terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Zulmira morreu - Crónicas da sobrevivência e da morte, por Virgínia do Carmo



Da sobrevivência e da morte  (I)

Faz por estes dias um ano que Zulmira se suicidou. Zulmira, a mulher do sapateiro, como era conhecida na terra. Um suicídio infeliz (serão todos os suicídios infelizes?). Muito mais infeliz porque a mulher, falecida pela força do desespero (ou da lucidez?), deixou três filhos menores. O pior de uma morte precoce é sempre os filhos que se deixam. E o grito que se lhes deixa nos olhos, para sempre.
Diz-se na terra daquela mulher desesperada (ou demasiado lúcida?) que foi muito maltratada pelo seu marido desde os tempos de namoro. A violência ter-se-á intensificado ao longo da vida conjugal. Os três filhos nasceram entretanto, nos intervalos fugazes da tortura.
Um dia Zulmira, desesperada, descobriu uma garrafa de vodka. Ouvira em tempos dizer que aquele veneno incolor, transparente como a paz, de que na verdade nunca aprenderia o nome, adormecia a dor. E cansada de se doer, a mulher desesperada (ou demasiado lúcida), bebeu os primeiros tragos. Percebeu, então, que há venenos que nos matam de uma tal forma que quase nos permitem querer viver. E nunca mais parou. Quando tudo doía demais, bebia. Quando já tinha saudades do desenho de uma gargalhada articulando-se-lhe no rosto, bebia. Sempre que tudo se assumia insuportavelmente real, bebia. E assim adormecia do cansaço do desespero. E da lucidez.
Em 1897 o sociólogo francês Émile Durkheim veio mexer nas teorias que confirmavam o suicídio como um acto meramente individual, e defender que, afinal, havia muito mais de social na sua origem. Num estudo que viria a tornar-se uma obra de referência na história da sociologia, “O Suicídio”, Durkheim defende, entre outros postulados, que este acto pode resultar de “vínculos sociais fracos”.
Desviando os olhos da sua obra, e trazendo, suspenso pelas frágeis gavinhas da compreensão, este fragmento da sua teoria, é-nos difícil imaginar e desenhar contextos que sirvam a todas as realidades concretas que conhecemos. Mas tudo faz sentido se atendermos à complexidade de tudo o que é tocado pelo comportamento humano. E parece, de facto, haver um denominador comum no estado de espírito de quem voluntariamente quebra os laços com a existência: o sentimento de não pertencer à dimensão física em que todos nos movemos. A sensação de descontextualização. A impressão da impossibilidade de sobrevivência no plano social. No plano das relações sociais que intercepta, inevitavelmente, o plano dos afectos.
E em todos os casos, se atentarmos bem, percebemos que o acto último foi precedido de várias estratégias de luta que adiaram a desistência. Muitos beberam. Outros enveredaram por dependências piores. Incluindo a emocional. Houve os que se isolaram como se o afastamento do mundo diminuísse o seu peso. Outros abdicaram da sua lucidez extrema e enlouqueceram. Mas em todas estas situações o preço a pagar pela sobrevivência é a degradação. E mais tarde ou mais cedo, o ponto de não retorno acontece. E a morte assume-se mesmo como a única saída para uma vida sem sentido.

Virgínia do Carmo
Ver:http://lelodemoncorvo.blogspot.com/search?q=virginia+do+carmo

10 comentários:

  1. Tenho sido um leitor atento a todas publicações neste espaço virtual e este é o texto que mais me tocou.Que bem escreve esta senhora.

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  2. Suicídio


    Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.



    Suicídio

    Suicídio (do latim sui, "próprio", e caedere, "matar") é o ato intencional de matar a si mesmo.[1] Sua causa mais comum é um transtorno mental que pode incluir depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia, alcoolismo e abuso de drogas.[2] Dificuldades financeiras e/ou emocionais também desempenham um fator significativo.[3]

    Mais de um milhão de pessoas cometem suicídio a cada ano, tornando-se esta a décima causa de morte no mundo. Trata-se de uma das principais causas de morte entre adolescentes e adultos com menos de 35 anos de idade.[4][5] Entretanto, há uma estimativa de 10 a 20 milhões de tentativas de suicídios não-fatais a cada ano em todo o mundo.[6]
    As interpretações acerca do suicídio tem sido vistas pela ampla vista cultural em temas existenciais como religião, filosofia, psicologia, honra e o sentido da vida. Albert Camus escreveu certa vez: "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia."[7] As religiões abraâmicas, por exemplo, consideram o suicídio uma ofensa contra Deus devido à crença religiosa na santidade de vida[carece de fontes]. No Ocidente, foi muitas vezes considerado como um crime grave. Por outro lado, durante a era dos samurais no Japão, o seppuku era respeitado como uma forma de expiação do fracasso ou como uma forma de protesto. No século XX, o suicídio sob a forma de auto-imolação tem sido usado como uma forma de protestar, enquanto que na forma de kamikaze e de atentados suicidas como uma tática militar ou terrorista. O sati é uma antiga prática funerária hindu no qual a viúva se auto-imola na pira funerária do marido, seja voluntariamente ou por pressão da famílias e/ou das leis do país.[8]

    O suicídio medicamente assistido (Eutanásia, ou o "direito de morrer") é uma questão ética atualmente muito controversa que envolve um determinado paciente que esteja com uma doença terminal, ou em dor extrema, que tenha uma qualidade de vida muito mínima através de sua lesão ou doença. Para alguns, o auto sacrifício geralmente não é considerado suicídio, uma vez que o objetivo não é matar a si mesmo mas salvar outrem.
    Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

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  3. Em 2008 registaram-se 1035 suicídios em Portugal, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE). No mesmo ano, o Ministério da Administração Interna refere que terão ocorrido 776 mortes na estrada, na sequência de acidentes de viação. O suicídio consolida-se, desta forma, como a principal causa de morte não-natural. O fenómeno verifica-se desde há poucos anos e justifica-se com o aumento do número de óbitos por lesões autoprovocadas intencionalmente, mas, sobretudo, com uma diminuição nos números oficiais das vítimas mortais em acidentes de viação. No entanto, os especialistas alertam que podem existir falhas importantes no registo destes números.

    O cadastro iniciado em 1960 mostra que, durante muitos anos, a primeira causa de morte não-natural no país foram os acidentes de viação, que, nos piores anos de 1975 e 1988, chegaram a somar um total de 2676 e 2534 mortos, respectivamente. A partir do ano 2000, os números começaram a ficar cada vez mais próximos e a primeira ultrapassagem dos suicídios foi em 2004. Neste ano, o INE reporta 1195 suicídios e o MAI 1135 mortos em acidentes de viação. Em 2005, uma ligeira descida dos suicídios (passaram para 910) dava o primeiro lugar aos mortos na estrada (1094). Porém, desde 2006 que os óbitos por lesões autoprovocadas intencionalmente ocupam o primeiro lugar nas causas de morte não-natural. De uma diferença mínima entre os 868 suicídios para as 850 mortes a lamentar nas estrada, em 2006, no ano seguinte o fosso alargava com o aumento de óbitos por lesões autoprovocadas intencionalmente (1014) e a manutenção da tendência descendente nas vítimas mortais em acidentes de viação (854)
    http://www.publico.pt/Sociedade/suicidio-e-a-causa-de-morte-naonatural-mais-comum-no-pais_142087

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  4. Belo texto.Parabéns a autora.
    Leitor

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  5. Excelente crónica, Virgínia ! E a escrita é impecável.

    um grande abraço
    Júlia

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  6. Da sobrevivência e da morte (I),um!?,isto quer dizer que há mais.Ansioso aguardo.

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  7. Profunda reflexão sobre o suicídio num texto impecavelmente escrito.Lucidez e qualidade são a marca da Virgínia.

    Uma moncorvense

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  8. Bem hajam todos pela leitura e pelos comentários! Um abraço.:)

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  9. Bem hajam todos pela vossa leitura e pelos comentários! Um abraço.:)

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  10. Texto lindíssimo com um conteudo formal e conhecimento filosófico muito acima da média em termos de uma escrita intimista e reflexiva que por aí anda publicada e se aceita com qualidade... apetece perguntar.... já pensou em escrever ou escreveu com base em história ficcionada e a partir destas reflexões da realidade de personagens verdadeiras do nosso prolongado cotidiano....?

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