Dizem os que queimaram pestanas a ler documentos antigos que a ignorância
das letras foi uma constante em Barroso, durante os últimos séculos; a lendária
ignorância desta boa gente foi já assinalada por Frei Bartolomeu
dos Mártires, Bispo Primaz de Braga, quando da sua visita pastoral à região, em
1564, onde se demorou cerca de quatro meses, a percorrer todas as paróquias, em
contato com o povo.
Nascido do desdobramento do concelho de Montalegre em 1836, o concelho de
Boticas na data da sua criação não dispunha de qualquer estabelecimento de
ensino público. A primeira escola pública só começou a funcionar ali em 1838; o
edifício construído para esse fim foi concluído apenas em Outubro de 1871,
graças a um valioso donativo de 144 contos
para 120 escolas, por parte do Conde de Ferreira em 1866, um emigrado que enriqueceu no Brasil e Angola,
sensibilizado com a falta de instrução dos portugueses emigrantes.
Em reunião de Câmara de 20 de Maio de 1875 foi evocada a necessidade de abrir
na sede do concelho uma biblioteca pública, aspiração que veio a ser
concretizada apenas em 1 de Junho do ano 2000, isto é, 125 anos mais tarde.
Conquanto no início do século XX a Inglaterra tivesse apenas 3% de
analfabetos, essa pavorosa praga atingia ainda, nessa altura, 78% da população
portuguesa, o que levara Eça de Queiroz, anos antes, a lançar este grito angustiado: «os que sabem dar a verdade à sua pátria não
a adulam, não a iludem, não lhe dizem que é grande, porque tomou Calecute;
dizem-lhe que é pequena porque não tem escolas. Gritam-lhe sem cessar a verdade
rude e brutal. Gritam-lhe: tu és pobre, trabalha! Tu és ignorante, estuda! Tu
és fraca, arma-te!».
Decorrido mais de um século sobre esta proclamação, chegamos à atualidade com
algumas povoações do concelho de Montalegre a registar ainda taxas de
analfabetismo superiores a 40%. Se isto não é atraso civilizacional, como
devemos qualificá-lo?
Genericamente, não só estas pessoas não tiveram escolaridade adequada, como
as comunidades locais lhe não reconheceram, por vezes, a utilidade; é de resto
difícil reconhecer a falta daquilo que se desconhece. Bento da Cruz retrata
exemplarmente essa realidade, a propósito da sua entrada para instrução
primária: «meu pai incorreu na censura dos vizinhos por me ter mandado à escola
oficial.
- Andas para aí desgraçado, sem
ninguém que te deite a mão a nada, e trazes o rapaz na vadiagem. Sujeita-o
contigo! Sempre te vai fazendo companhia
e ajudando a qualquer coisa.»
O depoimento é esclarecedor quanto à
forma de pensar do mundo rural dos anos trinta do século passado, duas décadas
antes da abertura do Colégio de Montalegre.
A frequência do ensino primário tornou-se obrigatória por
lei, em Portugal, desde os primeiros anos do século XX; mesmo assim, nos anos
cinquenta, nas aldeias, era frequente as
pessoas irem à escola pedir a dispensa do filho ou filha para o pastoreio de vacas, do rebanho ou de outras atividades
da vida familiar. Recorremos mais uma vez a uma citação de Eça de Queiroz sobre
o ensino na segunda parte do século XIX, para situar o papel da criança na vida rural
de então, o que aos mais novos ou menos
familiarizados com a vida dos campos até meados do século XX pode parecer chocante,
ou mesmo incompreensível: «a criança de sete a dez anos já conduz os bois, guarda o gado, apanha a
lenha, acarreta, sacha, ajuda na lavoura. Tem a altura de uma enxada e a
utilidade de um homem. Sai de madrugada, recolhe às trindades»3.
Perante esta dura
realidade, Eça defendeu o ensino noturno, como forma do campo restituir a
criança à escola, tentativa que falhou frequentemente, na prática.
Apesar disso, a matriz deste processo seguia de par com algumas
iniciativas auspiciosas em certas comunidades locais. Nalgumas aldeias de
Barroso a população mobilizou-se e construiu a sua própria escola. Em Negrões,
por exemplo, a aldeia construiu um edifício com dois pisos, sendo o rés do chão
destinado à residência da professora (com quarto, sala de estar e ligação a uma
cozinha anexa) e o primeiro piso a sala de aula. As famílias com mais posses
forneceram a pedra, a madeira e o transporte e as restantes ajudaram com mão de
obra. O Estado começou, também a edificar escolas públicas em lugares de maior
concentração populacional, mas a um ritmo insuficiente. Outras aldeias atraíram
algum forasteiro que ali aceitasse viver, com instrução suficiente para ensinar as crianças a ler e a escrever. Porém a prioridade
a dar à instrução foi muito lentamente assimilada, em especial no que se refere
à aprendizagem da população feminina.
À margem do ensino público existiram, nos séculos XVIII e
XIX vários centros de ensino civil e eclesiástico
em locais como Sapiãos, Couto Dornelas, Eiró, Gralhas além de outros. Os
párocos das freguesias dedicaram-se frequentemente ao ensino das crianças da
paróquia, durante o período de Outubro a Março, quando as exigências da lavoura
eram menores. Noutros locais, de uma maneira informal, pessoas que sabiam ler e
escrever improvisavam serões noturnos, na época de inverno, numa cozinha ou
sobrado e aí se aprendia a assinar o nome, a fazer contas e, se possível, a ler
e escrever uma carta.
A segunda guerra mundial desencadeou uma forte procura de
volfrâmio para o fabrico de munições e outros equipamentos da poderosa maquinaria
de guerra. A exploração do minério deu origem a muitas centenas de explorações
artesanais por todo o Barroso e a um exército de apanhistas, dentro e fora do Couto Mineiro da Borralha; milhares de
mineiros assalariados trabalharam no interior das minas da Borralha, onde
laborava a todo o vapor, a segunda maior exploração de volfrâmio do país.
Respirava-se ali um ambiente análogo ao do faroeste americano
na corrida ao ouro, só que agora tratava-se de ouro negro, pela sua escassez e
elevado preço. Bento da Cruz descreve em A Fárria o ambiente local de então:
«por aqueles outeiros e quebradas, um mar
de gente de ambos os sexos e todas as idades, que eu, de longe, como
estivéssemos em Maio e as cortes varridas, supus de enxada na mão a cortar e
recolher o mato, e, de mais perto, identifiquei como sendo pesquisadores de
minério. […] Por entre eles fui descendo até à margem direita do rio, no leito
do qual, uma chusma de mulheres, de pés na água, remexiam areia em tabuleiros
de pau. Surpreso com tudo isto, passei à margem esquerda por uma ponte de
madeira, fui engolido por uma multidão e compreendi que tinha entrado num mundo
diferente do meu. […]Eu nunca tinha
visto tanto povo junto. […]Passei por um grupo de cento e muitos. Os mais novos ainda riam e galhofavam uns com os
outros. Os mais velhos iam silenciosos e taciturnos. Todos de tamancos, fatos
de cotim a desfazerem-se de coçados e sujos, capacetes na cabeça, gasómetro
numa das mãos e saquitela ou marmita na outra. Quedei a olhar para eles e vi-os
subir uma rampa e desaparecer num boqueirão da montanha. Dir-se-ia que o
Inferno os havia tragado.
-Mineiros?
-Acertou.
[…] Atraído
por aquele fio melódico [de uma concertina] apressei o passo. Um cauteleiro quis
impingir-me a sorte grande, um fotógrafo à minuta, um retrato, uma cigana a
‘buena-dicha’. Um tipo de toalha na curva do braço esquerdo e pincel em riste
na mão direita, convidava os transeuntes a cortar cabelo e barba. Outro, de
bata branca muito sórdida, arengava junto de uma cadeira de pinho encostada a
uma esquina: “arrancam-se dentes e raízes a três mil reis cada. Sem qualquer
dor. Aproveitem. Não sofram mais. Sem dor. A três mil reis. Aproveitem.”
[…] Fui ver.
Uma família de saltimbancos a exibir habilidades para um numeroso círculo de
basbaques de todas as idades e categorias. Do outro lado, acompanhada à
guitarra por um “ceguinho”, uma fadista de viela regougava a “estória do nefando e ‘horrible’ crime”. Versava ela o
assassinato do Capelo, de Salto, pelo Zacarias, de Juguelhe, ocorrido há mais
de vinte anos, mas cuja dramatização continuava a interessar o público. De todos
os lados os mendigos me estendiam a mão, uns em silêncio, outros com apelos
patéticos ao amor de Deus e das alminhas.»
Para além deste poviléu sem eira nem beira, existiam
também os administradores, engenheiros, responsáveis pelo pessoal, pelas
tarefas administrativas e pelos trabalhos no interior da mina, além de outros
serviços, como por exemplo o pessoal dos correios e respetivas famílias, que
procuravam proporcionar ensino conveniente aos filhos.
Assim, nasceu a Escola Profissional da Borralha na década de cinquenta,
por iniciativa do pároco local.
Também a produção intensiva de batata de semente originou
outro novo frenesim nas áreas acima dos 600 metros de altitude, pondo termo ao tradicional
sistema agro-pastoril, criando neste sector, uma frenética economia de mercado. O sistema de entreajuda e
de troca de mercadorias deu lugar à produção de batata de semente, em regime de
quase exclusividade, opção que mais tarde se revelou bastante negativa para a
região, pelos desequilíbrios sociais e económicos surgidos, após esse pico de
produção.
Nesses anos de euforia, a paisagem transformou-se. As
aldeias de Barroso, de casas colmadas de palha de centeio, cosidas com a
paisagem, cederam lugar aos coloridos telhados de telha marselhesa.
O Colégio de
Montalegre, situado na sede do concelho, iniciou a sua atividade escolar no ano
de 1953, meio século depois da abertura
do Liceu em Chaves. O Colégio da vila
Boticas abriu em 1960.
O ensino secundário tardio em Barroso, fica mais expressivo,
quando cotejado com o verificado em Chaves, que dispôs de um Liceu desde 1903, ano
em que se registou o primeiro voo aéreo da história da humanidade, pela
iniciativa dos irmãos Wright. A entrada em funcionamento desta unidade de
ensino precedeu mesmo a primeira linha telefónica entre Lisboa e Porto, posta a
funcionar no ano seguinte, ou o início da distribuição de luz elétrica aos particulares, em Lisboa.
O nascimento do Liceu de Chaves esteve envolto numa circunstância
curiosa: a autorização da abertura de liceus estava então consignada exclusivamente
às capitais de Distrito. Dois ministros do governo de então, naturais de Chaves,
aproveitaram a oportunidade de um deles ficar a substituir o chefe do governo e,
por proposta de um e despacho favorável do outro, o Liceu Nacional de Chaves iniciou
as aulas no dia 6 de Outubro de 1903, com instalações na Rua do Poço, onde se inscreveram 42 rapazes e
oito raparigas, sendo as despesas de funcionamento suportadas pelo Município; faltava
então, ainda um ano, para a constituição do Clube
Sport Lisboa e Benfica e para a inauguração do Salão Ideal, primeiro animatógrafo da cidade de Lisboa. No decorrer
de 1904 foram ainda atribuídos 400 contos para a construção da linha férrea
Régua/Chaves, por influência do Conselheiro Eduardo José Coelho, natural de
Redial, concelho de Chaves.
O Colégio de Montalegre aproximou o mundo local de vila e aldeias e toda uma geração de jovens,
não apenas em termos de convivência mas também de identidade. Essa nova geração
teve a oportunidade de seguir localmente os estudos secundários até ao então
designado 5º ano do liceu. Os alunos eram preparados no Colégio de Montalegre e
levados a prestar provas no Liceu Nacional de Chaves.
Para trás ficou a pequena escola de instrução primária,
enquanto meta do horizonte educativo, a nível local. Até ali, a generalidade
dos jovens da aldeia e da vila não passavam além da pequena sala de instrução
primária, composta de filas de carteiras duplas em madeira, orifício ao centro,
no tampo, para um tinteiro branco, e um entalhe lateral para os lápis de lousa
ou de papel e uma pena de aparo para as cópias a tinta. No topo da sala, a
secretária da professora, com a clássica braseira aos pés na maior parte do
ano. Nas paredes, um ou outro mapa suspenso, por regra, em mau estado.
Suspensas da parede, a ladear a secretária da professora, as fotografias de dois cavalheiros de ar
sisudo, dentro de caixilhos de madeira escurecida. Ao centro, uma imagem de
Cristo na Cruz. Era tudo!
Ali se lecionavam, em simultâneo, os quatro níveis de
ensino primário. Por vezes a aula acolhia também alunos de aldeias próximas
onde não havia escola, situadas a dois ou três quilómetros de distância e às
vezes mais. As crianças a partir dos sete anos tinham de palmilhar diariamente
aqueles caminhos, atravessando trilhos de lobos, ao calor, ao frio, à chuva e à
neve; no bornal uma côdea de pão, nem sempre acompanhada de um presigo e sacola
a tiracolo, com livros, cadernos e lousa .
Quando as chuvas alagavam as margens de corgos e riachos,
impedindo a passagem, as famílias onde se situava a escola abrigavam essas crianças
em suas casas, dando-lhes de comer e cama para passarem a noite. Não havia
telefone nem forma de avisar os pais de que elas estavam abrigados e em
segurança. Por vezes resvalavam na passagem
dos regatos, ou eram surpreendidos pela chuva, no caminho. Ficavam encharcados
dos pés à cabeça e continuavam assim, caminho fora até à escola, onde enxugavam a roupa
ao calor da braseira da professora, ou aguentavam a frialdade até ela
secar, com a quentura do corpo.
O prolongamento dos estudos gerou uma nova animação nas
ruas da vila de Montalegre, além de um aumento de receita no comércio e nas
casas de famílias que hospedavam os estudantes de fora.
Até aos anos
cinquenta, o comércio da vila fornecia a crédito os seus fregueses rurais, saldando
estes as contas, por norma, uma vez ao ano, ou quando vendiam vaca, vitela ou
junta de bois, numa das duas feiras mensais, realizadas na vila.
Foi uma alma nova para Montalegre. O crescimento de
residentes na vila foi significativo, em particular no setor juvenil, contribuindo
para uma renovada dinâmica social. Constituiu também um auspicioso desafio para
muitos quadros da administração local que assumiram o encargo de lecionar as
respetivas matérias, uma vez que o
isolamento geográfico e as dificuldades de transporte obrigavam o Colégio a
recrutar localmente todo o quadro de professores. Foi, também por isso, um combate
que dinamizou vários setores da comunidade.
O
Colégio de Montalegre abriu as portas em
1953, criando um horizonte de esperança para muitos que de outra forma não
teriam tido acesso aos estudos secundários, nem a oportunidade de participar na
mudança de mentalidade, em fase de
acelerada transformação.
Os
alunos mais antigos ainda se recordam dos beirais de colmo das habitações,
mesmo nas barbas da vila, dos ranchos
das segadas e o pipo a passar de mão em mão, a apagar o fogo nos lábios sedentos
sob o sol escaldante; dos malhadores a correr o eirado, soltando em batida
hercúlea, da espiga o grão, depois armazenado na tulha, depois de limpo; dos
fornos comunitários de granito ainda em plena laboração, dos fenos calcados nos
palheiros pela rapaziada, do canto dolente dos carros de bois, dos gadanheiros
em lameiros de feno, dos rituais comunitários, do gaudio do trabalho coletivo, da
folgança em festas e arraiais - comovente memória de uma ruralidade perdida.
Diminuíram
as diferenças entre os filhos da vila e os das aldeias, bem notórias até aí,
quer nas referências do viver quer na natureza dos recursos, patentes até na
própria maneira de vestir
e de andar pelas ruas. Os alunos oriundos da vila provinham em regra, de famílias
de funcionários da administração pública local, dos profissionais liberais e das
famílias ligadas ao comércio. Os das aldeias saíam de casas de lavradores
médios ou pouco mais além disso. A condição de referência das casas de lavoura estava
então não apenas na imagem de um Portugal
antigo, rural, interior, pobre, sofrido, mas no facto de se sentirem pertencer ao
limiar inferior da pirâmide social, tanto por falta de instrução como por
estreiteza de horizontes alternativos à sua condição de vida.
O
colégio de Montalegre foi por isso, antes de tudo, um processo de nivelamento
social entre as aldeias e a vila e, de um modo mais geral, entre o mundo do
campo e a vida na cidade, em particular para a nova geração.
O
acesso aos estudos secundários proporcionou
aos jovens a entrada num mundo novo de experiências únicas, descobertas mágicas,
aventuras, arrebatamentos. Nas aulas e fora delas. Um verdadeiro banquete de
vida pulsante a deambular pelas ruas de
Montalegre.
Só
muito mais tarde tivemos consciência do mundo simples que ficou para trás: andar
todo o dia ao ar livre; correr o campo, subir às árvores e às montanhas, dormir
com a porta aberta nas noites de Verão, conviver com a retidão de caráter - pessoas
de cara lavada e olhar límpido, sem medo de coisa nenhuma, nem de ninguém.
Quando
uma ou outra vez a vida se sente agora vazia é reconfortante saber que um dia a
sua terra natal lhe serviu de guia. Era então primavera e sente-se agora o
vento frio do Outono. Quanto vale a memória daquilo que não foi dito, dos
dezoito anos em que qualquer dia era Verão, do azul dourado de Abril, dos olhares
e sorrisos felizes, de estudantes em correrias a sorver o ar puro até à
embriaguez, do coração cheio de
promessas e mente aberta, que tudo
queria devorar .
Hoje
só em silêncio o apreciamos, em plenitude. Este reencontro de memórias de
companheiros separados pelos afazeres da vida, mas unidos pelo vínculo
indestrutível da amizade de infância, em dimensões descobertas, às vezes, tarde
demais - um rio de memórias, frágil e límpido que a mais pura inocência soube alimentar. Assim,
ainda acordamos agora, atentos aos sons
da terra, ao colorido da paisagem, ao
pulsar da fauna, ao empedrado das ruas, ao sino da igreja, ao relógio de sol , aos
movimentos nos currais, ao traçado austero das casas de granito e dos palheiros,
à frescura das fontes.
Não
sei se o casal Dr.ª Margarida e Dr. Américo Canedo incluíram tão diversos
propósitos no cadinho de sonhos donde brotou o Colégio de Montalegre. Sei, isso
sim que uma semente pode transformar-se numa árvore frondosa, gigantesca ou ficar-se pelo tamanho de um bonsai. Tudo depende das condições
envolventes, favoráveis ou contrárias ao seu pleno desenvolvimento.
O
potencial do homem de Barroso esteve sempre lá, em sua essência; apenas
variaram as circunstâncias, mais favoráveis em certos períodos, menos noutras
alturas, por entraves de vária natureza, ou dormente, por falta de estímulos.
Enquanto região distante de tudo, assente numa economia de subsistência de base
agro-pastoril, os estímulos foram preferentemente dirigidos para o desempenho
braçal no cultivo dos campos, para a resistência frente ao clima agreste e para
a entreajuda, como é próprio das
comunidades de montanha.
Aqueles
que não conseguiram realizar aqui, a nível espiritual ou material as suas
aspirações, tendo em conta as condições concretas locais, deixaram a terra e
partiram por esse mundo fora, com seu punhado de sonhos. Como alguém
já referiu, o homem de Barroso teve, em sua terra, dois grandes desígnios: até aos
trinta, ser valente; e depois dos trinta
ser honrado. Dito de outra forma, foi chamado a desenvolver aptidões físicas ligadas ao trabalho braçal e
espirituais direcionadas para a retidão de carater, para o amor ao próximo, a
solidariedade fraterna e o convívio harmonioso com a natureza.
A
formação escolar abriu espaço a novas dimensões do ser, colocou novas
alternativas ao crescimento do indivíduo; permitiu e valorizou novas atitudes e
aspirações, adormecidas no mundo rural antigo. Ente tantas outras saídas, proporcionou-lhe
desenvolver faculdades e opções novas, com mais alternativas e menos grilhetas
físicas, psicológicas e sociais mas, simultaneamente tornou-o mais responsável
pelo seu percurso de vida. É-lhe dado interrogar-se e decidir o seu futuro sem
precisar de ninguém a dizer se está certo ou está errado. De um lado, a falta
de novos horizontes justificava uma
forma de determinismo à nascença, que o povo designou sabiamente por destino. Do outro, as novas alternativas
fazem dele um homem só, responsável pelos seus atos e atitudes, mas um ser
solitário nas horas de decidir. Mais que isso, o seu percurso é em grande medida, a consequência das suas
decisões.
Os resultados estão aí, patentes no desempenho da nossa
gente, nos mais diferentes domínios de atividade, tanto em Portugal, como no
estrangeiro. A semente que se desprendeu do mesmo tronco de árvore produziu diferentes
resultados face ao novo meio envolvente e às novas condições que valorizaram outras dimensões do seu potencial.
Abriu-se
assim um novo horizonte relacional, espiritual, intuitivo, emocional,
percetivo, imaginativo – um novo prodígio
que extravasou o cadinho do sonho dos seus obreiros, furor espontâneo a
compor os sons de uma palavra simples:
gratidão.
Aos patronos e a todos os que no projeto se
empenharam é justo referir o que o grande poeta visionário escreveu na “Mensagem”,
quando sentado à mesa de um café de Lisboa: “Da obra ousada foi ‘deles’ a parte
feita”…
Não
frequentei fisicamente o Colégio de Montalegre. Fui diretamente para o Liceu de
Chaves, por ligações familiares; de fato preto, como vestiam todos os que dali
saíram antes, para o seminário. Dei-me conta de como era diferente, pela forma
como vestia, pelo modo como olhava para as coisas. Os meus condiscípulos também
o notaram e passei a ser conhecido, entre eles, pelo barrosão, renome um tanto equívoco pelas conotações diversas em que
o utilizaram, mas com qual sempre me identifiquei. Era o único aluno conhecido
como sendo de Barroso, uma espécie rara, que resvalou das terras altas, até à
veiga de Chaves. Na verdade não fui o único aluno originário de Barroso, mas o qualitativo
estava posto e ficou. Havia pelo menos mais duas alunas de Barroso no mesmo ano
escolar e o bom companheiro de turma, Rogério Palma Rodrigues, hoje um distinto
médico, em Setúbal. Mas só o pai era de Barroso. Não sei se por essa razão me
reconheceram mais legitimidade para porta- estandarte.
No
período de férias convivi intensamente com os amigos que frequentavam o seminário
de Vila Real e o Colégio de Montalegre. Fiquei a saber tanta coisa do que se passou num e no outro lugar que parece ter gasto os
fundilhos, nas mesmas carteiras. Neste sentido, se não me senti com total legitimidade para aceitar
o amável convite de partilhar o meu testemunho, foi na qualidade de filho de
Barroso, entrado no liceu, também em 1953, que me vejo parceiro da mesma alvorada da instrução, que
animou os jovens do pós- guerra do nosso torrão natal.
António Chaves
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