento dos mais desfavorecidos pela vida, era procurado como um tesouro, enquanto os agricultores que ainda conseguiam fazer algum cereal o escondiam nos colchões de palha, onde dormiam, para que a Intendência não o fosse buscar para posterior e forçada redistribuição.
E a Adelaide não resistiu à agitação que se vivia em torno das noites mal dormidas para ocupar lugar nas “Bichas do Paiva”. Convenceu os pais e foi com outras meninas para saber e viver uma situação de vida que endurecia o corpo e a alma e que só muito mais tarde soube perceber. Essa e a dos figos para cozeduras destinadas a doença, mas que serviam para encher taleigas de merenda, sempre que havia jeira para os mais pobres, e a minha avó lhe explicava em noites de serão.
Como não há belo sem senão, a menina habituou-se ao estar só inúmeras vezes, tendo em conta os desvelos de uns pais que amavam, talvez em demasia, a Adelaidinha, o seu único rebento. Em pequena e quando os pais saíam em trabalho, passava horas e horas sozinha a bordar paninhos e a “morar” às casinhas, ou seja, a brincar no quintal, que dava para a rua principal, com os brinquedos que o Ti Manel Manquinho lhe trazia de Espanha graças à amizade imensa com o meu avô Alfredo, pelo que à menina não faltavam caminhas, mesas, cadeirinhas, jarrinhos e outras peças em caco que faziam as delícias das outras crianças que com ela vinham brincar para o quintal, subindo pela velha parede de pedra, mesmo que as fossem levando pouco a pouco, o que nada importava à minha mãe já que esses brinquedos lhe serviam de recurso à socialização e a mãe escusava de saber, pois o Ti Manel Manquinho outras lhe traria, assim que fosse a bandas de Espanha, visto a segunda mulher ser espanhola, tendo para futura memória dois filhos o Santiago e a Pilar.
Por volta dos 7 anos vive a aventura de ir pela primeira vez à escola com a professora D. Miquelina, de Maçores, mãe do Gilinho e do Valdemar e esposa do Sr. Virgílio que dava aulas noutra freguesia. Na casa da rua Além funcionava a casa da família da Sra. Professora e o grande salão servia para lecionar as quatro classes. Embora o salão se enchesse no início do ano, muitos iam desistindo, de acordo com as lides e os trabalhos dos pais que os obrigavam ao suor e ao calcorrear dos sulcos e caminhos de cabra, deixando de lado o conhecimento e o saber que não ajudava a colocar comida na mesa, e porque não tinha carácter obrigatório. O primeiro degrau de uma escola iniciada correu bem, não fora a Aritmética que lhe ensombrava os dias e ainda os sonhos de uma mulher que aos 82 anos pensa estar numa universidade, mas da qual tem de desistir porque a tal Matemática de hoje ainda a persegue. E assim acorda hoje de sonhos feitos de uma inconsciência mal percebida, a reflectir o desejo de ter estudado até mais além, se bem que sempre distante de números e contas.
Outubro chegava a passos largos e a Adelaide, a prima Deolinda, a Adelaide Cabeleira e a Celeste Gomes num dia em que iam em direção a Canelas apanhar a azeitona borraceira para fazer alcaparras encontram a senhora que seria a professora dali em diante, a Sra. D. Austelina. Acompanham a Senhora distinta e de porte corajoso até à aldeia, sabendo que a 2.ª classe se iniciaria em breve com professora diferente. E a diferença fez-se sentir rapidamente porque a Sra. Professora era exigente na profissão que abraçara e de todos queria a excelência, pelo que não havia hora para sair da aula sem que soubessem devidamente a lição. Os recursos e estratégias eram as próprias da época do Estado Novo e passavam pela agressão da palmatória, os castigos corporais, por vezes um pouco violentos e humilhantes com o objectivo único de que os alunos estudassem e fossem realmente os melhores dos melhores e brilhassem nos exames da 4.ª classe. Nem todos sobreviveram às metodologias de então e a Adelaide, a Céu Leonor, a Céu Rodrigues e Celeste Gomes, todas aninhadas na mesma carteira, que iriam enfrentar a 4.ªclasse nesse ano, um dia acharam por bem desistir. E se algumas das amigas chegaram, já crescidas, a desafiar o exame da 4.ª classe, a Adelaidinha com o amém dos pais ficou por casa para aprender a ser “boa menina”, bordar e tecer no tear, que viera de Urros, feito e armado pelo Sr. Pavas.
Já adolescente, a amizade com a família Crespo de Urros consolida-se com laços tão fortes como os familiares são, através do primo António Júlio, que alegrava os bailes de Domingo à noite, os dias de festa com a sua guitarra e a voz de fadista que com ele nascera até rumar para o Brasil em busca de melhor sorte; o primo que levava a farinha a Urros que os pais moíam na Ribeira. E assim, a minha mãe Adelaide tornou-se para eles mais um membro da família e o mesmo acontecia ao José, que cedo foi para Lisboa, à Aldina, ao Antoninho, à Maria de Lurdes, morta aos 19 amos com uma pneumonia, depois de refrescar os pés cansados e demasiado quentes na água fresca de uma mina, e à Celina, todos filhos da Sra. Filomena e do Sr. José Júlio Crespo, também eles todos filhos dos meus avós, quando trocavam Urros pela Açoreira. E foi, de facto, em Urros que aprendeu a tecer, a terra onde se tecia o melhor pano, a melhor colcha de lã e de borboto, a melhor manta para a casa ou mesmo para a albarda do macho ou do burro sempre que era preciso ir mercar fosse o que fosse a Moncorvo.
À medida que se fazia mulher, os pais autorizavam também que passasse temporadas em Felgueiras com o Sr. Afonso Ferreiro, dono de uma forja, amigo do meu avô Alfredo, onde a amizade crescia com a Teresinha e a Germana, filhas do casal, que, por sua vez, se sentiam em casa, quando vinham a casa da Tia Adília e da Adelaidinha.
O tempo corria devagar em terras do Nordeste transmontano e, em particular, na freguesia de Açoreira, onde fora as festas religiosas e os deveres domésticos, passava os dias com a sua melhor amiga, a Adozinda Mourão, a irmã que não tivera, com quem se tornou íntima até ao dia em que a amiga partiu para grande cidade, desejo imenso e antigo que tinha, para o Porto. Enquanto isso, confidências, muitas! Mágoas e alegrias trocadas, casa de uma e casa da outra, o encontro das comadres, o dia em que as amigas se encontravam e faziam arroz doce e outros acepipes para, de alguma forma, imitarem as mães, em tempos de Carnaval. Até que num dia de mais um batizado em casa da amiga Adozinda (seriam ao todo oito), neste caso o do irmão António do Espírito Santo Mourão, o pai da menina Adozinda, o Sr. António Mourão, convidou para o repasto a patrulha da G.N.R. E foi aí que se iniciou a mudança de estado e de vida da Adelaide. Os olhos trocaram-se com o meu pai João António Fernandes num amor devagar e a contragosto para os meus avós que duraria a vida inteira até que a morte os separasse não fora ela chegar sorrateira, sem aviso, para o meu pai, deixando-a sem chão até aos dias de hoje.
Corria o ano de 1956, quando se casaram no dia 19 de Abril, uma Quinta – feira, sendo a menina das alianças a menina Inês Lourenço, a prima que hoje é a D. Inês, casada com o Engenheiro Gil do Peredo dos Castelhanos. Em finais de 1957, em 22 de Dezembro, nasce a primeira filha de ambos, na freguesia de Campanhã, no Porto, Teresa de Jesus Leonardo Fernandes. Em 22 de Dezembro de 1961, 4 anos e mais uma hora e meia nasce a segunda filha, Maria Gabriela Leonardo Fernandes.
O ano de 1962 chegava com uma opção difícil de ser tomada. Ou o marido rumava a terras de França para junto do irmão Sebastião, que lhe enviara a tal “Carta de Chamada”, aí casado com uma senhora francesa, ou ia para África, onde o irmão José Fernandes o esperava com emprego na Junta Provincial de Povoamento de Angola. Decisão tomada em função do coração, e África mostrou-se o destino sonhado para onde a Adelaidinha chegaria, 4 anos depois, para iniciar uma vida nova com o marido e as duas filhas. Uma acha na fogueira para os pais dela e meus avós, que, se já antes não tinham aprovado o casamento e se sentiram contrariados face à recusa da minha mãe em aceitar os candidatos que faziam parte da lista idealizada por eles, a ideia de deixar o certo, França, pelo incerto, África, os deixou com mágoa que se adensou até ao regresso forçado à Metrópole, a Portugal, na condição de “Retornados”!
Este pedaço de vida que aqui se desenhou ecoa há muito nas memórias que me ficaram dos meus avós e tempo de menina, imagens que são umas mais acentuadas que outras, porém interiorizadas por duas contadoras de histórias de eleição, a minha avó Adília, que me ensinou, ainda antes de fazer a 1.ªclasse em Açoreira, todo o livro de leitura, a tabuada e a Aritmética, e a minha mãe Adelaide sobre a qual urdi e teci as palavras que agora deixo. Da minha avó ouvi em noites de partida de amêndoa e de outros afazeres as histórias dos livros que leria mais tarde: As Pupilas do Senhor Reitor, A Morgadinha dos Canaviais, A Rosa do Adro, O Amor de Perdição, entre outros que ela devorava, sempre que o Sr. Júlio Leonardo, pai da menina Inês e o major Leonardo, irmão do primo Júlio lhos emprestavam; da minha mãe as histórias de encantar que se perpetuavam na fala das avós e mãe: O Homem da Moca, As duas irmãzinhas,…
As mesmas histórias que me faziam acreditar que África ficava do outro lado da Serra que escondia Felgueiras e era assim que sentada no balcão, a tomar café com migas de pão, na malga que a minha avó preparava, enquanto os parrecos seguiam o curso de água que passava na rua de pedra bruta, entremeada por feixes de palha, que eu e a minha irmã Gabriela fazíamos ouvir o grito de chamada pelo pai que estava longe e pelo qual ansiávamos: “Paiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!” A verdade é que esse era um momento mágico, de crença e de alívio para duas meninas que iriam partir para terras de Angola, a precisarem de ser escutadas do lado de lá que elas achavam ser logo ali.
Teresa de Jesus Leonardo Fernandes
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Teresa linda e perfeita narracao dum passado nao muito distante, soa familiar,nao sabia que tinhas nacido em Campanha sempre pensei que eras pipineira de nascimento.
ResponderEliminarZeza Nogueira escreveu: "Amei , parabens filha unica♥"
ResponderEliminarTi Adelaide, ao ve-la faz-me lembrar o presente,recordar o passado,e imaginar tempos que não conheci;obrigado.conte-nos mais histórias da terra..um beijinho...
ResponderEliminarCom textos destes se poderia reconstituir uma valiosa parte do passado colectivo de todos nós e de Moncorvo .
ResponderEliminarParabéns à D. Adelaide Leonardo , tecedeira.
(Nasci 8 anos depois de si e, ainda bem pequenina, também passei longuíssimss horas nas "bichas do pão" do Paiva. De facto, comemos o pão "que o diabo amassou" ).
Um abraço
Júlia Barros Ribeiro (Biló)
É um encanto ouvir esta senhora desfiar as suas memórias.Tecedeira primorosa,poderia ter voado mais alto se uma professora cruel não lhe tivesse interrompido o sonho de frequentar a universidade.
ResponderEliminarObrigada por "este pedaço de vida"(palavras do amoroso relato da sua filha)que nos oferece.
Uma moncorvense
Tanta informação, e de natureza tão diversificada!
ResponderEliminarObrigada amiga Teresa. Desejo que a sua mãe continua a contar-nos com tanta jovialidade muitos, e por muitos anos, episódios de tempos duros e difíceis que já passaram.
Tininha
Ana Diogo:
ResponderEliminarAdorei ler o relato de Teresa de Jesus e que delícia ouvir a mãe, a Sra. Adelaide, tecedeira contando suas memórias... Maravilha! Obg.
Parabéns à autora do texto!
ResponderEliminarCuriosamente algumas das personagens aqui referenciadas ainda estão vivas na minha memória...A Inês andou comigo na escola e, a Sra, D.Autelina era, de facto, uma Professora demasiado exigente...Que a sua Mãe nos continue a contar estas maravilhas por muitos e longos anos .Muito obrigada.
Ireninha